A Igreja é Una acima do tempo e do espaço

[A] comunhão dos santos vai além da vida terrena, vai além da morte e dura para sempre. Esta união entre nós vai além e continua na outra vida; é uma união espiritual que nasce do Batismo e não vem separada da morte, mas, graças a Cristo ressuscitado, é destinada a encontrar a sua plenitude na vida eterna. Há um vínculo profundo e indissolúvel entre quantos são ainda peregrinos neste mundo – entre nós – e aqueles que atravessaram o limiar da morte para entrar na eternidade. Todos os batizados aqui na terra, as almas do Purgatório e todos os beatos que estão já no Paraíso formam uma só grande família. Esta comunhão entre terra e céu se realiza especialmente na oração de intercessão.

Papa Francisco, catequese de 30 de outubro de 2013

Há três grandes festas litúrgicas tradicionalmente [p.s.: no Calendário Tradicional] celebradas juntas. No último domingo de Outubro, celebra-se a festividade de Cristo Rei; no dia primeiro de novembro, a Solenidade de Todos os Santos; por fim, no dia 02 de novembro, o dia dos Fiéis Defuntos.

Estas festas litúrgicas exprimem a Fé na «comunhão dos santos» que professamos no Credo; exprimem-na de uma maneira bastante eloqüente, por conta da ênfase a cada uma das “partes” da Igreja empregada em cada um desses dias sucessivos. Celebramos a Festa de Cristo-Rei do Universo e, nela, vemos a Igreja Militante na sua peregrinação histórica rumo a Nosso Senhor. Celebramos a Solenidade de Todos os Santos e contemplamos a Igreja Triunfante em todo o seu esplendor, na sua plena realização à qual os filhos de Deus somos chamados. E celebramos os Finados tendo diante dos olhos a Igreja Padecente, as almas dos fiéis no Purgatório que anseiam por se livrar de suas penas para ascender o quanto antes ao Trono do Todo-Poderoso.

E a Igreja é Una acima do tempo e do espaço. Estas três partes da Igreja perfazem todas a única Igreja de Cristo. Estamos unidos aos fiéis católicos espalhados por todo o mundo que, junto conosco, caminham no claro-escuro da Fé por este Vale de Lágrimas aguardando a Páscoa definitiva. Estamos unidos àqueles que nos precederam e, nas chamas do Purgatório, consomem-se na purificação derradeira para que possam enfim chegar à Cidade Santa: as nossas orações lhes servem de sufrágio e são úteis para lhes aliviar as penas. E estamos unidos aos santos e santas de Deus, àqueles que já cumpriram a sua parte na terra (ou no Purgatório) e já receberam a Coroa da Vitória e, do alto dos Céus, diante do Trono de Deus, intercedem incessantemente pela nossa salvação, a fim de que possamos nos unir a eles no canto de louvor definitivo da Eternidade.

Mas já estamos todos juntos, como canta uma antiga canção popular de Offertorium: «amigos e parentes, vivos e defuntos, em torno desta Mesa estamos sempre juntos». Estamos todos juntos e é esta a beleza da Comunhão dos Santos: o Corpo de Cristo não conhece as fronteiras dos países e das nações e – mais ainda! – não conhece os limites do tempo, de tal modo que nem a Morte é capaz de Lhe conter! A Igreja perpassa toda a História e, a cada instante, se estamos na Igreja, então nós estamos na História inteira, do primeiro ao derradeiro homem de qualquer recanto do mundo, e nenhum dele nos é estranho. Em Cristo nós somos irmãos, e seria muito provincialismo de nossa parte acharmos que isto se refere somente ao nosso diretor espiritual ou ao amigo junto a quem assistimos Missa aos domingos. O alcance universal – Catholicus – da Igreja supera em muito as possibilidades humanas. Há muito mais diversidade e riqueza na Igreja Católica do que em todos os seus opositores somados.

E olhar para a communio sanctorum é colocar tudo em perspectiva: é ver como o mundo é pequeno e fútil, e como são grandiosas as coisas que Deus tem reservadas para os que O amam. Alguém disse certa feita que quem já viu o Oceano não se espanta mais com os lagos: do mesmo modo, para quem já contemplou a extensão do Corpo de Cristo, tudo o mais não passa de palha e o mundo inteiro é um cubículo entediante, fora do qual é onde está a vida que realmente vale a pena ser vivida.

É grandiosa a Igreja de Cristo! Não a troquemos pelas mesquinharias do mundo. Militemos com valentia nesta terra, unidos às dores dos que padecem no além-túmulo, a fim de chegarmos gloriosamente ao Dia sem ocaso para o qual Cristo nos resgatou na Cruz do Calvário. A fim de que nós, que ingressamos na Igreja pelo Batismo, possamos continuar n’Ela até o fim. Até a sua realização derradeira. Até a Glória, onde Ela é plenamente aquilo que Nosso Senhor A fez para ser.

«Entendo o mal-estar, mas na Igreja ou se caminha com o Papa ou se vai em direção ao cisma» – Massimo Introvigne

[Original: Il Foglio
Fonte: Infovaticana
Tradução: Wagner Marchiori]

Entendo o mal-estar, mas na Igreja ou se caminha com o Papa ou se vai em direção ao cisma

Como sociólogo li com interesse o artigo de Alesssandro Gnocchi e Mario Palmaro que testemunha um mal estar em relação a [certos] gestos e atitudes do Papa Francisco, que também vi em setores minoritários, mas não irrelevantes na Igreja. Tal mal-estar, assumido e transformado em reflexão e cultura, pode ser útil; e creio que o próprio Papa Francisco o previu e o tem em conta em sua visão de uma Igreja na qual, como gosta de explicar, a unidade não se confunde com a uniformidade.

O mal-estar não deve ser confundido com o rechaço do Magistério Ordinário, já que essa atitude leva ao cisma. A tese pode parecer forte, mas é inteligível à luz do passado recente.

O venerável Paulo VI buscou evitar certas sequelas do pós-Concílio, a partir, ao menos, de 1968. Diante disso, os progressistas se recusaram a segui-lo  sustentando que os pronunciamentos do Papa não eram infalíveis e constituíam simples indicações pastorais das quais se poderia discordar permanecendo bons católicos.

E assim continuou com o beato João Paulo II. O cardeal Ratzinger e o cardeal Scheffczyk replicaram afirmando que nem todo o Magistério é infalível – uma solene besteira da qual não conheço defensores sérios – mas, também, não se pode ser católico aceitando somente os raríssimos pronunciamentos infalíveis dos Pontífices. Para estar na Igreja é necessário caminhar com os Papas e deixar-se guiar por seu magistério cotidiano. Fora deste caminho estreito está o caminho largo que leva ao cisma.

É um risco – para usar categorias políticas não de todo pertinentes, mas que ajudam a entender – para a esquerda. Mas é um risco também para a direita, onde – naturalmente a propósito de textos diversos dos criticados pelos progressistas – se começou a repetir a mesma cantilena segundo a qual, por exemplo, certos documentos do Concílio Vaticano II não são infalíveis e são meramente pastorais e, por isso, poderiam ser tranquilamente ignorados ou rechaçados.

Bento XVI tratou de pôr ordem no debate com sua famosa proposta da “hermenêutica da reforma na continuidade”, que convidava a acolher lealmente os elementos de reforma do Concílio, interpretando-os não contra o Magistério precedente, mas, sim, tendo-o em conta. A proposta foi rechaçada pela esquerda e, com frequência, mal entendida pela direita.

A direita aplaudiu a continuidade esquecendo-se da reforma e acreditou que o Papa autorizava a acolher, do Vaticano II, somente aquilo que tivesse apresentado de modo novo (‘nove’) o que já era ensinado antes, rechaçando o que era, de fato, “novum”, novo, não – segundo Bento XVI – em contradição com o Magistério precedente, mas certamente não redutível a ele. E não era isso. Esta “direita” interpretou o discurso de despedida aos párocos romanos de 14 de fevereiro de 2013 como uma admissão de que a hermenêutica da continuidade havia fracassado. Na realidade, o que realmente havia fracassado era a tentativa de usar Bento XVI para rechaçar o Concílio.

Reivindicando orgulhosamente seu papel de teólogo no Concílio naquela “aliança renana” dos padres conciliares alemães, franceses, belgas e holandeses que propuseram algumas das principais reformas do Vaticano II, o Papa Ratzinger esclarecia, justo no momento de deixar a cátedra petrina, que nada em seu pontificado autorizava rechaçar a reforma em nome da continuidade.

É possível que o Papa Francisco realize outras reformas na Igreja que o fiel católico deverá acolher com docilidade e sem procurar lê-las como contrárias aos ensinamentos dos pontífices precedentes, mas, sim, tendo-os em conta. Na encíclica “Caritas in Veritate”, Bento XVI esclareceu que  a hermenêutica da “reforma na continuidade” não diz respeito apenas ao Vaticano II, mas a toda a vida da Igreja.

A fórmula de Bento XVI será de grande ajuda para metabolizar o mal-estar e para transformá-lo em uma voz útil na grande sinfonia da Igreja. Construir a continuidade como rechaço da reforma ou declarar que se quer seguir o Papa somente em seus pronunciamentos infalíveis – dois por século – confinando todo o resto na esfera do “falível” e que pode ser ignorado leva, talvez sem se perceber, ao cisma.

di Massimo Introvigne

A Consagração do Mundo e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria

O Papa Francisco (re)fez no último domingo, 13 de outubro, aniversário do Milagre do Sol, a Consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria. A fórmula usada por Sua Santidade pode ser vista aqui.

Não há que se menosprezar, por certo, a eficácia de tal gesto; uma consagração é uma coisa sem dúvidas boa, e seria muita impiedade pensar que a Santíssima Virgem Mãe de Deus, magnânima e liberal sobre todas as criaturas, perderia esta oportunidade de derramar abundantes graças sobre o mundo. É claro que choverá bênçãos do Céu por conta dessa entrega do mundo que o Vigário de Cristo fez no início da semana à Bem-Aventurada Virgem Maria.

Não obstante, atos assim sempre remetem à mensagem de Fátima e à Consagração da Rússia que Ela pediu quando apareceu aos três pastorinhos. É bem verdade que o mundo inclui a Rússia, mas não é menos verdade que, neste caso, o todo termina por obscurecer a parte, e a referência ao mundo inteiro faz perder de vista a referência àquela nação particular. Consagrar o mundo e consagrar a Rússia não é a mesma coisa, da mesma forma que – mutatis mutandis – receber uma bênção Urbi et Orbi pela televisão não é o mesmo que ser diretamente abençoado pelo Papa após uma audiência particular.

Desde Pio XII – que parece ter sido o primeiro pontífice a inaugurar a série de consagrações do mundo que se seguiram a ele – o mundo é consagrado ao Imaculado Coração da Virgem. Nunca o nome da Rússia se ouviu nessas cerimônias. O que explica esta aparente insistência em sistematicamente evitar fazer o que Nossa Senhora pediu em Fátima?

A resposta é simples. Não se trata, aqui (ao menos não diretamente), da revelação de Fátima. Quem pediu a Consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria foi a Beata Alexandrina Maria da Costa de Balazar, portuguesa, contemporânea dos videntes de Fátima e «vítima da Eucaristia». A festa litúrgica dela é precisamente no dia 13 de outubro, e portanto era certamente esta beata que o Papa Francisco tinha em mente quando, domingo passado, consagrou mais uma vez o mundo à Santíssima Virgem. Não é uma desobediência aos pedidos de Fátima. É, ao contrário, atender aos pedidos da Beata Alexandrina.

* * *

É claro que as duas consagrações – a da Rússia e a do mundo – não são excludentes. Mas elas também não se confundem. Foi o próprio Papa João Paulo II quem disse, no ato mesmo de consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, que a Virgem Santíssima ainda esperava que certos povos Lhes fossem consagrados de maneira particular. Disse-o (pelo menos) duas vezes, em 1981 e em 1984 (grifos e destaques no original).

Em 1981:

«Ó Mãe dos homens e dos povos, Vós conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças, Vós sentis maternalmente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo, acolhei o nosso brado, dirigido no Espírito Santo directamente ao vosso Coração, e abraçai com o amor da Mãe e da Serva do Senhor aqueles que mais esperam por este abraço e, ao mesmo tempo, aqueles cuja entrega também Vós esperais de maneira particular. Tomai sob a vossa protecção materna a família humana inteira, que, com enlevo afectuoso, nós Vos confiamos, ó Mãe. Que se aproxime para todos o tempo da paz e da liberdade, o tempo da verdade, da justiça e da esperança».

E em 1984:

Mãe da Igreja! Iluminai o Povo de Deus nos caminhos da fé, da esperança e da caridade! Iluminai de modo especial os povos dos quais Vós esperais a nossa consagração e a nossa entrega. Ajudai-nos a viver na verdade da consagração de Cristo por toda a família humana do mundo contemporâneo.

Ou seja: mesmo João Paulo II acreditava que a SSma. Virgem “esperava” a consagração de alguns povos especiais, feita «de maneira particular», e isso mesmo depois do mundo já haver sido anteriormente consagrado ao Seu Imaculado Coração. As duas consagrações não são portanto idênticas, não se confundem e uma delas não “realiza” automaticamente a outra.

É digna de nota esta recusa sistemática em se fazer a consagração nominal da Rússia. Muitos teólogos da conspiração vêem nisso um dos sinais de apostasia da Igreja (ou qualquer besteira do tipo), o que não faz sentido algum e se deve rechaçar com veemência.

A mensagem de Fátima, em que pese a sua importância, é revelação particular. Ora, ninguém se torna herege por não dar crédito a uma revelação particular. Se – por – absurdo os Papas não acreditassem em Fátima, eles não seriam menos Papas por causa disso. Portanto, a não-consagração da Rússia não teria jamais o condão de conduzir a indefectível Igreja de Deus à apostasia; e, por maiores que fossem os pecados de quem se recusasse a atender um pedido da Virgem Mãe de Deus, tal pessoa continuaria perfeitamente católica.

Logo, ainda que um Papa desprezasse a mensagem de Fátima, a Igreja por ele capitaneada continuaria sendo, mesmo assim, o infalível canal dos favores de Deus, a única Arca da Salvação, e a submissão a ele continuaria sendo absolutamente necessária a cada homem que quisesse salvar a própria alma.

* * *

Parece que a Consagração de Fátima não foi feita. Foram feitas outras consagrações pedidas por pessoas santas, que deram incontestáveis frutos: após elas, o Comunismo – ao menos em suas formas mais radicais – caiu junto com o Muro de Berlim. Mas parece que falta ainda alguma coisa; parece que a Rússia espalhou, sim, os seus erros pelo mundo; parece que ela não se converteu; e, principalmente, parece que não estamos vivendo o triunfo do Imaculado Coração da Virgem.

O texto do Segundo Segredo parece corroborar esta nossa impressão. As exatas palavras de Nossa Senhora, pelo que sabemos, são estas aqui:

— Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores, para as salvar, Deus quer establecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra peor. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será consedido ao mundo algum tempo de paz.

São palavras que a maior parte de nós conhecemos muito bem. Não são, contudo, as únicas coisas que a SSma. Virgem disse em Fátima. Não está em nosso poder consagrar ou deixar de consagrar nação alguma. Mas há uma coisa, sim, que cada um de nós pode e deve fazer muito antes de se preocupar com a conversão da Rússia: zelar pela nossa própria conversão e pela salvação da nossa própria alma. Afinal, a Virgem Santíssima também nos mandou fazer penitência e rezar o terço todos os dias. E que importância temos dado a esses Seus rogos?

Cumpre-nos fazer o que está a nosso alcance fazer. Não caiamos na insensatez de nos preocuparmos mais com a conversão da Rússia do que com a nossa própria salvação. Afinal de contas, do Triunfo do Imaculado Coração da Virgem nós temos a certeza: Ela o prometeu em Fátima! Da salvação da nossa alma, contudo, nós não temos promessa alguma. É com isso, portanto, que nós temos que nos preocupar. É esta e não outra a parte da Mensagem de Fátima que nós temos que nos esforçar primeiramente por cumprir.

Papa Francisco: «É a Igreja que nos transmite a autêntica mensagem de Cristo»

2. Mas perguntemo-nos: como é possível para nós nos conectarmos com aquele testemunho, como pode chegar até nós aquilo que viveram os Apóstolos com Jesus, aquilo que escutaram Dele? Eis o segundo significado do termo “apostolicidade”. O Catecismo da Igreja Católica afirma que a Igreja é apostólica porque “protege e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, o ensinamento, o depósito precioso, as salutares palavras ouvidas da boca dos Apóstolos” (n. 857). A Igreja conserva ao longo dos séculos este precioso tesouro que é a Sagrada Escritura, a doutrina, os Sacramentos, o ministério dos Pastores, de forma que possamos ser fiéis a Cristo e participar da sua própria vida. É como um rio que flui na história, desenvolve-se, irriga, mas a água que escorre é sempre aquela que parte da fonte, e a fonte é o próprio Cristo: Ele é o Ressuscitado, Ele é o Vivo, e as suas palavras não passam, porque Ele não passa, Ele está vivo, Ele está entre nós hoje aqui, Ele nos sente e nós falamos com Ele e Ele nos escuta, está no nosso coração. Jesus está conosco hoje! Esta é a beleza da Igreja: a presença de Jesus Cristo entre nós. Sempre pensamos quanto é importante este dom que Jesus nos deu, o dom da Igreja, onde podemos encontrá-Lo? Sempre pensamos em como é justamente a Igreja no seu caminho ao longo dos séculos – apesar das dificuldades, dos problemas, das fraquezas, dos nossos pecados – que nos transmite a autêntica mensagem de Cristo? Doa-nos a segurança de que aquilo em que acreditamos é realmente aquilo que Cristo nos comunicou?

3. O último pensamento: a Igreja é apostólica porque é enviada a levar o Evangelho a todo o mundo. Continua no caminho da história a mesma missão que Cristo confiou aos Apóstolos: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que eu vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20). Isto é aquilo que Jesus nos deu para fazer! Insisto neste aspecto da missionariedade, porque Cristo convida todos a “ir” ao encontro dos outros, envia-nos, pede-nos para nos movermos e levar a alegria do Evangelho!

Papa Francisco
Catequese
16 de outubro de 2013

Nem só de zelo são feitos os santos

Algumas pessoas já sabem, mas acho que não mencionei aqui o caso de dois periodistas italianos que foram demitidos de uma rádio (católica) após terem escrito um artigo em que teciam duras críticas ao Papa Francisco. A notícia (bem como o artigo escrito por Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro) pode ser lida em espanhol aqui.

Os dois italianos não são um caso isolado. Ainda outro dia, El País – sim, El País! – publicou uma dura carta de uma senhora mexicana ao Papa, cujo conteúdo era muito semelhante ao deste artigo dos dois ex-radialistas da Rádio Maria. Compadeci-me com a perplejidad da Lucrecia Rego de Planas. Com o que não pude concordar foi com a divulgação pública da carta. Que bem imaginam estas pessoas fazerem ao disseminar a desconfiança para com o Vigário de Cristo?

O «escândalo dos pequeninos» não se encontra em meia dúzia de frases toscas que a mídia secular lê sob sua própria ótica desfocada. O escândalo, o escândalo grande e verdadeiro, encontra-se em católicos esbravejando publicamente contra o Romano Pontífice. Coisa mais anti-tradicional do que isso não existe. A Igreja não é uma democracia na qual cada um dos fiéis é poder constituinte originário. A mentalidade de se fazer abaixo-assinados e lobby político para provocar mudanças nas esferas superiores de poder simplesmente não é católica.

Não interessa aqui o quão «justas» estes católicos julguem as reivindicações que fazem. Interessa também e principalmente o meio pelo qual elas são feitas. Afinal de contas, ao contrário do que ensinava Maquiavel, os fins não justificam os meios. De nada adianta alguém fazer a melhor coisa do mundo através de expedientes francamente deploráveis.

Sim, Santa Catarina de Siena atacou duramente o Papa. Mas ela dirigiu os seus ataques ao Papa. O sujeito que se senta na internet para vomitar impropérios contra o Romano Pontífice em nada se assemelha à Virgem de Siena, simplesmente porque os ataques despejados nos meios de comunicação em massa dirigem-se primariamente às massas, e não aos indivíduos. Um equivalente medieval desse péssimo hábito contemporâneo seria se, durante o exílio de Avignon, os católicos distribuíssem nas vilas e cidades panfletos mal-educados atacando a pusilanimidade de Gregório XI. É bastante claro que Santa Catarina não fez jamais nada sequer minimamente parecido com isso. Nunca ninguém fez nada parecido com isso.

Aliás, corrijo-me: já houve, sim, quem fizesse algo parecido com isso. Recordo-me de um nome: Savonarola. O pregador dominicano passou à história por despejar do púlpito os mais virulentos ataques contra a Cúria Romana e o Papa… Alexandre VI. Ora, perto de Alexandre VI, qualquer dos Papas do século XX pode pleitear a sua conceição imaculada!

Savonarola é porventura santo? Por acaso a Igreja o elegeu como modelo de virtudes a servir de exemplo para os fiéis católicos? Muito pelo contrário. Foi censurado diversas vezes por Roma, excomungado por fim, e morreu na forca. Sobre este interessante personagem D. Estêvão Bettencourt escreveu o seguinte:

Objetivamente falando, o procedimento do pregador florentino merece reprovação. Movido pela obsessão de pretensa vocação profética, excedeu os limites da reverência e da obediência na tarefa que ele se propôs, de repreender não somente as multidões populares, mas também as autoridades civis e religiosas. Não se poderia legitimar a sua insubmissão ao Papa Alexandre VI, que, apesar de graves deficiências, era o legítimo Pontífice (a propósito de Alexandre VI veja-se “P.R.” 4/1958, qu. 11). Acreditando arbitrariamente em sinais extraordinários, o pregador deixou-se alucinar e distanciou-se da realidade.

E sobre ele o velho beneditino ainda acrescenta estas palavras que deveriam ser gravadas em pedra e meditadas sete vezes por dia por todos os que se arvoram juízes dos Sumos Pontífices: «Infelizmente porém, não percebeu (ao menos, em sua conduta prática) que a fidelidade a Cristo e [à] Igreja implica necessariamente fidelidade ao Papa, mesmo a um Alexandre VI».

Diante de tudo isso, o que dizer de dois jornalistas italianos que jogam na imprensa um artigo intitulado «Questo Papa non ci piace»? Acaso se pode criticar o padre que prontamente os dispensou dos seus serviços a uma Rádio Católica? Se vivessem em fins do século XV, acontecer-lhes-ia coisa muito pior. A história nos ensina que nem só de zelo são feitos os santos. Os detratores do Papa Francisco deveriam se olhar mais atentamente no espelho: talvez o negro que lá vislumbrem não seja o do hábito de Santa Catarina. Cuidem para que não seja, ao contrário, um prenúncio do triste fim de Savonarola.

Papa Francisco: sem caridade, as boas obras não salvam

Contra os que ainda insistem em acusar o Papa de naturalismo por conta de sua afirmação sobre o valor das boas obras praticadas mesmo pelos que não têm Fé, o Vigário de Cristo dirigiu palavras muito claras na manhã de hoje (segunda-feira, 14 de outubro) em sua homilia proferida na Casa Santa Marta (grifos meus).

O sinal de Jonas, o verdadeiro, é aquele que nos dá a confiança de ser salvos pelo sangue de Cristo. Quantos cristãos, quantos há, pensam que serão salvos somente pelo que fazem, pelas suas obras. As obras são necessárias, mas são uma consequência, uma resposta ao amor misericordioso que nos salva. Mas as obras, sem este amor misericordioso, não servem.

Portanto, as pessoas são salvas «pelo sangue de Cristo». As obras são «conseqüência» deste «amor misericordioso», da caridade, que é virtude sobrenatural infundida por Deus em nossas almas e pela qual amamos a Ele e ao nosso próximo por causa d’Ele.

E as boas obras naturais são boas e valiosas, predispõem o homem a acolher a Graça, mas não têm valor sobrenatural em si mesmas e, portanto, não servem para a salvação eterna.

Eis a Doutrina Católica de vinte séculos nos lábios do Vigário de Cristo.

Extra! Extra! O Papa NÃO vai criar uma mulher cardeal!

Não que isso fosse realmente necessário, mas o Vaticano desmentiu a história louca publicada recentemente por El País de que o Papa Francisco iria “nomear” (sic) uma mulher cardeal. Excelente a colocação incisiva do pe. Lombardi:

“Não se pode ter El País como uma fonte do Vaticano”, assinalou o porta-voz da Santa Sé.

E – acrescento eu – nem tampouco o resto da mídia ávida por novidades na qual o próprio Papa já mandou recentemente que não acreditássemos.

Apenas a título de curiosidade, um «Cardeal» não é um grau do Sacramento da Ordem “acima” do de Bispo. A Ordem só tem três graus: o diaconato, o presbiterato e o episcopado, e mais nada. O Colégio Cardinalício é uma espécie de “para-hierarquia”.

Embora historicamente já tenha havido cardeais leigos, o Código de Direito Canônico vigente (Cân. 351) prescreve que só podem ser escolhidos para cardeais os que forem «pertencentes pelo menos à ordem do presbiterado», e acrescenta que «os que ainda não forem Bispos, devem receber a consagração episcopal». Como mulheres não podem ser ordenadas, tampouco podem ser cardeais.

Uma modificação no CIC para retirar essa exigência seria despropositada e inaudita, porque mesmo os antigos cardeais leigos recebiam a tonsura e as ordens menores – donde a história do Juan Arias sempre foi sem pé nem cabeça de uma ponta a outra.

O Papa Francisco e o «Magistério das Entrevistas»

Curiosidades acerca da entrevista que o Papa Francisco concedeu ao fundador do La Repubblica: já no dia seguinte à publicação, o Andrea Tornielli manifestou dúvidas sobre a acurácia das palavras atribuídas ao Papa pelo Eugenio Scalfari.

As dúvidas não tinham nada a ver com os pontos mais “polêmicos” do texto (ou, melhor dizendo, os pontos em torno dos quais se concentrou a histeria dos inimigos da Igreja em geral), como o negócio de Deus não ser católico, o dever de se seguir a própria consciência ou a menção negativa ao «proselitismo». O ponto levantado pelo Tornielli (e que revela a sua extraordinária competência jornalística) era de uma desimportância excepcional: o Papa Francisco dissera no periódico que, antes de aceitar o Papado, perguntara aos cardeais se «poderia passar alguns minutos na sala contígua àquela com um balcão que dá para a praça».

Ora, o vaticanista observou que isso era impossível. Primeiro porque não existe nenhuma sala contígua ao balcão do anúncio do Habemus Papam e, segundo, porque mais de um cardeal eleitor já havia dito que o Papa aceitara imediatamente o pontificado ao ser eleito, sem se retirar para lugar algum. A inverossimilhança do relato do Scalfari, assim, ficava evidente.

O que fez a Santa Sé? Surpreendentemente, emitiu um comunicado dizendo que «Eugenio Scalfari não gravou a entrevista com o Papa Francisco nem tampouco fez anotações, por isso o texto [do La Repubblica] foi uma reconstrução posterior dos fatos» (!). Como é possível que um jornalista tarimbado vá para uma entrevista com um Papa sem gravá-la ou nem mesmo fazer anotações sobre ela é um mistério que paira muito acima do que a nossa vã perspicácia é capaz de perscrutar.

Mas o que nos interessa aqui é constatar isso que nós temos agora: uma espécie de “Magistério de segunda mão”. A reportagem do La Repubblica está no site do Vaticano, aparentemente em pé de igualdade com todos os outros pronunciamentos do Papa Francisco e dos seus predecessores. O que exatamente esta novidade inaudita significa?

Não se sabe. O Pe. Lombardi – no citado texto do Unisinos – dá uma dica:

Talvez o ponto mais perspicaz de todos veio do próprio Lombardi, que disse que estamos vendo a emergência de um gênero totalmente novo de discurso papal – informal, espontâneo e às vezes confiado a outros em termos da sua articulação final. Um novo gênero, sugeriu Lombardi, precisa de uma “nova hermenêutica”, em que não damos tanto valor às palavras individuais, mas sim ao sentido geral.

“Não é o Denzinger“, disse ele, referindo-se à famosa coleção alemã do ensino oficial da Igreja, “e não é o direito canônico”.

“O que o papa está fazendo é dando reflexões pastorais que não foram revisadas de antemão palavra por palavra por 20 teólogos, a fim de ser mais preciso sobre tudo”, disse Lombardi. “É preciso diferenciar de uma encíclica, por exemplo, ou de uma exortação apostólica pós-sinodal que são documentos magisteriais”.

Um discurso «informal, espontâneo e às vezes confiado a outros em termos da sua articulação final»! Como tratar essa nova modalidade de “Magistério”? A dificuldade já foi apontada por Sandro Magister. E ele parece já ter encontrado – ao menos em parte – a sua solução:

En el prólogo al primer tomo de su trilogía sobre Jesús, Joseph Ratzinger-Benedicto XVI había escrito:

“Este libro no es un acto magisterial, por eso cada uno es libre para contradecirme”.

El Papa Francisco no lo dice expresamente, pero se puede presumir que esta libertad es válida también respecto a él, pues adopta un formato expresivo típico de la controversia como es la entrevista.

O princípio é sem dúvidas válido. Documentos distintos obrigam em níveis diferentes. Não há que se inflar a infalibilidade pontifícia para abarcar qualquer coisa proferida pelo Vigário de Cristo. No entanto, o assunto há de ser bem entendido. A «infalibilidade» refere-se à obrigação de se aderir com Fé divina e católica a uma certa formulação dogmática proposta pelo Magistério da Igreja. Naquilo que não é propriamente «Magistério» – ou que só o é entre aspas – simplesmente não cabe falar em “infalibilidade”.

No entanto, permanece o dever de se acolher com submissão filial o que é falado por nossos superiores. Qualquer católico bem formado, mesmo leigo, é capaz de discorrer em público sobre assuntos relacionados à Fé sem incorrer em erro de Doutrina; ora, se é assim, por qual motivo deveríamos pensar que altos prelados (ou mesmo o Romano Pontífice!) estivessem sempre na iminência de cometer – e informalmente! – deslizes doutrinários de conseqüências funestas? Ninguém precisa ser «infalível» para falar informal e corretamente sobre a Fé Católica, e nem faz sentido algum viver à caça de supostos sentidos heréticos nos discursos de outrem sob a desculpa de que tais não são infalíveis e portanto não obrigam. Isto é simplesmente um nonsense.

Muito bebê já foi jogado fora junto com a água suja sob essa desculpa furada de que tal ou qual texto não é infalível; e neste sentido este texto do André Brandalise é bastante pertinente. Mais do que um reles dever legal, a submissão ao Romano Pontífice é um animus, uma certa disposição de benevolência e de abertura para com o Doce Cristo-na-Terra. O Papa é um Monarca a quem temos que obedecer, sem dúvidas, mas é também um Pai em quem devemos confiar e de quem devemos aprender. Esta dimensão do Papado não pode ficar obscurecida.

Voltando ao «Magistério das Entrevistas», arrisco-me a dar também a minha visão sobre a novidade: elas provavelmente não serão nunca compendiadas no Denzinger. Mas há sobre elas duas coisas que precisamos ter em mente. A primeira é que estamos ouvindo um católico sábio e experiente falar, e o esforço que devemos fazer diante de pessoas assim é o de compreendê-las, não o de procurar enquadrar excertos dos seus discursos em esquemas heterodoxos para as desacreditar. E a segunda é que existe uma «vontade» pontifícia manifesta mesmo informalmente, um certo direcionamento – mesmo tácito – que ele quer dar ao seu pontificado, e isso interessa também a nós. Pode ser que nos seja útil e proveitoso se o soubermos encarar na sua informalidade; e pode ser que estejamos desperdiçando graças para as nossas vidas por conta do hábito de colocar «cada frase ou cada anedota» do Sumo Pontífice sob um microscópio teológico para as analisar esmiuçadamente em todas em cada uma das suas possíveis implicações.

«Lei natural e catolicidade» – Carlos Ramalhete

Fonte: Facebook

Uma experiência científica interessante, comparável com aquelas em que pesquisadores soltam carteiras pelas cidades do mundo para medir quantas são devolvidas, seria a de furtar abertamente bens alheios em todas as culturas do mundo. Tomar o chocalho do cacique, a espada do guerreiro, o sapato da velhinha, o pirulito da criança. E ficar ali, de bobeira, esperando para ver o que iria acontecer.

Arrisco o chute: o pesquisador levaria uma bela coça na imensa maioria dos lugares, e nos outros seria conduzido a algum sucedâneo formal da mesmíssima coça: cadeia, chibatadas, “bolos” de palmatória, o que for.

Isto ocorre por uma razão simples: o furto é condenado por lei natural. Lei esta que já vem, “de fábrica”, inscrita em nossos corações. Todas as sociedades são e sempre foram compostas por gente que conhece a lei natural. Há quem finja não a conhecer, que mude de calçada para não cruzar com ela, e alguns destes acabam sempre em cargos de mando. Mas, na verdade, é impossível não a conhecer. Uma sociedade pode até criar maneiras doentias e complicadas de negar um que outro aspecto dela, como quem deixa uma válvula de escape aberta. Mas ela está ali, e todos sabem dela.

E as condenações e obrigações da lei natural, tão bem conhecidas de todos, são necessariamente a base do nosso sentido de certo e errado e daquele curioso mecanismo que nos avisa quando ultrapassamos estes saudáveis limites: a nossa consciência.

Sabemos todos que é errado, é erradíssimo, é abominável!, matar um inocente. Podemos tentar justificar o injustificável, arranjar desculpas esfarrapadíssimas, peneiras furadas com que tentaremos tapar o sol da própria consciência. Podemos até mesmo fazer com que estas mentiras ganhem força de lei, e que os donos de escravos possamos estuprar e matar nossas escravinhas sensuais, os arianos puros possamos dar uma solução final aos incômodos judeus, os samurais possamos testar lâminas cortando camponeses ao meio, ou as vadias possamos nos livrar de uma gravidez indesejada matando nosso próprio filho.

Sabemos todos que é justo e necessário dar graças a Deus a todo momento. Não importa que substituamos Seu Nome por “ainda bem” ou “ufa”; no fundo, é a Ele mesmo que dá graças o chinês que acende um bastão de incenso aos “Céus” e o africano ofegante que se deixa cair de costas na pradaria, contemplando a infinitude do céu estrelado, agradecendo silenciosamente por ter sido livrado de uma fera que o atacava.

E sabemos todos que não devemos furtar. E não devemos mentir. E não devemos cometer adultério.

Quando, contudo, a sociedade enlouquece – e vivemos numa sociedade enlouquecida – é frequentemente necessário que lembremos a nós mesmos e ao próximo o que já sabemos todos, em virtude de ser lei natural. Que, por vezes, tenhamos que brigar para impedir que o mal seja imposto por lei e o bem proibido. Que precisemos salvar as vidas cujo valor é negado pelo século, pela loucura muito peculiar que ataca aquela sociedade naquele momento.

Este dever é de todos. Não é o dever específico do cristão, nem do muçulmano, do judeu, do hinduísta, animista, budista ou do zoroastrista.

Paradoxalmente, toda e qualquer religião tradicional – pelo simples fato de ser tradicional, por ter ouvido durante os séculos o que milhares, milhões de pessoas de boa-vontade tinham a dizer sobre a busca do Bem – há de conhecer, repetir e pregar a mesmíssima lei natural. Esta lei, contudo, não há de ser o cerne de sua pregação, por uma razão simples: ela não é nem algo que **precise** ser revelado pelo Divino nem um caminho suficiente até Ele.

A lei natural é o mínimo; é o que nos faz ser plenamente humanos, para, humanos que somos, podermos caminhar rumo ao Divino. Ela não é nem pode ser confundida com a mensagem religiosa que, entre outras coisas, a contém. A mensagem religiosa a contém por ser dirigida ao homem, e a lei natural é o que deve reger o homem na sua relação com o mundo ao redor.

A religião, todavia, não é nem tratado de boas maneiras nem código civil ou penal.

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*      *

Compete ao clero, do papa ao menor dos ostiários, pregar a Vida Eterna. Pregar a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, loucura para os gentios. Tratar das nossas almas, feridas nesta guerra sem tréguas a que somos chamados, com a medicina dos sacramentos. Alimentar-nos com o Pão dos Anjos. Curar-nos as almas, para que possamos viver no mundo sem a ele pertencer.

A adesão – ou não – da legislação e da política à lei natural não requer a atenção do clero. A relação entre o Estado e a lei natural não é tema de religião nem necessária à salvação.

Ao contrário, até: é uma armadilha demoníaca trata-la como se o fosse. Fazer da luta política pela proteção legal à vida do nascituro uma marca de catolicidade é, em última instância, negar que seja de lei natural que a vida do nascituro deva ser protegida. É negar-lhe a inocência, negar-lhe a humanidade, ao transformá-la falsamente em tema de Fé. Temos fé no que não vemos, e vemos – nem que seja pelos exames laboratoriais! – que o nascituro é vivo e é humano.

Mais ainda: assumir a luta pela lei natural como se fosse uma luta intrinsecamente católica é cair na armadilha da mídia, que não consegue perceber o que realmente é a Igreja e a reduz àquilo em que a Verdade eterna faz intersecção com as besteiras do século, e olhe lá. É auxiliar a pregar que a Igreja é um bando de esquisitões dizendo “não” às alegrias, e só. É fazer com que a luta pela vida seja percebida como uma maluquice a mais, irracional – ou mesmo antirracional –, pregada por loucos sem noção alguma do mundo real.

Isto ocorre porque esta redução da Igreja ao combate contra a violação deste ou daquele aspecto da lei natural faz com que aquilo que é realmente intrinsecamente católico desapareça. Se a Igreja **é** o combate ao aborto, à distribuição de camisinhas ou ao “casamento gay”, ela ***não é*** o Cristo. Ela não é a Encarnação do Verbo. Ela não é a Imaculada Conceição. Ela não é o Santíssimo Sacramento.

O que compete à Igreja pregar é o Eterno, é a Verdade Revelada. Esta Verdade – que é uma Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade! – tem, sim, corolários. Entre outros, ela ilumina e atrai a atenção a algo que já é de lei natural, que é o valor e a dignidade da vida humana. Da vida do camponês, da mulher, do judeu, do escravizado, do nascituro.

Não podemos, contudo, reduzir ou deixar reduzir a especificidade católica a um ou mais corolários do que é o cerne da mensagem e do próprio ser da Igreja: o Cristo. Não podemos permitir que a imprensa venha nos pautar, que ela venha a transformar a luta pela vida em catolicidade ou a catolicidade em luta pela vida. Ou contra o “casamento gay”. Ou contra a exploração do pobre, especialmente o órfão ou a viúva. Em todos estes pontos, a Revelação ilumina e atrai a atenção a um ponto de lei natural. Não é, contudo, a Revelação que faz com que tenhamos o dever de agir neste ou naquele sentido na sociedade, sim a lei natural.

O combate pela lei natural é o combate de todo ser humano, não só de todo católico. É um combate a que somos chamados individualmente ou em grupos e associações que formemos; serão, contudo, associações de pessoas, não braços da Igreja. Uma ação de pessoas, de leigos, de indivíduos, de quem quer combater o mal – católico ou não –, não um braço pastoral.

A Igreja, lembrou-nos com razão o Santo Padre, é como um hospital de campanha, um hospital feito de lona, localizado logo ao lado do campo de batalha.

A batalha pela lei natural é nossa, como seres humanos. Quando nossos amigos também batalham por ela – como é seu dever, por serem eles também seres humanos – e não têm acesso ao hospital, não acedem aos Sacramentos, levemo-los, sem dúvida! Mas esta já é outra batalha, quiçá bem mais importante.

Se o nascituro não pode se defender, compete a cada um de nós, seres humanos, lutar pela vida de todo ser humano inocente. Em cada ser humano inocente que é assassinado toda a humanidade é atacada. O assassinato de inocentes é a negação da própria humanidade, e combate-lo é dever de todo ateu, muçulmano, judeu, budista… ou católico. Este combate é um combate humano, feito em prol da humanidade. Não é um combate religioso, nem o pode ser. Dizer que é um combate religioso é negar o valor do combate e permitir que ele seja tratado como uma idiossincrasia idiota qualquer, pois é assim que o mundo trata a religião.

É urgente que não nos deixemos mais confundir. Que não façamos mais a besteira de querer que o Papa implore a governantes de terceiro mundo que aprovem ou vetem esta ou aquela lei antinatural, que nós, leigos, burramente deixamos passar. Ao Papa compete pregar a Cristo crucificado. A nós, leigos, é que compete combater no terreno imundo da política.

É urgente que não mais nos confundamos. Que não façamos mais a besteira de levar imagens de santos para passeatas em que estamos lutando pelo humano, não pelo divino. Passeatas pedem cartazes, gritos e a lembrança permanente de que estamos ali por sermos seres humanos, não por sermos católicos.

É urgente que não mais confundamos as almas. Que não ofendamos a Deus e a Seus Santos, levando cartazes, bonequinhos e balõezinhos de campanhas políticas – por mais nobres que sejam!!! – para as procissões em que prestamos homenagem e culto de veneração e rogação a Seus Santos. Cartazes, bonequinhos e balõezinhos são feitos para serem vistos pelos homens. Procissões são feitas para que os Céus nos ouçam.

Que Deus nos ajude, para que sejamos os seres humanos que Ele quer!

– Prof. Carlos Ramalhete

A “reforma histórica” do Papa Francisco (II) – Os casais divorciados

Dando continuidade ao que já comecei a escrever aqui anteriormente, um outro tema eclesiástico passível de «reforma» com conseqüências que só posso considerar nefastas é a situação dos casais católicos que vivem em «segunda união».

O problema é muito grave; Bento XVI não teve receios de o classificar como «una vera piaga» dos tempos modernos (“uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo”, na tradução controversa que está no site do Vaticano). É uma «praga», sim, mas é também e principalmente uma chaga, uma ferida, que é a tradução mais exata do «piaga» italiano.

Digo que é uma «chaga» porque é uma situação indiscutivelmente dolorosa para os envolvidos, que contam com bem poucas opções: ou esperam a morte do primeiro cônjuge, ou abandonam a sua segunda família (que muitas vezes se trata da família de fato), ou recorrem aos tribunais de nulidade.

Aguardar a morte do cônjuge verdadeiro é uma “solução” que, na prática, não se trata de solução nenhuma. Primeiro porque não há nada que se possa fazer concretamente aqui (assassinar o cônjuge, além de ser um evidente pecado contra o Quinto Mandamento, ainda é, segundo o Direito Canônico, impeditivo para a contração de novas núpcias). Segundo porque condicionar a saúde da própria alma à morte de alguém com quem já se relacionou no passado é no mínimo mesquinho, e não raro monstruoso e doentio. Terceiro porque devem ser bem poucos os casos que são “resolvidos” desta maneira, uma vez que o mais natural é que ambos os cônjuges levem uma vida mais ou menos longa e, portanto, é de se esperar que o bafo frio da Morte só rompa os liames do Sagrado Matrimônio quando constituir uma nova família não tenha mais o vicejo atraente com o qual a idéia se apresentava quando ainda se era relativamente jovem.

Abandonar a/o amante é sem dúvidas a solução mais radicalmente correta: o ímpeto de «mudar de vida» é a conseqüência mais óbvia que se espera de alguém que passe a ter consciência de estar vivendo em pecado grave. Trata-se de uma opção heróica cujo valor não pode ser minimizado: de forma alguma! No entanto, as coisas no mundo real muitas vezes não são assim tão simples. Como falei, por vezes acontece da «segunda união» ser a união de fato: os esposos podem estar já juntos há anos, décadas talvez, podem já ter patrimônio comum e (mais grave) filhos, para os quais a separação dos pais não tem um efeito menos daninho do que um divórcio para os filhos legítimos de um casal regularmente casado

[É preciso registrar aqui uma segunda modalidade de «abandonar a/o amante»: trata-se do que o próprio Bento XVI expôs na seguinte passagem da Sacramentum Caritatis: «Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio». Trata-se, em suma, de manter em tudo a vida familiar já estabelecida, à exceção das práticas sexuais. Infelizmente, a “invisibilidade” deste sacrifício (uma vez que, de fora, nada muda na vida do casal) e o alto grau de heroísmo que ele exige (mais ainda do que o abandono puro e simples, uma vez que a coabitação, mesmo «como irmão e irmã», comporta uma ocasião de pecado objetiva nada negligenciável) tornam-no tremendamente difícil e impopular para resolver um problema generalizado como este que estamos aqui abordando.]

Sobram os «tribunais de nulidade», sobre os quais Bento XVI falou na exortação pós-sinodal anteriormente citada:

Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico, a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que «é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis».

Eu morro de medo de tribunais de nulidade, ou melhor, da popularização dos tribunais de nulidade. E isso porque a (enorme!) distinção entre nulidade e anulação é muito difícil de ser assimilada pelas massas. Exteriormente, visivelmente, para a imensa maioria das pessoas uma declaração de nulidade em nada se distingue de uma certidão de divórcio: trata-se de um documento que permite à pessoa “casar de novo”.

Mais ainda: pela minha experiência, dado o estado de miséria religiosa em que se encontra atualmente a maior parte dos católicos, estou intimamente convencido de que o número de Matrimônios nulos atinge facilmente a casa dos 50%. Ora, se os Tribunais Eclesiásticos dessem uma Certidão de Nulidade para cada Matrimônio que de fato é nulo, isso bastaria para que as taxas de nulidade católica se igualassem às de divórcios nos Cartórios Civis! Que golpe mais duro se poderia dar no Matrimônio que a Igreja prega ser «indissolúvel»?

Em uma das crônicas compendiadas no “Claro Escuro” de Gustavo Corção, ele fala que há casais para os quais seria justificável o divórcio. Não obstante, mesmo a estes casais o divórcio não deveria ser concedido, porque o Matrimônio é uma instituição cuja importância transcende os casais concretos: estes deveriam permanecer casados para dar exemplo e testemunho da indissolubilidade matrimonial aos demais casais do mundo. Mutatis mutandis, penso que o mesmíssimo se aplica aos casos de nulidade matrimonial: nem todos os casamentos nulos deveriam receber uma certidão de nulidade, porque a irrevogabilidade dos juramentos prestados diante do altar de Deus é um bem a ser preservado acima dos interesses dos particulares, por legítimos que estes sejam.

É portanto com temor e apreensão que eu vejo uma certa «popularização» dos tribunais de nulidade como se estes fossem “a Solução” para os casais recasados, quando para mim é óbvio que a verdadeira solução só pode ser impedir que “católicos” irresponsáveis simulem sacramentos na Igreja de Deus. Enquanto não se quiser enfrentar este problema com a seriedade que ele exige, ulteriores tentativas de consertar erros passados só vão aumentar ainda mais aquela «chaga» que Bento XVI deplorava na Sacramentum Caritatis.

Como vimos, Bento XVI já clamava por «tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais [de nulidade] cada vez mais acessível aos fiéis», e isso já me dava um frio na espinha. O Papa Francisco parece determinado a pôr isso em prática. Na entrevista realizada no vôo de volta a Roma após a JMJ, ao ser perguntado sobre este assunto, o Sumo Pontífice deu a seguinte resposta:

Este é um tema que sempre pedem. A misericórdia é maior do que aquele caso que o senhor põe. Eu creio que este seja o tempo da misericórdia. (…) Mas os próprios ortodoxos – e aqui abro um parêntese – têm uma prática diferente. Eles seguem a teologia da economia, como eles dizem, e dão uma segunda possibilidade, permitem-no. Mas eu acho que este problema – e fecho o parêntese – deve ser estudado no quadro da pastoral do matrimônio. E, para isso, temos duas coisas: primeira, um dos temas a consultar a estes oito cardeais do Conselho dos Cardeais, com quem nos reuniremos nos dias 1, 2 e 3 de outubro, é como avançar na pastoral do matrimônio, e este problema será lançado lá. E uma segunda coisa: esteve comigo, quinze dias atrás, o secretário do Sínodo dos Bispos, para ver o tema do próximo Sínodo. O tema seria antropológico, mas olhando-o de um lado e de outro, indo e vindo, encontramos este tema antropológico: a fé como ajuda no planejamento da pessoa, mas na família para se debruçar depois sobre a pastoral do matrimônio. Estamos a caminho de uma pastoral do matrimônio um pouco mais profunda. E este é um problema de todos, porque há muitos, não? Por exemplo – digo apenas um – o cardeal Quarracino, meu predecessor, dizia que para ele metade dos matrimônios são nulos. Mas dizia isso, porquê? Porque casam-se sem maturidade, casam-se sem notarem que é para toda a vida, ou casam-se porque socialmente se devem casar. E com isso tem a ver a própria pastoral do matrimônio. E também o problema judicial da nulidade dos matrimônios: isso deve ser revisto, porque os Tribunais eclesiásticos não são suficientes para isso. É complexo o problema da pastoral do matrimônio. Obrigado!

A referência à epikéia ortodoxa, mesmo feita entre parênteses, é significativa e angustiante. Os cismáticos orientais não acreditam na indissolubilidade matrimonial; permitem segundas (e terceiras… e quartas…) núpcias em alguns casos, ao arrepio da Lei de Deus. Obviamente, eu não penso que o Papa vá introduzir esta praxis herética no Ocidente, mas há uma maneira muito simples de seguir-lhe o espírito mesmo respeitando a Doutrina e o Direito: basta estimular os católicos a pleitearem a nulidade do seu primeiro Matrimônio nos Tribunais Eclesiásticos! Doutrinariamente perfeito, canonicamente impecável, pastoralmente desastroso. Se já é difícil às pessoas acreditarem na santidade do Matrimônio, quando se passarem a realizar na Igreja segundas núpcias à mesma proporção que “recasamentos” civis nos Foros de Justiça aí é que o número de matrimônios inválidos vai aumentar ainda mais!

Quem quer que passe os olhos sobre as notícias atuais percebe que a questão dos divorciados na Igreja está na ordem do dia. Ainda não se sabe exatamente o que o Sumo Pontífice vai dispôr para a Igreja; mas dessa “reforma histórica” pode muito bem vir algo de muito, muito ruim. Rezo para que o Espírito Santo ilumine o Vigário de Cristo e ele me surpreenda positivamente neste assunto: porque, se a Igreja continuar no caminho que vem há anos ensaiando, a terrível chaga do divórcio na sociedade contemporânea só vai se tornar maior, mais purulenta e mais difícil de ser sanada.