O vigor necessário ao Pontificado

Hoje faz três anos que o mundo tomou conhecimento da renúncia do Papa Bento XVI. Eu me lembro daquele 11 de fevereiro: era uma segunda-feira de Carnaval, e a voz cansada do velho alemão antecipou a Quaresma de uma multidão de católicos mundo afora. Ficamos atônitos, pegos de surpresa por um acontecimento com séculos de ineditismo (não faltou aliás quem dissesse que a renúncia era inédita tout court, guardando importantes diferenças com os outros — parcos — casos análogos de que a História da Igreja dava exemplo); e mesmo com três anos de distância a história ainda se nos revela surpreendente.

Aquela Declaratio é bastante lacônica; ela basicamente estabelece que «para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito». É provável que a maior parte das pessoas tenha lido, naquele texto, uma referência à saúde física do Pontífice que então contava já com 85 anos. Penso, no entanto, que o verdadeiro «vigor» que o Pontífice bávaro sentiu lhe faltar foi o «do espírito».

Sob essa ótica as coisas fazem mais sentido. Em primeiro lugar, caem por terra as “reclamações” (!) de que Bento XVI ainda está vivo mesmo três anos após ter renunciado (!!), como se o pobre Pontífice precisasse cair morto sob o peso do Papado antes de poder legitimamente a ele renunciar — ou como se o quotidiano recluso do Bispo Emérito de Roma tivesse o mesmo impacto sobre a sua expectativa de vida que o dia-a-dia enérgico de um Pontífice em atividade.

Depois, porque é neste aspecto que mais saltam aos olhos as diferenças entre o Papa Francisco e o seu predecessor. Um amigo que estivera no Vaticano durante o Conclave disse-me depois que, logo após a fumata bianca, na Praça de S. Pedro, quando o eminentissimum ac reverendissimum Dominum Georgium Marium Cardinalem Bergoglio era apresentado ao mundo sob o nome de Franciscus, um dos peregrinos que estava naquela multidão teria dito, em tom de desprezo: ah, un altro vecchio!

E é exatamente isto: fisicamente falando, o Papa Francisco não passa de “um outro velho”, talvez com até mais problemas de saúde pré-existentes do que Bento XVI. No entanto, com que vigor de espírito ele assomou ao sólio pontifício! Como o prof. Ramalhete gosta de dizer, o velho argentino «partiu para o ataque» — e isso parece incontestável quer entre os detratores do Papa Francisco, quer entre os seus admiradores. Nos últimos três anos a nau da Igreja singrou com mais ímpeto, e isso não negam mesmo os que acusam de temerário o timoneiro.

Finalmente, porque esta me parece uma característica peculiar do velho professor da Baviera, mais amigo das bibliotecas que das multidões. Talvez nunca tenhamos tido um Papa como o foi Joseph Ratzinger, acadêmico visceral; e o mundo diante do qual ele foi posto à frente da Igreja guardava pouca ou nenhuma semelhança com a situação ideal de fala que os teóricos do discurso almejam encontrar. É por isso que Ratzinger pôde discutir com Habermas, um acadêmico como ele; mas diante dos bispos seus subordinados o Papa Bento XVI só pôde se queixar dos ataques que lhe desferiram católicos «com uma virulência de lança em riste». Digamo-lo francamente: a Igreja do séc. XXI não estava à altura de Bento XVI — e, portanto, que ele talvez não fosse a pessoa ideal para estar à frente desta Igreja é uma conclusão bastante triste, mas não surpreendente.

Faz três anos, e não sei se a Igreja se encontra hoje melhor do que naquela fatídica segunda-feira. Mas é também dia de Nossa Senhora de Lourdes, conhecida por Seu maternal cuidado pelos doentes de toda espécie. Que Ela olhe pelo Bispo Emérito de Roma, cuja Grã-Renúncia hoje lembramos. Que Ela interceda pelo Vigário de Seu Divino Filho, o Papa Francisco. E — principalmente — que Ela cure as feridas da Igreja, hoje tão abertas e purulentas que A conduziram a esta situação inaudita. Valha-nos a poderosa intercessão da Virgem de Lourdes; que as dores do mundo apressem o prometido triunfo do Seu Imaculado Coração.

Calendário – Quaresma 2016

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A Quaresma é aquele tempo do Ano Litúrgico — tempo belíssimo! — onde o chamado à conversão é mais premente; onde aquele brado de S. João Batista sobre o machado estar já «posto à raiz das árvores» (cf. Mt III, 10) ressoa-nos mais forte aos ouvidos. Não se trata de uma ameaça vazia cujo objetivo é nos impingir terror a ponto de nos deixar petrificados; ao contrário, é um convite amoroso para que endireitemos as nossas veredas enquanto é tempo.

Deus nos concede as graças para mudar de vida! Na homilia de hoje o padre nos recordava que este tempo oscila entre a misericórdia e a conversão: a misericórdia, da parte de Deus, que não falta nunca; e a conversão, de nossa parte, pela qual havemos de Lhe agradecer.

E nos esforçar…! Quaresma, enfim, é tempo de exercícios espirituais. Para tanto pode ser útil elaborar um calendário, indicando que pequena obra de misericórdia concreta pode ser oferecida a Deus em cada um desses 40 dias que nos separam da Páscoa. Este, do Regnum Christi, serve de modelo: que cada um encontre os jejuns, esmolas e orações com os quais preencher sua Preparação.

Vivamos bem esta Quaresma — que pode ser a nossa última!

Mudanças na Cerimônia do Lava-Pés — o que significam?

Hoje, no site do Vaticano, foram tornados públicos dois documentos: uma carta que o Papa Francisco enviara ao prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no final de dezembro de 2014, onde solicitava uma alteração nas rubricas do Missal Romano referentes à Missa da Quinta-Feira Santa para que estas autorizassem o uso de mulheres na cerimônia do Lava-Pés (e não apenas fiéis do sexo masculino — viri selecti — como se dispunha até então); e o Decretum daquela Congregação determinando a mudança do Rito, datado de seis de janeiro p.p. (em italiano aqui). Uma tradução não-oficial da carta pontifícia pode ser encontrada aqui, e é de onde tiro o seguinte excerto:

[D]esde há já algum tempo que estou a reflectir sobre o Rito do “lava pés”, inserido na Liturgia da Missa in Coena Domini, com a finalidade de aperfeiçoar o modo com que se realiza, para que exprima plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, a sua entrega “até ao fim” para a salvação do mundo, a sua caridade sem fronteiras.

Antevendo as críticas, talvez não seja despiciendo lembrar aquela declaração solene do Concílio de Trento segundo a qual «a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares» (Trento, Sessão XXI, Cap. 2 (931)). Portanto, não há espaço para os já tradicionais rasgar de vestes de um lado e lançar confetes do outro, como se o Papa estivesse dilapidando o patrimônio divino do Cristianismo ou abrindo enfim as portas da Igreja às reivindicações do mundo moderno. Desde que o mundo é mundo que a Igreja pode «mudar (…) o que julgar conveniente» em Seus ritos litúrgicos. O Papa está, portanto, no mais pacífico exercício do seu munus de governar a Igreja. O resto é tentativa desprezível de capitalizar as atitudes papais em benefício da própria agenda político-ideológica. Não merece atenção.

São outras as coisas que aqui merecem uma consideração mais atenta. Primeiro, uma consideração de ordem, digamos, sociológica: da forma como as normas litúrgicas são recebidas no seio das Igrejas Particulares. No interior do caos litúrgico em que nós infelizmente vivemos, a presença de mulheres na celebração de Lava-Pés não se pode chamar de novidade inaudita. Em parte devido à terrível ignorância dos católicos — conticuit populus meus eo quod non habuerit scientiam… –, em parte pelo aberto descontentamento de alguns a respeito da posição da Igreja sobre a diferença entre os sexos, o fato é que a utilização de mulheres entre os viri selecti exigidos pelas rubricas já se havia constituído em um verdadeiro costume contra legem.

A idéia de legalizar o abuso para o coibir não é indene a críticas, principalmente porque ela evoca — mutatis mutandis — certas práticas de política criminal pouco honestas que intentam reduzir os índices de criminalidade por meio da descriminalização dos crimes. No entanto, dela se pode ao menos dizer que é mais honesta e coerente do que a situação anterior, onde o Papa vinha a público lavar os pés de mulheres quando as rubricas expressamente o proibiam. Sendo o Papa a autoridade competente em matéria litúrgica para determinar quais os pés que se podem lavar na Missa In Coena Domini, não fazia o menor sentido que ele, podendo mudar a lei, insistisse na sua violação. Por mais que se trate de um aspecto que alguém pode dizer de somenos importância, a fidelidade é de ser buscada mesmo nas pequenas coisas. Com o Decretum do início deste mês, o Papa Francisco deixa de praticar abusos litúrgicos neste quesito — o que não deixa de provocar um certo alívio.

Uma segunda coisa importante a ser considerada é o motivo pelo qual as rubricas previam que apenas homens fossem escolhidos para o Lava-Pés. A argumentação tradicional ia na linha de que aquela cerimônia estava inserida no contexto da Última Ceia, para a qual Nosso Senhor não convocou senão os Apóstolos — homens todos eles. É o argumento, aliás, usado para vedar às mulheres o acesso ao sacerdócio ministerial: foi Cristo quem expressamente as excluiu deste ministério específico, não obstante as tenha enviado para fazer uma centena de outras coisas importantes (como, por exemplo, serem testemunhas privilegiadas da Ressurreição). À parte quaisquer discordâncias interpretativas que possa haver aqui, o fato histórico inconteste é que, na primeira Quinta-Feira Santa, apenas homens tiveram os seus pés lavados por Nosso Senhor.

Pode-se lamentar o fato de que esta mudança litúrgica, além de negligenciar a exatidão histórica dos fatos que na Semana Santa se celebram, possa enfraquecer o sentido do sacerdócio ministerial. Afinal (já ouço os inimigos da Igreja bradarem…), se até mesmo ao Lava-Pés as mulheres se fazem presentes, por que excluí-las da Ceia que vem logo em seguida? Não seria o caso de se repensar a Ordinatio Sacerdotalis?

Em resposta a este sofisma vem a terceira coisa importante desta mudança litúrgica. Com ela, o Papa Francisco introduziu oficialmente uma clivagem na celebração da Última Ceia, explicitando uma distinção teológica que, conquanto fosse evidente, não tinha ainda — ao menos não neste contexto — expressão litúrgica que lhe correspondesse.

Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. Na primeira delas proclama o mandamento do serviço; na segunda, institui o sacerdócio ministerial. Parece bastante óbvio que os destinatários de ambas as mensagens não são os mesmos: embora apenas os sacerdotes ordenados tenham o poder de oferecer o Santo Sacrifício da Missa, é a todos os cristãos que se estende o mandato do serviço expresso no «também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros». Na mesma Noite, em seus dois momentos distintos, os Apóstolos estão representando parcelas diferentes do povo de Deus. À Mesa, enquanto convivas que recebem o Pão e o Vinho das mãos do Divino Redentor, fazem as vezes dos sacerdotes ordenados; mas enquanto servidos por Cristo que, toalha à cintura, lava-lhes os pés, representam a totalidade dos cristãos. Apenas os sacerdotes têm o poder e o dever de celebrar a Missa; mas o mandatum da Caridade, têm-no todos os católicos — homens e mulheres, velhos e jovens, doentes e sãos, leigos, clérigos e religiosos — e não apenas os sacerdotes ordenados. Sob essa ótica, a separação dos dois momentos antes distingue que confunde os papéis.

Há sem dúvidas a possibilidade de que homens maliciosos empreguem a mudança para tentar rediscutir sentenças definitivas do Magistério da Igreja; cumpre, portanto, desautorizá-los desde já. O Papa pediu que aos fiéis que fossem escolhidos para o Lava-Pés «seja dada uma explicação adequada do significado do próprio rito»; o Decretum que o regulamenta manda também, explicitamente, aos pastores «istruire adeguatamente sia i fedeli prescelti sia gli altri» — instruir adequadamente tanto os fiéis escolhidos quanto os outros. Sejam, portanto, todos devidamente informados. O mandatum caritatis, expresso no Lava-Pés, é coisa distinta do potestas sacerdotalis conferido ao partir do Pão. Tendo o Romano Pontífice distinguido claramente as duas coisas, não seja dada aos lobos a oportunidade de confundir o rebanho do Senhor.

O mundo velho e o vinho novo

Vi no Facebook uma chamada do pe. Kramer para a homilia que o Papa Francisco proferiu ontem na Casa Santa Marta. E vi-a sob um viés profundamente negativo: o sacerdote citava o texto dizendo que a preleção pontifícia era uma inversão do ensino católico. Os papas sempre haviam ensinado que era preciso não inovar, mas seguir a tradição; o Papa Francisco, ao contrário, dizia que — para usar a manchete do Catholic Family News — aqueles que resistem às mudanças são rebeldes obstinados e idólatras, e são culpados de “divinização”!

Eu imediatamente apontei um distinguo: do fato de se deverem evitar as inovações na Doutrina não segue que toda inovação seja execrável, por um lado, e, pelo outro, a condenação do Papa aos que “resistem às mudanças” não abarca por si só os que resistem contra mudanças doutrinárias. Trata-se, claramente, da célebre dicotomia entre a Doutrina e a expressão da Doutrina (ou melhor, em um sentido mais amplo, entre os aspectos doutrinários e os não-doutrinários da vida cristã) que eu já pincelei aqui no blog quando Bergoglio nem sonhava em ser Papa.

Ainda: a meditação pontifícia centra-se em condenar aqueles que justificam as suas atitudes por meio do «sempre si è fatto così!» — sempre se fez assim. Se por um lado eu claramente percebo como um rad-trad possa vestir esta carapuça, por outro lado não é possível admitir que lhe assista razão em sua queixa. Isto por uma razão muito simples: não seguimos o Cristianismo porque entre nós “sempre se fez assim”, mas sim porque o Cristianismo é a Religião Verdadeira! Há sem dúvidas muita nobreza em respeitar as tradições da família e da pátria, mas isso não é, absolutamente, um valor em si mesmo. É pelo fato de o Cristianismo ser verdadeiro que os que nos antecederam o preservaram, e não por ele ter sido preservado que é verdadeiro. Esta ordem, aqui, é absolutamente fundamental, e desconsiderá-la é equiparar o Cristianismo aos antigos pagãos — afinal, também eles honravam os deuses dos seus antepassados…

Na meditação do Papa Francisco, assim, não há nenhuma condenação às coisas antigas — à «tradição» defendida de S. Clemente a Bento XV — pelo simples fato de serem antigas, no que se poderia interpretar como um desejo desordenado por mudanças, uma sede de inovações (inclusive Sua Santidade o diz com todas as letras: «cosa significa questo, che cambia la legge? No!»); como não há também censura alguma, note-se, simplesmente aos que àquelas coisas aderem. Não se critica o amor ao passado; critica-se, isto sim, o desdém pelo presente. Trata-se de uma diferença muito grande e muito importante, porque se por um lado ninguém pode abandonar o passado, por outro a ninguém é lícito — salvo talvez vocações especialíssimas — fugir do presente.

Ora, nós não somos espíritos desencarnados vagando a esmo por uma dimensão etérea, alheios ao mundo dos homens e às suas contingências; não. Somos seres humanos dotados de alma e corpo — de um corpo que se encontra geograficamente delimitado e também historicamente situado. Aprouve à Divina Providência que nós vivêssemos em um lugar concreto e em um tempo determinado. Cada um de nós é chamado a viver a sua vida da melhor forma, e isso significa viver o presente por duro que ele seja. Se Deus nos pôs neste mundo atual, com todos os seus problemas e todas as suas dificuldades, é este mundo atual, doente e falho, que somos chamados a converter ao Evangelho — e é neste mundo, com todas as suas vicissitudes, que temos que nos santificar. Não há outra opção.

Sempre si è fatto così é uma forma de dizer “nunca se fez de outra maneira”; mas outras maneiras podem ser necessárias para novas situações e, neste sentido, dizer que nunca se fez diferente equivale a queixar-se de que o mundo nunca foi como é hoje. Ora, mas essa é uma queixa absurda e sem sentido. Deus nos chama a pelejar contra os inimigos atuais, e não temos o direito de murmurar que a Cristandade nunca os viu tão pérfidos e tão numerosos, que a Igreja jamais os enfrentou tão vis e tão cruéis. Devemos fazer guerra incansável contra os inimigos à frente dos quais nos coloca a Providência! Que eles não tenham sido jamais enfrentados antes é um detalhe que deve preocupar somente pagãos. Não nos exime do combate.

O mundo está velho e não suporta mais o vinho novo do Evangelho. E não temos o direito de desperdiçar a Sã Doutrina despejando-a em vasos rotos — falando a ouvidos moucos — sob a escusa de que sempre se fez dessa maneira, quando os odres não estavam tão estragados, quando os homens ainda eram capazes de ouvir. Se os odres estão imprestáveis, se os homens ensurdeceram, exigem-se novas maneiras de lhes fazer chegar à alma a Boa Nova da Salvação. Cabe a nós, servos inúteis, fazer o que for necessário — ainda que nunca se tenha feito antes — para o cumprimento deste dever.

Enquanto houver pecadores

Estamos às vésperas do Natal, e estamos cansados. Não foi fácil este 2015; estamos cansados, esgotados até!, a ponto de se nos faltarem as forças mesmo para seguir em frente. Retrospectiva? Talvez o ano não tenha sido de tantas vitórias a celebrar, de tantas coisas positivas assim. Perspectivas? O próprio suor no rosto embota a visão e não permite enxergar longe, e os músculos tesos sob o fardo do ano que finda parecem incapazes nos conduzir à próxima esquina.

Estamos cansados, e na verdade importa pouco se tal cansaço é legítimo ou não. Tanto as trevas da noite quanto a cegueira nos impedem de ver o caminho que devemos trilhar, e diante do corpo que já não responde ao desejo de continuar andando não cabe perguntar se tal é fruto de desgaste ou de lassidão. A fadiga que a gente sente cansa do mesmo jeito.

Mas estamos às vésperas do Natal e isso importa. Porque não existe ano difícil que não possa ser consolado pelo nascimento de um Deus feito menino, e não existe cansaço que resista às ordens d’Aquele que prometeu aos fatigados que lhes daria descanso. Não existem trevas que não dêem lugar à luz verdadeira que ilumina todo homem! Enquanto houver pecadores Deus virá ao seu encontro. Hoje, como naquele dezembro distante, Ele vem para os Seus. E hoje, ao menos, importa que O recebamos.

Tem sido obviamente má compreendida a ênfase na misericórdia que o Papa Francisco por vezes impinge aos seus discursos. Ter misericórdia não significa o mesmo que condescender com o comportamento alheio, e em nenhum dicionário decente pode significar “chamar o mal de bem”. A misericórdia pressupõe o pecado; não o nega e nem o pode negar. A misericórdia, aliás, pressupõe os miseráveis: a eles — e só a eles! — se dirige. Haverá misericórdia enquanto houver pecadores. Retire-se o pecado, a misericórdia deixa de fazer sentido.

Mas também a misericórdia, para ser misericórdia verdadeira, precisa ser transformadora e não tem como ser diferente: ela transforma o homem pecador em virtuoso e não o pecado em virtude. É somente no coração dos homens que ela age e precisa produzir os seus efeitos. De outro modo é apenas oferta graciosa rejeitada pelos insensatos. De outra maneira é, mais uma vez, lux [quae] in tenebris lucet et tenebræ eam non conprehenderunt. Nada de novo, para vergonha nossa.

É Natal e é tempo — se assim se pode dizer — de atávicas ingratidões. Dois mil anos de Cristianismo não transformaram a Encarnação do Verbo no grande evento de conversões profundas que se poderia imaginar. Hoje, como naquele primeiro Natal, são poucos os que se reúnem em torno ao Deus feito Menino. Mas enquanto houver pecadores Ele nascerá. O nascimento de Jesus Cristo não exime ninguém de lutar pela própria perfeição: a voz de São João Batista clamando no deserto logo o dirá. Enquanto ainda houver pecadores, jamais se falará em misericórdia o suficiente. E enquanto continuar havendo pecadores, não se terá dado à Misericórdia a resposta que ela merece.

Estamos cansados, eu dizia, mas é Natal e temos duas opções. Podemos nos fechar no nosso próprio cansaço e, desanimados, acreditar que nada mais pode ser feito; mas podemos também deixar que o canto de Gloria dos anjos ecoe nos mais profundos recônditos de nossa alma e, abrindo-a de par em par ao Deus-Conosco, enxugar o suor e seguir em frente. Espera-se conversão daqueles a quem é oferecida misericórdia; aos que se oferece descanso, o que se exige — sem dúvidas — é a luta. Ad majorem Dei gloriam. Melhor do que vimos fazendo até então.

Que desta vez o Menino Jesus encontre ao menos mais uma alma disposta a velar-Lhe o sono infantil. Que Nosso Senhor seja recebido por pelo menos mais um daqueles para os quais Ele veio sofrer e morrer. Que desta vez as trevas cedam — um pouco mais! — à Luz que vem do Céu. Que não seja em vão.

Afinal, um Menino nos foi dado! Mostremo-nos agradecidos. Façamos — minimamente! — por onde O merecer.

Feliz Natal!

Por que não ataco o Papa Francisco? Ora, porque não sou papista!

As reações ao último texto daqui do blog ensejam uma reflexão oportuna. Sintetizando diversos comentários no mesmo sentido, um leitor acusou-me de escrever escondendo informações “importantes” e “embaraçosas” a respeito da atual situação da Igreja. Como exemplo paradigmático do tipo de informações que estão (no entender dele, injustificadamente) ausentes das minhas análises, ele afirmou o seguinte:

Você, por exemplo, nada comenta sobre a montanha de evidências que mostram o Papa Francisco favorável à comunhão dos recasados

Ora, isso não é de todo exato. Eu nada comento a respeito deste assunto e de outros correlatos, exceto quando é para dizer que aquilo de que acusam o Papa não é exatamente assim como estão dizendo — nestes casos, aliás, eu já comentei aqui muitíssimas vezes: à guisa de exemplo, eu poderia citar o que escrevi quando disseram que o Papa era a favor do desarmamento, que ele condenara taxativamente a pena de morte, que dissera que o inferno não existia e/ou eterno não era ou até mesmo — pasmem! — quando se levantou uma polêmica terrível, instaurada, claro, por S. S. o Papa Francisco, para se saber se os cãezinhos e gatinhos iam ou não para o Paraíso. Não é portanto exatamente verdade que eu nada comento sobre aquilo que é desabonador a Sua Santidade. O que é verdade — e que provavelmente é o que o autor do comentário quis dizer — é que eu não confiro ares de seriedade e importância a este tipo de informação. Não lhe concedo cidadania aqui no blog.

E isto, sim, eu assumo: não, não faço eco, não mesmo, aos boatos desabonadores a respeito do Vigário de Cristo, e nem acho que outras pessoas deveriam fazê-lo, porque isto — como disse ontem no comentário e desenvolvo melhor agora — é irrelevante para o Catolicismo, irreverente para com o Santo Padre e daninho às almas.

Em primeiro lugar é irrelevante porque o que o Papa pensa ou deixa de pensar privadamente, ou mesmo aquilo que ele insinua em conversas informais, não faz parte do Magistério da Igreja, não é de adesão obrigatória aos fiéis católicos e, portanto, não integra a “regra próxima da Fé” que deve ser seguida por todo fiel. O que o Papa diz (ou mesmo pensa) privadamente não interessa à Fé. Não faz o menor sentido, e para ninguém!, pretender que o Catolicismo seja uma religião que se constrói e apreende na coloquialidade com o Papa — ou, melhor dizendo, com o filtro que os meios de comunicação apresentam do Papa –, como se já não existissem montanhas de conhecimentos a respeito do Catolicismo, como se tudo isso não fosse desde sempre obrigatório a todo católico (inclusive ao Papa!) ou como se o Cristianismo de vinte séculos estivesse a todo momento periclitante, sempre dependendo da próxima entrevista pontifícia para ser confirmado ou ruir por terra.

A Doutrina Católica existe há dois mil anos! Ela não é uma terra virgem a ser desbravada — e só então conhecida –, palmo a palmo, pelas incursões midiáticas de Papa algum. O que o Papa Francisco supostamente disse — para ficar no exemplo mais recente — a respeito da Eucaristia para os luteranos não é elemento chave para a compreensão das regras católicas a respeito da communicatio in sacris. É deprimente até mesmo que isso esteja sendo discutido.

Ainda que o Papa fosse realmente favorável à comunhão dos recasados — concesso non dato –, corroborando a “montanha de evidências” que o meu leitor garante existir, ainda assim, isso em absolutamente nada alteraria as questões doutrinárias que estão na raiz da proibição da comunhão eucarística aos divorciados em segundas núpcias. A Doutrina Católica não está à mercê das entrevistas pontifícias, e hiperdimensionar estas manifestações informais do Romano Pontífice tem o único efeito de catalisar uma confusão que não deveria sequer existir (como se, caso o Papa “autorizasse” os divorciados recasados a comungarem, o adultério deixasse de ser pecado ou o estado de graça deixasse de ser pré-requisito para o acesso à Santíssima Eucaristia).

Agora, é mesmo o Papa pessoalmente favorável a isso ou aquilo? E se for? Façamos um pequeno exercício de imaginação. Se fôssemos imaginar um mundo em que não houvesse a facilidade das telecomunicações com as quais nos já acostumamos hoje em dia — e fazê-lo não é nem tão difícil, basta retrocedermos umas duas décadas –, se imaginássemos, dizia, um tal mundo, o que se poderia esperar de uma situação que fosse rigorosamente igual à presente (do Papa no encontro com os luteranos) em todo o resto? A esposa luterana desabafaria com o carismático líder católico, este lhe dirigiria algumas palavras anódinas de conforto e pronto. A coisa não ficaria sendo revivida e reproduzida, em texto, áudio e vídeo, nos quatro cantos do mundo, e nem ganharia a dimensão que adquire nos dias de hoje, com os teólogos de plantão esquadrinhando minuciosamente o discurso improvisado do Papa — e, pior ainda!, perscrutando-lhe implícitas intenções. Não se cogitaria de extrair contradições entre a resposta coloquial de Sua Santidade e a doutrina católica rígida e criteriosamente sistematizada nos manuais de teologia. Ora, a raiz do problema, aqui, decorre do fato (absolutamente contingente) de cada palavra do Papa ser gravada, reproduzida e analisada por um número indeterminado de pessoas e uma quantidade indefinida de vezes. Se a mesma balança pudesse ser aplicada aos Papas do passado… quem ousará dizer que Bergoglio seria o primeiro Papa a fazer-lhe o prato pender para o lado da ambiguidade?

“Papista” não é quem acha que se deva poupar o Papa do escrutínio católico. Papista, ao contrário, é quem imagina que todo e qualquer suspiro que o Papa solte, em toda e qualquer situação possível e imaginável, deva necessariamente conter a mais límpida, perfeita e impecável transmissão de toda a Doutrina Católica, sem a menor possibilidade de erro algum. E se, por acaso, o Papa falhar nesta exigência, então — diz o papista — qualquer um está autorizado a expôr a contradição, questionar a catolicidade do Papa e vaticinar um futuro terrível para a Igreja que se encontra tão mal representada.

E aqui chegamos ao segundo ponto, a irreverência. A regra da caridade para os católicos, da última vez que chequei, mandava creditar, aos outros, todo o bem de que se ouvisse minimamente falar, e não lhes atribuir senão o mal que fosse visto com os próprios olhos. Isso, que é devido a toda e qualquer pessoa, é elevado à sétima potência quando estamos falando dos membros da Igreja Docente e à “70 x 7″ª quando estamos diante do Vigário de Cristo!

“Quando se ama o Papa” — dizia São Pio X — “não se objeta que ele não falou muito claramente, como se ele estivesse obrigado a repetir diretamente no ouvido de cada um sua vontade e de exprimi-la não somente de viva voz, mas cada vez por cartas e outros documentos públicos”. E, principalmente, quando se ama o Papa (e, lembremo-nos, todo mundo está obrigado a amar o Papa!) não se faz dele o pior juízo possível, dirigindo-lhe — pelas costas e em público — os mais desabonadores epítetos existentes no mundo cristão.

Só no post imediatamente anterior a este o blog foi brindado com excelentes pérolas da espiritualidade cristã, como a referência ao “maldito Concílio Vaticano II (…) e os seus porcos documentos” ou ao “Sinédrio bergogliano”. Nos demais textos aqui publicados a respeito do Papa Francisco — por exemplo, nos que citei mais acima — são bastante recorrentes as invectivas ao Vigário de Cristo, referindo-se ao seu “desatino” ou às “asneira[s]” que ele fala, por exemplo. “Antipapa” e “herege” também aparecem aqui com relativa frequência, e eu muitas vezes apago — mas basta uma passagem rápida pelas páginas de comentários de outros blogs onde este comportamento, ao contrário daqui, é incentivado, para que se veja a institucionalização do desrespeito ao Soberano Pontífice e a violação sistemática do IV Mandamento erigida a exigência de bom catolicismo, fora da qual parece não ser possível encontrar a salvação.

Tal hábito — verdadeira segunda natureza em muitos — é daninho à salvação das almas, por diversas razões, das quais as três seguintes parecem-me de não pequena relevância. Primeiro porque o distintivo do cristão deve ser a caridade fraterna, e não a maledicência — e não há nada mais contrário à caridade cristã do que um bando de marmanjos na internet, qual comadres, xingando o Papa uns para os outros sem que disso advenha nada a não ser um estado de desconfiança cada vez maior para com o Romano Pontífice. E a submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, como reza a Unam Sanctam, e nada mais difícil do que submeter-se efetivamente ao Romano Pontífice quando parte substancial do seu apostolado é consumida nos xingamentos a ele, incitando contra ele o ódio e o desprezo.

Segundo porque isso afasta as pessoas da verdadeira Igreja, na medida em que, deparando-se com a histeria histriônica dos sedizentes últimos cavaleiros católicos do mundo lutando contra a abominação instaurada na Igreja Santa de Deus, e percebendo o quanto isso é ridículo, pessoas normais e sadias terminam por ser empurradas para o “lado oposto” do combate — e o lado oposto não é o Deus lo Vult!, blog de bem pequena relevância e alcance, mas sim o modernismo relativista mais abjeto. É, portanto, no mínimo, um erro de estratégia.

Terceiro e não menos importante, porque esta atitude retroalimenta, fortalece e legitima os relatos anticatólicos dos quais se nutre o progressismo eclesial, o qual, para se impôr, precisa valer-se de um “espírito” do Concílio (ou do “sínodo”), de uma “vontade” dos líderes da Igreja que se encontra para além dos textos e documentos oficiais. Este relato adquire tanto mais relevância e verossimilhança quanto mais pessoas sérias e alfabetizadas levantam as suas armas contra o conteúdo do relato ao invés de se baterem contra o relato em si mesmo — acusando-o de falso e mentiroso, de cretino e desonesto, de não corresponder à verdade e de ser uma tentativa sórdida e canalha de ganhar a guerra do discurso uma vez perdida a guerra da doutrina, como seria de se esperar. Ora, se aceitamos em público que existe realmente um espírito do Vaticano II anticatólico (ao invés de dizer que isso é uma invenção dos inimigos de Cristo para fazer valer a sua própria vontade contra a Igreja), ou qualquer outro conceito do tipo, nós já entramos no combate concedendo ao inimigo um amplíssimo terreno ao qual ele, absolutamente, não faz jus.

A Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação e nem santidade, é aquela formada por uma tríplice comunhão: de Fé, de Sacramentos e de Governo. Isto é matéria do Catecismo das crianças. E a comunhão “de Governo” se manifesta na submissão às mesmas autoridades legítimas, em particular ao Santo Padre, o Papa. Ora, é verdadeiramente esquizofrênico imaginar que a submissão ao Papa seja compatível com a incitação à desconfiança para com o próprio Papa. E pretender que esta sujeição não seja necessariamente visível e concreta — a um Papa visível e de carne e osso, portanto — é requentar concepções eclesiológicas já condenadas desde o Concílio de Trento. A grande discussão do mundo católico contemporâneo — a discussão verdadeiramente importante — não pode ser esta besteira de caçar interpretações heterodoxas nos discursos [de improviso] do Papa e nem a inconsequência de perscrutar as intenções do Romano Pontífice por detrás do [que os meios de imprensa apresentam do] seu dia-a-dia. Se a alta intelectualidade católica encontra-se reduzida a isso… então estamos muito pior do que nos demos conta, e surge aos nossos olhos, com horror, aquela perturbadora pergunta de Cristo a respeito de se o Filho do Homem, quando retornar, encontrará acaso ainda Fé sobre a terra.

Urgentes orientações do Sínodo da Família sobre os casais de segunda união

Nas últimas semanas a mídia católica — mesmo a mídia católica que se reputava mais fidedigna e confiável — irrompeu em um surto de loucura a respeito do que o Sínodo dos Bispos (que se encerrou no final do mês passado) teria falado a respeito da comunhão dos divorciados recasados. Perplexos, deparamo-nos com manchetes e reportagens o mais disparatadas possível, vindas de órgãos de imprensa que, até então, sempre ou quase sempre tinham primado pelo equilíbrio e pela sensatez.

A Rádio Vaticano diz que a “comunhão aos divorciados recasados” é “uma questão aberta”. No estilo “em cima do muro” que lembra o pior da politicagem tupiniquim, o Cardeal de São Paulo afirma que “há muita divergência” sobre isso, que “questões complexas não podem ser respondidas simplesmente com um sim ou não”, que “o Sínodo, que não é ainda a palavra do Papa, não decidiu nada sobre isso”, que o Papa pode dizer uma coisa ou outra. Ou seja, a questão estaria “aberta” porque o Sínodo não determinou nada.

Aleteia, em manchete ainda pior, vai mais fundo e diz que o “Sínodo dos bispos abre portas para integrar divorciados recasados”. Perdida lá no corpo da matéria está a afirmação — esta, sim, relevante — de que “[o] texto [do Sínodo] não especifica se [os divorciados recasados] poderão realizar a comunhão”.

Por fim, Zenit coloca como chamada principal da matéria que “o acesso à eucaristia [dos “casais em segunda união”] deverá ocorrer na própria paróquia onde reside o casal” (!). No exercício do wishful thinking mais grosseiro, o autor do texto justifica a manchete dizendo que “o documento normativo do Sínodo, a ser elaborado pelo papa Francisco, numa exortação apostólica, eventualmente poderá estimular a verificação de caso a caso, para se aferir a responsabilidade subjetiva”. Ou seja: um eventual documento que o Papa Francisco porventura publique, em data incerta e não sabida, poderá estimular a avaliação caso a caso dos divorciados recasados — o que pode potencialmente levar os casais em segunda união a terem acesso à Eucaristia na própria paróquia onde residem! Tantas condicionantes, possibilidades, eventualidades, incertezas, indeterminações… ora, acaso isso é notícia? Em que mundo?

O mais perturbador disso tudo: nenhuma notícia diz que o Sínodo autorizou a comunhão aos divorciados recasados (primeiro porque o Sínodo, órgão consultivo, não pode “autorizar” nada e, segundo, porque, de fato, os documentos do Sínodo não mencionam em nenhum momento a possibilidade de admitir à comunhão eucarística os divorciados recasados) e, portanto, a rigor, todas as reportagens são formalmente verdadeiras. Mas o modo como elas foram escritas conduz o leitor incauto a imaginar que foram, sim, “abertas portas”, que estas portas são para o “acesso à eucaristia” dos divorciados recasados, que esta questão, outrora fechada, agora foi “aberta” pelo Sínodo e se está somente esperando a formalização pontifícia — que virá a qualquer momento! — para que os casais em segunda união possam, enfim, receber Nosso Senhor na Eucaristia. E, para quem não vai ler o Relatio Synodi (que, parece, só há em italiano…) nem esperar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a impressão que fica é esta induzida pela mídia católica mesmo.

Esforcemo-nos um pouco para nos elevar acima da mediocridade que contaminou até mesmo a boa mídia católica. O que importa saber sobre o tema é, em resumo, o seguinte: o sínodo tem marcos teóricos muito sólidos, explicitados no próprio Relatio (nn. 42 – 46), entre os quais se destaca — como não poderia deixar de ser — a Familiaris Consortio de S. João Paulo II. Uma (re)leitura desse documento é de enorme importância para se compreender a Igreja hoje. Em particular o seu n. 84. Tudo, tudo ali se explica.

Senão vejamos: há um clamor popular e midiático enorme para que a Igreja se debruce sobre a questão dos divorciados recasados? Sim, trata-se de mal que se vai alastrando mesmo pelos ambientes católicos, e portanto “o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável”.

Importa fazer com que a Igreja esteja mais preocupada em acolher do que em condenar? Sem dúvidas, porque a Igreja, “instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias”.

Então, o que fazer? Estariam porventura estes excomungados? Absolutamente não; é um dever de toda a Igreja, dos pastores como dos fiéis, “ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”. É fundamental que eles sejam “exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus”.

Conceder-se-lhes-á, então, participar da Ceia Eucarística? Aí não. “Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio”.

Mas não existe nenhuma exceção? Sim, existe, uma exceção que precisa ser avaliada caso a caso: a daquelas pessoas que, não podendo, por justa causa, abandonar o cônjuge ilegítimo (digamos, por conta dos filhos pequenos que possuam), decidem, conquanto mantendo a habitação em comum, abster-se dos atos sexuais adulterinos. Assim, “[a] reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»”.

Pronto. Com isso, se responde perfeitamente às notícias acima referidas, sem margens para dúvidas ou más interpretações:

  • A questão da comunhão eucarística aos divorciados recasados está aberta? Não, não está aberta, porque São João Paulo II, em texto sobre o assunto ao qual o Sínodo contemporâneo faz expressa referência, já reafirmou a praxis eclesiástica, “fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” — e não há necessidade de se ficar, a todo ano, a toda reunião, repetindo explicitamente as mesmas coisas (sob pena de elas “deixarem de valer”). Isso não faz sentido algum.
  • Mas então os divorciados recasados devem ser acolhidos na vida da Igreja? Sem dúvidas, como São João Paulo II já disse explicitamente, é dever de todos os católicos tudo fazer para que os divorciados recasados “não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”.
  • E o que é que deve ser analisado caso a caso? Ora, deve-se analisar individualmente aquelas situações em que as pessoas, não podendo por razões graves abandonar o falso cônjuge, comprometem-se a tentar levar “uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio” — i.e., com a abstinência dos atos próprios dos casais.

Tudo isso é porventura novidade? Não, tudo isso consta em um texto do início da década de 80! Qual a razão do alvoroço, qual o motivo do alarde, como se S.S. o Papa Francisco estivesse fazendo alguma coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo? Todas essas coisas — de não estarem excomungados os divorciados recasados, da importância de os integrar à vida da Igreja, da inadmissibilidade de se conceder a Comunhão Eucarística aos que vivem maritalmente com alguém que não é o seu cônjuge legítimo e da necessidade de se avaliar, individualmente, os casos daquelas pessoas que quiserem abandonar as práticas conjugais mantendo, contudo, a habitação comum — já fazem parte das disposições normativas da Igreja Católica há mais tempo do que eu próprio tenho de vida! Se não são obedecidas, e se portanto precisam ser reforçadas, é uma outra história; mas não se diga que a Igreja não tem respostas ao problema do divórcio e nem que Ela está procurando, agora, do nada, soluções para estas questões.

A Igreja é Mãe, e não é de hoje que Ela é Mãe. Os filhos da Igreja são rebeldes, e não é de hoje que esta rebeldia grassa entre aqueles pelos quais Cristo verteu o Seu Sangue na Cruz. Mas a Igreja, Esposa Fiel de Cristo, não vai trair jamais a confiança do Seu Divino Esposo, e isto significa duas coisas: que Ela não vai abandonar os homens por cuja salvação Cristo morreu, por um lado; mas que, pelo outro lado, tampouco vai abandonar a Doutrina por meio da qual somente aqueles homens se podem salvar. Eventuais tentativas de obscurecer qualquer dessas verdades desfigura o rosto da Igreja de Nosso Senhor, e devem portanto ser combatidas.

Encerrou-se a Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família. Mas, ao contrário do que a mídia insinua, não é necessário esperar para ver “o que o Papa vai fazer” com tudo isso. O documento normativo do Sínodo da Família, elaborado pelo Papa, já saiu em português: foi publicado aos 22 de novembro de 1981, e não há razões honestas para esperar nada diferente disso. Todas estas disposições aliás já podem — e devem — ser postas imediatamente em prática. Façamo-las conhecidas e efetivas. Não há tempo a perder.

Reforma do processo de nulidade matrimonial I – O que é nulidade?

Foram dois os motu proprios recentemente publicados pelo Papa Francisco “sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio”: Mitis et misericors Iesus e Mitis Iudex Dominus Iesus. Os dois têm a mesma data – 15 de agosto de 2015 – e o mesmo objeto – as mudanças no processo de nulidade matrimonial. São dois porque o primeiro deles altera os cânones do Código das Igrejas Orientais e, o segundo, os do Codex Iuris Canonici vigente na Igreja latina. Um só, portanto, é o propósito da dupla publicação, havendo dois documentos porque duplo é o regime jurídico da Igreja Católica: oriental e ocidental.

Os documentos se propõem a facilitar o processo pelo qual se obtém a declaração de nulidade matrimonial. Atenção que as palavras são aqui importantes: processo, i.e., meio, procedimento, o que significa que não houve nenhuma modificação substantiva no tema, nenhuma (aliás impossível) alteração doutrinária, nenhuma mudança de posição da Igreja no que se refere ao assunto; declaração, i.e., um documento de natureza — como o próprio nome diz — meramente declaratória (e não constitutiva), que se limita a fazer uma afirmação a respeito da realidade sem a alterar de nenhuma maneira; e nulidade, e não anulação, ou seja, uma qualidade já desde o início presente no Matrimônio tentado, e não uma que se lhe confere ao fim do processo canônico.

Relembrando as aulas de teologia sacramental: todo Sacramento, para ser válido — i.e., para existir — precisa de três coisas: forma, matéria e ministro. Não é qualquer forma, senão apenas a forma adequada; nem qualquer matéria, mas somente a matéria válida; nem tampouco qualquer ministro, senão só o ministro capaz. Faltando uma dessas três coisas, então o Sacramento, por mais que exteriormente pareça, não é Sacramento de verdade.

O exemplo da Eucaristia é talvez o mais claro e ajude a enxergar o que se está querendo dizer aqui: todo mundo sabe que, para a Eucaristia ser válida — ou seja, para o pão e o vinho realmente se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo — é preciso que as palavras da Consagração sejam proferidas por um sacerdote validamente ordenado. Ou seja: se um sujeito que não é padre chegar numa igreja, paramentar-se corretamente, subir ao altar, proferir todas as orações e realizar todos os gestos previstos no Missal, pegar a hóstia e disser “isto é o Meu corpo”, o cálice e afirmar “este é o cálice do Meu sangue”, elevá-los, enfim, fizer tudo de modo exatamente igual a como um padre de verdade faria, ninguém que esteja observando “de fora” vai perceber, mas o pão vai continuar sendo pão e, o vinho, vinho. Não vai ocorrer a transubstanciação. Não vai ter havido o Sacramento.

O que se quer dizer é isto: todo sacramento é um sinal sensível de uma graça invisível, mas nem todo sinal sensível é um sacramento! A Hóstia, ainda que seja do tipo com o qual estamos acostumados — o disco branco, de espessura fina, geralmente ornado com símbolos cristãos –, ainda que esteja sobre o altar, ainda que seja elevada por um homem paramentado como sacerdote católico, ainda assim, se o homem não for um sacerdote validamente ordenado então ela vai continuar sendo apenas pão. Não é porque a coisa parece um sacramento que ela é um sacramento de verdade. E isto, que é fácil ver no Sacramento da Eucaristia, vale para todo Sacramento da Igreja Católica.

Até para o Matrimônio, e aqui chegamos ao ponto. Assim como é possível que uma hóstia não seja o Corpo de Cristo mesmo que, externamente, ela pareça ter sido consagrada, da mesma maneira é possível que um casal vivendo maritalmente não forme um Matrimônio Católico ainda que, externamente, os dois pareçam ter se casado. Da mesma forma como é possível que a Hóstia não tenha sido validamente consagrada, é possível que o Matrimônio não tenha sido validamente contraído — e ao Matrimônio inválido nós chamamos nulo. E ao procedimento que a Igreja emprega para investigar se, de fato, aquela situação que parece um casamento é realmente um Matrimônio Sacramental chama-se comumente de processo de nulidade, e foi isto que o Papa Francisco alterou recentemente.

Há somente algumas poucas razões pelas quais se pode imaginar que a Eucaristia tenha sido nula: ou o padre era um falso sacerdote, ou a hóstia era feita de alguma coisa outra que trigo (digamos, mandioca), ou o sacerdote queria não consagrar no momento em que proferiu as palavras da Consagração; além dessas hipóteses é difícil imaginar outras muito diferentes. O Matrimônio, por ser um contrato jurídico, é um pouco mais complicado. A partir do cânon 1073 do Código de Direito Canônico encontra-se uma longa lista de razões pelas quais um Matrimônio pode ser invalidamente contraído — i.e., não existir. À guisa de exemplificação:

  • não podem contrair matrimônio válido os homens antes dos dezesseis anos completos nem a mulher antes dos catorze também completos (Cân.1083);
  • os que tenham recebido ordens sacras também não conseguem casar (Cân. 1087);
  • não podem casar os que possuem parentesco em linha reta, em qualquer grau (Cân. 1092);
  • aqueles que “por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio” também são incapazes de o contrair (Cân. 1095);
  • quem é enganado acerca de “qualidade da outra parte que, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal” também não casa validamente (Cân. 1098);
  • é também “inválido o matrimônio celebrado por violência ou por medo grave (…) para se libertar do qual alguém se veja obrigado a contrair matrimônio” (Cân. 1103);
  • se o sacerdote que vai assistir o Matrimônio não é o pároco, então precisa de delegação, sob pena de o matrimônio não ser validamente contraído (Cân. 1108);
  • etc.

Qualquer uma dessas situações, presentes no momento em que se celebrava o Matrimônio, são capazes de fazer com que ele tenha sido inválido; há que se verificar, por exemplo, se o impedimento estava presente, se podia ser dispensado, se de fato o foi. É para responder a estas perguntas que existe o procedimento de investigação de nulidade matrimonial dentro da Igreja Católica. Ele não tem nada a ver com mudar a realidade do casamento — se o casamento foi válido então ele permanecerá válido para sempre e, se foi inválido, também nunca será um matrimônio até que os defeitos sejam sanados –, mas sim com conhecer a verdadeira natureza de uma união exteriormente parecida com um casamento católico (como, insista-se na comparação que parece elucidativa, uma hóstia não-consagrada é exteriormente parecida — indistinguível até — de uma que seja o Corpo do Senhor).

Em suma, à semelhança do que ocorre com a Eucaristia, também o Matrimônio pode ser inválido. Estes “casamentos” nunca foram casamentos antes da atual reforma do Papa Francisco, e continuariam sem o ser ainda que nada tivesse mudado nos processos de nulidade.

Portanto,

i) todo casamento validamente contraído é indissolúvel (há a exceção do privilégio petrino para os matrimônios ratos e não consumados, mas não cabe entrar em detalhes aqui; até porque os casos aos quais ele é aplicável — onde não houve consumação, i.e., conjunção carnal — são por si mesmos excepcionais);

ii) nem tudo o que externamente parece um casamento é um casamento de verdade;

iii) é através do “processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio” que a Igreja se pronuncia a respeito da validade ou nulidade de um Matrimônio;

iv) um casamento que tenha sido nulo jamais existiu;

v) a existência ou inexistência do vínculo matrimonial é independente do processo pelo qual a sua nulidade é conhecida (i.e., um casamento nulo é nulo ainda que nunca venha a receber uma sentença de nulidade, e inversamente um matrimônio verdadeiro é verdadeiro matrimônio ainda que o processo canônico afirme ter ele sido inválido).

Não há lugar para a dissolução do vínculo conjugal por poder terreno algum: isto a Igreja sabe muito bem. Desde Cristo até os tempos de Henrique VIII, e de lá até os dias de hoje, e até a consumação dos séculos. Mas há, sim, espaço para a investigação honesta e sincera a respeito da verdade das coisas. Não cabe falar em “dissolver” se o vínculo já não existe em primeiro lugar. As mudanças recentes feitas pelo Papa Francisco dizem respeito aos meios de investigação daquela nulidade capaz de fazer com que nunca tenha havido Matrimônio de verdade. Nem todo mundo que vive junto está realmente casado; e reconhecê-lo em nada atinge a indissolubilidade do casamento verdadeiro.

Tudo o que é possível é perdoá-lo

O aborto, enquanto assassinato direto de um ser humano inocente, é um pecado grave, gravíssimo — daqueles que “clamam ao Céu vingança”, ao lado de praticar atos de homossexualismo, oprimir os pobres e negar o salário ao trabalhador. Por conta dessa sua (tão grande!) gravidade intrínseca e porque, muitas vezes, o horrendo crime do aborto é negligenciado e encarado como se fosse algo de somenos importância, a Igreja impõe, a quem o pratica e aos que colaboram materialmente com ele, uma pena de excomunhão. É o que diz o Código de Direito Canônico vigente: «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae» (CIC 1398). A pena não é nova; a mesmíssima sanção consta no Código Pio-Beneditino, Cân. 2350, o qual reza: «[p]rocurantes abortum, matre non excepta, incurrunt, effectu secuto, in excommumcationem latae sententiae Ordinario reservatam». Quem procura o aborto, sem exceção da mãe, incorre, alcançado o efeito, em excomunhão automática reservada ao Ordinário.

Ora, existem duas coisas distintas aqui. Existe o pecado mortal, decorrente de uma violação direta de um dos preceitos do Decálogo, cujas conseqüências — das quais a mais grave é a perda do estado de graça — nós conhecemos bem das aulas de teologia moral; e existe a pena canônica de excomunhão, imposta pelo Direito eclesiástico. Conquanto emanem ambas do mesmo ato, as duas coisas não se confundem. Um só é o ato humano aqui: o aborto. Dele decorrem, simultaneamente, duas penas, uma de ordem moral, outra de ordem eclesiástica: uma, a perda do estado de graça, outra, a perda da comunhão com a Igreja.

Todo pecado mortal — e não apenas o aborto — provoca a perda do estado de graça. Para recuperá-lo, são necessárias a contrição, a confissão e a satisfação: i.e., arrepender-se verdadeiramente do mal praticado, confessá-lo a um sacerdote da Igreja Católica que tenha a faculdade de o absolver e, na medida do possível, repará-lo. Esses são os pré-requisitos básicos e imprescindíveis para que alguém, tendo perdido a graça santificante por meio de um pecado mortal cometido após o Batismo, venha um dia a recuperá-la. Sem isso (ou pelo menos sem o primeiríssimo deles, a contrição — e perfeita –, na impossibilidade material de acorrer à Confissão Sacramental), não cabe falar em “perdão”.

Se todo pecado grave, pelo fato mesmo de ser grave (i.e., de ser uma ofensa consciente e deliberada à lei de Deus em matéria grave), provoca a perda do estado de graça, nem todo ele provoca excomunhão latae sententiae. Nem mesmo os pecados que clamam ao Céu vingança são, todos, punidos com excomunhão. Na verdade, são apenas oito as excomunhões automáticas atualmente vigentes no ordenamento jurídico canônico (no Código: aborto, absolvição de cúmplice em pecado contra o sexto mandamento, violação de sigilo de Confissão, agressão física ao romano pontífice, sagração episcopal sem mandato pontifício, profanação eucarística e heresia, apostasia ou cisma — hipóteses às quais foi posteriormente acrescentada a tentativa de ordenação feminina). A excomunhão é mais grave do que o mero pecado mortal, uma vez que rompe o vínculo jurídico do excomungado com a Igreja — o qual passa a, d’Ela, não poder receber mais nada. Quem está em pecado mortal, conquanto não aufira as graças próprias (e.g.) dos sacramentos “de vivos”, está apto a receber o perdão sacramental mediante o Sacramento da Penitência. Quem está excomungado, não; precisa primeiro ter a sua excomunhão levantada para, em seguida, receber o perdão sacramental.

Quem comete o aborto está sob uma dupla pena: a perda do estado de graça, comum a todos os pecados mortais, e a excomunhão, que é própria do aborto (e do restrito conjunto de pecados acima mencionado). Isso significa que, uma vez arrependido, o penitente precisa de um pouco mais do que o comum para se reconciliar com a Igreja: se àqueles que cometem pecados mortais que não excomungam basta a absolvição sacramental (i.e., basta a confissão com qualquer sacerdote que esteja apto a ouvir confissões), quem está excomungado precisa antes ser readmitido à comunhão eclesiástica para, só depois, ser absolvido.

O problema é que nem todo padre possui, de ordinário, o poder de levantar a excomunhão do aborto. Assim, quem comete o pecado do aborto — e que está, portanto, além de em pecado mortal, excomungado — precisa, para se reconciliar com Deus e a Igreja, de um sacerdote não só capaz de ouvir confissões, mas também com a faculdade de retirar a excomunhão. Quem possui tal faculdade, segundo o que está expresso no Código Pio-Beneditino (e ainda em vigor), é o Ordinário do lugar. Ou seja, é o bispo diocesano. O bispo pode delegar esta faculdade a alguns dos sacerdotes de sua diocese, ou mesmo a todos eles.

O Papa é o Pastor Supremo da Igreja, que possui jurisdição plena e imediata sobre todo fiel católico. Tudo aquilo que um bispo pode fazer, o Papa pode — e com muito mais razão — fazer igualmente. E foi isso o que Sua Santidade o Papa Francisco fez recentemente: estendeu, a todos os sacerdotes do orbe, durante o Ano Santo, a faculdade de levantar a excomunhão do aborto.

Algumas coisas, portanto, precisam ficar claras.

  • O aborto sempre foi perdoável, como todo pecado mortal, mediante arrependimento e confissão.
  • A pena de excomunhão do aborto, como toda pena de excomunhão, não pode ser levantada por todo e qualquer sacerdote — mas apenas pela autoridade competente e por aqueles a quem esta autoridade competente delegar este poder.
  • A autoridade competente para levantar a excomunhão do aborto é o Bispo Diocesano (o Ordinário).
  • O aborto comporta duas penas — a perda do estado de graça e a excomunhão eclesiástica — e, portanto, o processo de reconciliação com Deus e a Igreja de quem comete este pecado passa, também, por duas fases: o levantamento da excomunhão e a absolvição sacramental.
  • Estas duas fases, via de regra, acontecem no ato da mesma confissão sacramental: o penitente, arrependido, se confessa, e o padre, que tem a faculdade de levantar a excomunhão e a de absolver os pecados, revoga a excomunhão e, acto contínuo, absolve o penitente.
  • Na eventualidade de um fiel católico que tenha cometido o pecado do aborto vir a se confessar com um padre que não possua a faculdade de levantar a excomunhão, então este padre não o pode absolver, pelo menos não de imediato, e deve encaminhá-lo ao bispo, ou a outro sacerdote que, na diocese, possua esta faculdade, ou mesmo solicitar, ele próprio, o padre, ao seu bispo a faculdade de revogar a excomunhão do aborto, para então conferir ao penitente a reconciliação eclesiástica e a absolvição sacramental.
  • A fim de facilitar aos pecadores arrependidos a reconciliação com a Igreja, o Papa Francisco determinou que, durante o Ano Santo, todo sacerdote tem o poder de revogar a excomunhão na qual incorre “quem procura o aborto”. Aquilo que era privativo do bispo diocesano e dos sacerdotes que ele designasse, portanto, durante o Jubileu, por um ato de liberalidade do Romano Pontífice, cabe a todo e qualquer padre.
  • Não tem o menor sentido falar que, com isso, o Papa esteja “desculpando” o aborto ou qualquer coisa do tipo. As palavras de Sua Santidade são claras: «decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». Ou seja, não é para revogar automaticamente todas as excomunhões de todo mundo; é para que os padres possam absolver aqueles fiéis que cometeram aborto e — conjunção aditiva –, «arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». É preciso, portanto, i) estar arrependido — contrição — e ii) pedir o perdão — confissão sacramental.
  • O Ano Santo «abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição» e «terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016» (Misericordiae Vultus). É somente dentro deste intervalo de tempo que os padres gozarão da faculdade conferida pelo Papa.
  • Até lá, quem se arrependeu do aborto que cometeu ou ajudou a cometer pode se reconciliar com a Igreja procurando o Bispo da sua diocese.
  • Por fim, mesmo durante o Ano Jubilar, quem não está arrependido de ter praticado ou ajudado a praticar o aborto, evidentemente, não tem como receber o perdão sacramental. A estes cabe esta censura do Papa (cf. carta citada):

Uma mentalidade muito difundida já fez perder a necessária sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento de uma nova vida. O drama do aborto é vivido por alguns com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta.

Não surpreende que a mídia faça eco a esta «mentalidade». Os católicos, no entanto, aos quais Cristo mandou não se conformar com este mundo, não podem compreender as coisas — nem muito menos as coisas da Igreja — do modo superficial que elas aparecem nos meios de comunicação. Sim, o aborto é um «gravíssimo mal» — o Papa sabe disso! Mas não existe mal que não possa ser vencido por um coração contrito. O mundo clama por misericórdia. Mas misericórdia e arrependimento andam lado a lado. As reivindicações do mundo — por exemplo, para que se deixe de condenar os atos de homossexualismo, o adultério e a fornicação, o egoísmo, o aborto — não são, de nenhum modo!, misericórdia verdadeira. São, aliás, o contrário mesmo de misericórdia, na medida em que, fechando os olhos ao pecado, fecham o coração ao arrependimento — e, por conseguinte, vedam-lhe o perdão. Não é possível fazer com que o pecado deixe de existir. Tudo o que é possível é perdoá-lo. Para isso existe a Igreja. Fora disso não há salvação.

No amor e na verdade

As manchetes ribombam mundo afora: Papa quer que divorciados casados de novo não sejam tratados como excomungadosPapa pede que divorciados não sejam tratados como excomungadosPapa: divorciados que casam novamente ‘não são excomungados’! Dir-se-ia alguma revelação fantástica, alguma novidade inaudita; trata-se, no entanto, do lugar-comum mais comezinho, que certamente todas as pessoas saberiam se tivessem prestado atenção em suas aulas de catequese – e que, com toda a certeza, os correspondentes de religião dos jornais tinham e têm obrigação de o saber de cor, se quiserem fazer jus ao trabalho que se propõem a fazer.

É evidente que os divorciados não estão “excomungados” (ao menos não pelo fato de serem divorciados recasados) e nem nunca o estiveram. Os adúlteros sempre foram merecedores das mais ásperas censuras, é fato, mas não me consta que tenham sido em alguma época fulminados de excomunhão – e, certamente, não o eram até ontem (ao contrário do que as manchetes dão a entender!), antes de a imprensa alardear como se fosse a maior novidade do mundo aquilo que os católicos sempre souberam.

Simplificando as coisas (uma vez que a similaridade entre as palavras “comunhão [eucarística]” e “excomunhão” pode levar a crer que não poder participar da comunhão eucarística é o mesmo que estar excomungado), existem dois tipos de pessoas: as que fazem parte da Igreja Católica e as que não fazem parte da Igreja Católica. A “excomunhão” é uma pena mediante a qual o sujeito, que fazia parte da Igreja, é d’Ela expulso e a Ela deixa de pertencer. Portanto, quem é excomungado não faz parte da Igreja Católica. Por não fazer parte da Igreja Católica, evidentemente, não pode participar dos Sacramentos, como não o podem um herege protestante, um pagão ou um ateu.

As pessoas que fazem parte da Igreja Católica – e aqui, por definição, está-se falando daquelas que não estão excomungadas – dividem-se entre as que estão em estado de graça e as que não estão em estado de graça. O estado de graça é a situação de amizade com Deus que se adquire com o batismo, se perde com o pecado mortal e se recupera com a confissão sacramental; portanto, quem comete pecado mortal e não se confessa não está em estado de graça. O adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Logo, os divorciados recasados, enquanto não se confessarem, estão em pecado mortal, não estão em estado de graça.

Certos sacramentos – chamados sacramentos “de vivos” – exigem o estado de graça para serem licitamente recebidos. Exemplo máximo desta espécie de sacramentos é o Sacramento da Eucaristia, do qual S. Paulo falou que comia e bebia a própria condenação quem O comesse e bebesse indignamente. A recepção da Santíssima Eucaristia – a comunhão sacramental – exige o estado de graça. Quem está em pecado mortal não pode, portanto, comungar. Adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Os divorciados recasados não estão em estado de graça e, portanto, não podem comungar.

Nem todo mundo que não pode comungar não o pode por não fazer parte da Igreja Católica! Quem não é católico (p.ex., quem está excomungado) não pode comunga, é evidente; mas quem não está em estado de graça, mesmo sendo católico, também não pode se aproximar da comunhão eucarística. Os divorciados recasados não podem comungar por conta deste segundo motivo. Não pelo primeiro. É óbvio.

Que isso não se trata de novidade nenhuma é coisa bastante fácil de se mostrar. Abra-se, por exemplo, a Sacramentum Caritatis. Exortação pós-sinodal, escrita há apenas oito anos. Ora, isso é já no terceiro milênio; não é crível que a realidade familiar contemporânea seja substancialmente diferente daquela de 2007. Pois bem. Lá, na década passada, um Sínodo dos Bispos já discutiu o “problema” da admissão dos divorciados recasados ao Sacramento da Eucaristia – que, hoje, quer-se fazer acreditar que é uma discussão importantíssima e inédita em vinte e um séculos de Cristianismo. Um Sínodo dos Bispos, dizia-se, já o discutiu um dia desses. E decidiu (negrito meu):

O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos (Sacramentum Caritatis, 29).

Ora, dizer que os divorciados recasados «continuam a pertencer à Igreja» é a mesmíssima coisa que dizer que eles «não são excomungados». O que Bento XVI disse há oito anos, o Papa Francisco repetiu-o agora. À época, a mídia fez um escarcéu porque o Papa dissera que o divórcio era una piaga; hoje, a mídia faz uma festa para ocultar que o Papa disse que é preciso acolher os divorciados recasados no amor e na verdade.

No amor e na verdade! A expressão se encontra na catequese pontifícia (o itálico é meu): «é necessário um fraterno e atento acolhimento, no amor e na verdade, para com os batizados que estabeleceram uma nova convivência depois do fracasso do matrimônio sacramental». Amor na verdade. Lembra alguma coisa?

«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Assim se inicia um outro documento de Bento XVI, a encíclica Caritas in Veritate. Tudo bem, é uma encíclica social. Mas veja-se se a introdução não serve como uma luva para as presentes celeumas a respeito de divorciados e acesso aos sacramentos:

Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente (Caritas in Veritate, 3).

E ainda, a se grafar em faixas enormes a serem estendidas a cada vez que alguém vier falar em dar a comunhão aos divorciados recasados:

Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo (CV 4).

Eis, portanto, o que significa acolher «na verdade» – e outra coisa não é possível fazê-lo significar. Não dentro da Igreja de Nosso Senhor – Aquela que, «fundada sobre Cristo, não obstante as inúmeras tempestades e os nossos muitos pecados, permanece fiel ao depósito da fé no serviço, porque a Igreja não é dos Papas, dos Bispos, dos padres e nem mesmo dos fiéis; é só e unicamente de Cristo» (Papa Francisco na homilia de 29/06/2015).

Decerto o mundo, inimigo da Igreja, havia de tentar obscurecer a mensagem do Evangelho; decerto a mídia anticlerical haveria de tentar semear a confusão. Não é a primeira vez, nem será a última. O que importa aos homens é permanecer firmes na Verdade, e não dar ouvidos às opiniões levianas que saem na mídia. Porque a Igreja, que não é nem mesmo dos Papas, muito menos o é da imprensa. Muito menos o é das reivindicações da moda. Por mais que rujam os demônios, a Igreja é e vai continuar sempre sendo «só e unicamente de Cristo». E, por mais que se tente, ninguém será capaz de vencer a força desta verdade.

Fala-se muito em como a Igreja deveria se portar; ninguém quer ouvir como a Igreja ensina que os homens devem proceder. Não engrossemos o coro dos primeiros. Ouvir a voz da Igreja outra coisa não é que ouvir a voz de Cristo. E felizes – mil vezes felizes! – os que, ouvindo esta Doutrina, puserem-na em prática.