A maior das tristezas – Sexta-Feira Santa

E o Senhor está morto. A tristeza do dia de hoje transcende a esfera meramente litúrgica e integra o patrimônio cultural do Ocidente: recordo-me, p.ex., daquele decassílabo de conhecida poetisa lusitana que, para falar de tristeza, em contexto totalmente secular, escreve que “parece Sexta-Feira da Paixão”. Tal característica não se impregnou neste dia à toa: foi devido à força da repetição de símbolos católicos ao longo dos séculos. O dia de hoje exala tristeza por todos os lados: no silêncio dos sinos substituídos pelas matracas, nas igrejas nuas com as imagens cobertas e o Sacrário aberto e vazio (parecendo uma igreja protestante, como um amigo comentou magistralmente), nas vias-sacras ou nas representações da Paixão de Cristo que se realizam com particular abundância no dia de hoje.

Mas a tristeza transformada em lugar-comum pode, paradoxalmente, obscurecer o seu sentido mais profundo. É comum que nós nos sintamos tristes por uma espécie de empatia para com aqueles que sofrem. A imagem do Cristo-Sofredor é capaz de provocar tristeza mesmo que sob uma perspectiva exclusivamente natural: não é no entanto por isso que é triste o dia de hoje. A tristeza da Sexta-Feira Santa não é simplesmente um luto pela morte trágica de um inocente: coisas assim infelizmente acontecem com relativa freqüência. A tristeza de hoje é única e irrepetível, e brota (pode-se dizer assim) das entranhas da Criação. É uma tristeza cósmica provocada pela revelação das conseqüências do nosso pecado.

Hoje, antes de morrer um Inocente, desenrola-se um drama em relação ao qual nós temos um inglório protagonismo. Os gritos de “Crucifica-O” que demos na celebração da Paixão não estão lá por acaso: revelam o nosso infelicíssimo papel nos acontecimentos do dia de hoje (e, repito, quem não se colocar pessoalmente entre os algozes de Cristo não é capaz de viver bem a Semana Santa). Hoje nós crucificamos o Filho de Deus. Pensar apenas que morreu um inocente é sem dúvidas trágico, mas é muito pouco. A tristeza do dia de hoje é a que brota da assustadora consciência de que eu matei um inocente. A tristeza de hoje é a do homicida (pior: a do deicida!) que se descobre com as mãos sujas de sangue. Que se sabe pessoalmente responsável pelos dolorosos sofrimentos de Cristo, cujos gritos nós entrevimos nas páginas do Evangelho lidas mais cedo.

E estes gritos atravessaram os séculos e ressoam ainda hoje nos nossos ouvidos, lembrando-nos de que é Sexta-Feira Santa, é Sexta-Feira da Paixão e, hoje, nós crucificamos a Cristo. Quanta dor brota desta aterradora verdade, quanta tristeza emana desta assustadora tomada de consciência! Este é, contudo, o sentido do dia de hoje. O Salvador foi morto por nós, e jaz no túmulo, e estamos desamparados. Se fria é a pedra do túmulo, mas frio é o nosso coração manchado por tão terrível crime. Triste, para sempre triste, é o dia no qual estes fatos aconteceram.

“O povo e a massa” – D. Fernando Rifan

O povo e a massa

Dom Fernando Arêas Rifan*

Estamos na Semana maior do ano, a Semana Santa, na qual recordamos a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Sua aparente derrota no Calvário é suplantada pela vitória da sua gloriosa Ressurreição, que celebraremos na Páscoa. Em Jesus Cristo, Deus feito homem, morto e ressuscitado para a nossa salvação, o coração humano encontra a solução para todos os seus problemas, a resposta a todas as suas dúvidas e a plena realização de todas as suas esperanças. Com ele aprendemos a alegria do amor gratuito, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte. Ali encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação (cf. Bento XVI, Porta Fidei).

A Semana Santa é cheia de lições para nós: o amor infinito e gratuito de Jesus por nós, pecadores, sua paciência sem limites, seu desejo de reconciliar com Deus a humanidade pecadora, pela qual ofereceu seu sacrifício, a crueldade dos carrascos, a inveja dos fariseus e doutores da lei, a fraqueza e covardia de Pilatos, a louca avareza de Judas, a atitude medrosa dos discípulos em fuga, a fortaleza de Nossa Senhora, a coragem das santas mulheres, a oração comovente do Bom Ladrão e o triunfo da sua Ressurreição. Quanta matéria para reflexão!

Mas, ocorre-nos uma questão intrigante: a mudança repentina do “povo” que pediu a morte de Jesus, depois de tê-lo aclamado rei no Domingo de Ramos. Como pode ocorrer uma mudança assim em cinco dias? Gritaram “hosana ao Filho de Davi” no Domingo e “crucifica-o” na sexta-feira seguinte?! Será que foi o mesmo “povo” ou foi outro? Ou houve alguma mudança que transformou sua mentalidade e comportamento?

Na verdade, não foi o verdadeiro povo que preferiu Barrabás a Jesus e pediu a sua morte. Foi a massa, manobrada pela aristocracia do templo, à qual se juntaram, para pressionar, os partidários de Barrabás, enquanto os seguidores de Jesus, o povo simples e bom, permaneceram escondidos de medo. Portanto, a vox populi realmente não foi válida, porque não correspondeu à realidade de “voz do povo” (cf. Bento XVI, Jesus de Nazaré II). Ou pode ser até que as mesmas pessoas, que antes eram povo, então se tornaram massa!

Como assim? Qual a diferença? O povo raciocina, a massa não. O povo caminha, a massa é conduzida. O povo segue racionalmente, a massa é manipulada cegamente. O povo percebe os embustes, a massa é alvo fácil de quaisquer demagogos e propagandistas. “O povo vive, a massa é inerte e não se move se não do exterior, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, alternadamente, hoje esta bandeira e amanhã aquela” (Pio XII). Assim, o povo aclamou espontaneamente Jesus no domingo de Ramos. A massa, manipulada, pediu sua morte.

Sejamos nós o povo de Deus, racional e consciente, discípulos convictos de Jesus Cristo, firmes na fé e na doutrina cristã, e não a massa manobrável por pressões, sentimentos e propaganda, fácil presa das emoções, do medo, das seitas, dos formadores de opinião, da acomodação e do argumento da maioria.

*Bispo da Administração Apostólica Pessoal
São João Maria Vianney

Sábado

É sábado. Passamos já pelas lágrimas do Getsêmani e pelo sangue vertido na Cruz do Calvário. Já traímos a Nosso Senhor e já O entregamos à morte; Ele já foi crucificado e está morto, sepultado.

É sábado, e jaz na pedra fria do Sepulcro o Nosso Senhor e Salvador. O Seu Santíssimo Corpo sem vida; a Sua Alma, descida aos Infernos, já deixou esta terra. É sábado, e o mundo parece triste e vazio porque Quem esteve aqui já não mais está.

É sábado, e Deus está morto, e fomos nós que O matamos! A nossa alma encontra-se em profunda tristeza: infelizes de nós! O Sangue inocente do filho de Deus ainda suja as nossas mãos. As imagens terríveis da Crucificação ainda nos assombram, mostrando-nos o nosso pecado em toda a sua fealdade. Desta vez, nós ultrapassamos todos os limites. Desta vez, Ele não vai nos perdoar de novo.

Mas é sábado, e o Deus que Se retirou do mundo não o deixou completamente abandonado, não o entregou totalmente às garras de Satanás. Não quis o Onipotente que o mundo onde Ele nasceu e viveu tornasse a ficar desgraçado outra vez. Deixou no mundo uma Esperança, uma imagem límpida de Si, um espelho fiel da Sua Luz hoje apagada no sepulcro escuro. Deixou-nos uma Esperança!

Nós A vimos ontem, aos pés do madeiro da cruz, com o sagrado corpo de Seu Filho Morto aos braços. Nós A vimos ontem, de pé aos pés da Cruz, sofrendo em silêncio a morte de Cristo. Nós A vimos ontem e, no Seu olhar materno e doloroso, nós enxergamos o perdão.

E, se Ela nos perdoa, Ela que é a Mãe d’Aquele que matamos, então Ele também haverá de nos perdoar! E não há lugar para desesperos porque a Mãe do Filho de Deus olha para nós com compaixão e com amor. É grave – é gravíssimo! – o que Lhe fizemos, mas o amor desta Mulher supera as nossas culpas. Poderá o amor de Deus não fazer o mesmo?

Ele Se foi, mas nos deixou Alguém para que não nos desesperássemos. Para que a consideração do tamanho dos nossos pecados não nos consumisse por completo e não nos matasse. Ele nos deixou a Sua Mãe Santíssima pra que Ela nos perdoasse e, no Seu regaço materno, ousássemos pedir-Lhe perdão por O termos matado.

É sábado, matamos a Deus, mas Ele nos perdoa. E sabemos que Ele nos perdoa porque Ele nos deixou Maria Santíssima – deixou-nos Sua Mãe. Acheguemo-nos a Ela, verdadeiro Refúgio dos Pecadores. No seio d’Ela choremos por nossos crimes. Junto a Ela, esperemos o Senhor.

Sexta-Feira

A igreja vazia, os altares desnudos, a lâmpada do sacrário apagada e, este próprio, aberto e vazio. Nosso Senhor não está – é visível. Foi-nos tirado, por nossas culpas e nossas faltas. Vai ser julgado, condenado e crucificado por meus crimes.

A cerimônia da Paixão é sóbria como convém a um dia como esse. O sacerdote entra em silêncio e prostra-se no chão: singelo gesto para expressar o luto de toda a Igreja porque o Senhor está morto. E Ele está morto porque foi assassinado, e fomos nós que O assassinamos: prostrar-se com o rosto por terra é também sinal de vergonha. De angústia diante da enormidade da nossa malícia, tão grande que foi capaz de matar a Deus.

O Senhor está morto! E nós, agora, não temos mais onde ir. Porque nós estragamos até mesmo a maior das Graças que poderíamos receber dos Céus. Nós crucificamos o Filho de Deus, que viera ao mundo para nós. E, durante o tradicional canto da cerimônia de adoração da Cruz, o Altíssimo nos interpela, queixando-Se e perguntando o que foi que nos fez para que O matássemos. Perguntando o que mais poderia ter feito por nós para que O amássemos. Lançando-nos à face a nossa ingratidão: só na Cruz nós exaltamos Aquele que tanto nos exaltou. Infelizes de nós! Porque retribuímos com a máxima ingratidão a Quem tanto nos amou.

E é essa a Sexta-Feira da Paixão: a festa do amor desprezado, o clímax da nossa ingratidão. A memória do dia mais triste da história da humanidade: quando os homens mataram Deus. O Amor escarrado e humilhado, escarnecido e Crucificado, elevado no Madeiro e, ainda assim, amando…! O beijo que nós damos na cruz na celebração de hoje tem outro sentido, mas é impossível não lembrar de Judas traindo com um beijo o Filho do Homem. Também eu estou naquele beijo, também é minha aquela traição. É esta a hora das trevas e (como lembrava o sacerdote na homilia de hoje) não somos meros espectadores no drama da Sexta-Feira Santa. Somos todos protagonistas na Crucificação de Cristo. São meus pecados que Lhe rasgam a Carne, que Lhe vertem o Sangue, que O pregam na Cruz.

E, na Cruz, humilhado e obediente até a morte, Nosso Senhor entrega o espírito. E está consumado, nós O condenamos, nós O crucificamos, nós O matamos. Não há espaço para Ele em nosso mundo! E as palavras arrependidas do centurião são também nossas, porque refletem também a nossa dor e o nosso desespero quando, mãos cheias de sangue, tomamos consciência do grande crime que acabamos de cometer: Ele era verdadeiramente o Filho de Deus… e O matamos! Infelizes de nós!

Ameaça ao Estado Laico!

Fonte: Diário Oficial de Pernambuco.

DIÁRIO OFICIAL

Estado de Pernambuco

Ano LXXXVII – Recife, terça-feira, 16 de março de 2010 – Nº 49

CASA CIVIL

Por determinação do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, o expediente nos dias 01 e 02 de abril, consagrados à Paixão de Cristo, será considerado ponto facultativo nas repartições públicas e entidades da administração indireta estadual, com exceção daqueles serviços cujo funcionamento seja indispensável, a juízo do chefe do órgão.

Recife, 15 de março de 2010.

RICARDO LEITÃO

Secretário da Casa Civil