«No está bien eso»

papa-morales

Imagem sensacional.

O olhar de desprezo de Sua Santidade (em outro ângulo aqui) diante da paspalhice do boliviano cocaleiro é a mais eloquente declaração anticomunista que o Papa Francisco poderia dar. E, ao contrário do que acontece com entrevistas, diante de cara feia não dá pra tergiversar, pra distorcer, pra suscitar conflito interpretativo nem nada do tipo.

O semblante sisudo é inequívoco, universalmente compreensível, insofismável. O sorriso aguado posterior, protocolar, não elide a força do símbolo desta cara de desgosto. Aqui está a imagem que vale mais do que mil palavras. Aqui está o tratamento de asco e repulsa que o comunismo merece. Às claras, sem ruído, sem margem para má interpretação.

Outras duas boas razões pelas quais é importante compartilhar este acontecimento:

1. Porque, como muitos argutamente perceberam, sob uma determinada ótica a escultura é até apropriada: de fato, há mais de século a foice e o martelo vêm pregando Cristo na Cruz.

2. Porque ele permite que sejam divulgadas matérias como esta ou esta: «Al Papa no le gustó el regaló, le miró de forma severa y se dirigió a Morales diciendo: “No está bien eso”».

Soluções concretas para as famílias não-tradicionais

Recebi por WhatsApp de um amigo uma manchete jornalística, em tom eufórico, segundo a qual o Papa Francisco conclamava a uma solução concreta para as famílias não-tradicionais. A frase verdadeira, proferida na homilia em Guayaquil, é a seguinte:

Pouco antes de começar o Ano Jubilar da Misericórdia, a Igreja vai celebrar o Sínodo Ordinário dedicado às famílias para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções concretas para as inúmeras dificuldades e importantes desafios que a família deve enfrentar nos nossos dias. Convido vocês a intensificar a oração por essa intenção: para que, mesmo aquilo que nos pareça impuro, nos escandalize ou espante, Deus – fazendo-o passar pela sua “hora” – possa milagrosamente transformá-lo. Hoje a família precisa desse milagre.

Desta vez, contudo, eu nem precisei recorrer ao texto original. Disse-lhe, sem pestanejar: ora, é claro que a dita “família não-tradicional” precisa de uma solução, e uma solução urgente, porque é um escândalo que seres humanos – muitos dos quais católicos! – vivam os mais horrendos pecados como se não fossem nada!

Não existe “família não-tradicional” e nem “família tradicional”. Existe família, ponto. Família é o pai, a mãe e os filhos. Isso não é a família “tradicional”, isso é a família verdadeira e perfeita, a arquetípica, a família por antonomásia em referência à qual todos os outros agrupamentos sociais se definem. Por vezes, decerto, as coisas não acontecem de maneira tão perfeita; por vezes, sem dúvidas, faltam alguns desses elementos. Às vezes os filhos não vêm, às vezes a morte vem colher precocemente um dos cônjuges; dir-se-á, nestes casos, que não existe família?

Melhor se dirá que a família está ainda em projeto, em desenvolvimento, no caso dos filhos que ainda não vieram; ou que ela persiste, ainda, subsistindo, nos seus frutos, nas suas marcas, no caso em que um dos cônjuges já partiu para as moradas celestes. Mas, atenção! Isto, que materialmente pode ser igual a um divorciado ou a um casal que emprega anticoncepcionais para não ter filhos, é no entanto completamente diferente.

Porque uma coisa é a aceitação resignada das vicissitudes da vida, de uma eventualidade alheia às nossas vontades – contrária, até, às nossas vontades! – e que priva a família quer dos seus alicerces originais – no caso da morte -, quer de seu desenvolvimento natural – no caso dos filhos que não vêm. Uma outra coisa, completamente diferente, é, por conta própria, destruir o vínculo indissolúvel que só a morte é capaz de solver, ou ceifar os filhos que Deus quisera mandar ao mundo.

Não há comparação possível. Do fato de os fins da família poderem ser frustrados não segue que nós os possamos deliberada e conscientemente frustrar; assim como do fato de que possamos perder um membro na guerra (e les invalides são merecedores de todo o nosso respeito e consideração!) não segue que possamos, por conta própria, nos mutilar por acharmos que o corpo deficiente “nos cai” melhor que o corpo são – e nem muito menos sancionar socialmente esta loucura.

De volta à (dita) “família não tradicional”. Isso simplesmente não existe; o que existe, e que demanda urgente tratamento – e nisto o Papa está mais uma vez corretíssimo! – são arremedos familiares, frutos de uma loucura generalizada que faz a seres humanos julgarem que a desestabilização voluntária da própria família (quer na sua dissolução, quer no impedimento de seus desenvolvimentos naturais) pode lhes ser algo bom. E é um escândalo que pessoas civilizadas, sem nenhuma coação premente de situações excepcionais (tal seria o exemplo, digamos, de uma mulher espancada diariamente pelo marido), aceitem com naturalidade viver em adultério continuado, traindo as promessas feitas um dia diante de Deus; ou tomando diariamente veneno para impedir que seus órgãos funcionem da maneira que foram feitos para funcionar, rejeitando os filhos que também prometeram um dia receber e educar. Isto choca e escandaliza, é socialmente deletério, individualmente degradante. E tal se vê não entre ímpios e pagãos, mas muitas vezes entre os que se dizem católicos praticantes…! Claro que provoca perplexidade; claro que demanda, sim, enfrentamento corajoso e urgente.

No WhatsApp, eu dizia que o maior sintoma dessa degenerescência era o fato de as pessoas não aceitarem o próprio erro mas, ao contrário, ficarem sempre repetindo para si próprias que estavam certas e errados eram os Papas, os santos, a Igreja, o próprio Cristo! Que os outros que mudassem, pois elas próprias não iriam mudar. Isto é o mais grave pecado que pode haver, porque é o pecado que já não se reconhece como pecado, é – para usar a expressão que Bento XVI consagrou – a própria perda de sentido do pecado.

O Papa sabe que é preciso «soluções concretas» para estes casos. Ora, que soluções? As que o mundo demanda? As que estas pessoas querem? De maneira alguma: a que deseja a Igreja! A solução para estes indivíduos é, nas palavras do próprio Papa!, que Deus «possa milagrosamente transformá-lo[s]». Sim, é um milagre; furar a barreira erguida pela impiedade de quem não é mais capaz de reconhecer o pecado em que vive imerso é um verdadeiro milagre. Mas é um milagre necessário, e pelo qual o Papa nos convida a rezar mais intensamente. Hoje a família precisa dele. Não nos é lícito fingir que não temos nada com isso.

São Pedro vive em seus vigários

Ontem, 29 de junho, foi a festa de S. Pedro e S. Paulo – por óbvia extensão, a festa do Papa, vigário de Cristo e sucessor de S. Pedro. No Brasil, nós antecipamos a solenidade: domingo último, as nossas igrejas se revestiram de vermelho para celebrar a memória do Príncipe dos Apóstolos. Vermelho – talvez o detalhe se nos passe despercebido – que é a cor do martírio. Celebramos o Papa; e o martírio do Papa.

Aquele quo vadis, Domine? não é apenas uma expressão latina relativamente bem conhecida: tem, em si mesma, toda uma história. Em resumo: explode a perseguição romana contra os cristãos e S. Pedro, bispo de Roma, com medo de ser martirizado, foge da cidade. No caminho tem uma visão: é Cristo que cruza com ele, caminhando no sentido oposto, de volta a Roma, carregando a cruz. “Onde vais, Senhor?” – quo vadis, Domine? -, pergunta o Príncipe dos Apóstolos. “Vou a Roma, ser crucificado no teu lugar”, responde o Salvador. Pedro cai em si. Tomado de coragem, volta à cidade. É martirizado, como temera e desejava. Recebe a palma do martírio. E lega à Igreja a festa de ontem.

A vida se renova e, em certo sentido, a história se repete: a vida dos sucessores de S. Pedro é a vida do próprio S. Pedro. É a fraqueza humana unidade à força do Alto, é a escolha terrível e quotidiana entre as coisas da terra e as coisas do Céu – entre os pensamentos dos homens e os de Deus -, é, em última instância, o martírio. Pedro sofre!, e não se pense que ele não é crucificado.

Cumpre ao Papa Francisco – cumpre a todos os Papas – seguir os passos do Príncipe dos Apóstolos: S. Pedro vive em seus vigários. E a história da Igreja nascente não pode ser resumida ao glorioso ecce Petrus Pontifex Maximus; quem visse Pedro apenas em seu esplendor não teria uma visão completa daquele sobre o qual Cristo prometeu edificar a Sua Igreja. Ser Papa – é o que quero dizer – não significa apenas ser o Vigário de Cristo gloriosamente reinante. Ser Papa, sempre, significa antes de mais nada ser «o martirizado».

Ontem nós celebramos o martírio de S. Pedro – e simultaneamente rezamos pelo Papa. Há uma inegável sabedoria eclesial nesta solenidade litúrgica, que muitas vezes pode nos escapar. Orgulhamo-nos de cantar, ufanos, o «salve, Santo Padre!, vivas tanto ou mais que Pedro!»; mas por vezes nos esquecemos – e, disso, o Papa Francisco tem insistido em nos lembrar praticamente todos os dias – de rezar por aquele que enverga a batina branca do Sumo Pontificado.

Porque – é o que a meditação serena da História Sagrada nos mostra – Satanás quer joeirar Pedro como trigo; e Pedro precisa, sempre, de quem rogue por ele, a fim de que a sua Fé não desfaleça. Nas páginas dos Evangelhos e da Sagrada Tradição foi Cristo quem tomou para Si este papel – no Cenáculo como na Via Appia. Christianus alter Christus; o cristão – todo cristão – é um outro Cristo e, por isso, é aos cristãos que hoje cabe – é a cada um de nós portanto – rezar por S. Pedro, rezar pelo Papa.

Afinal de contas, ele é martirizado…! S. Pedro sofre em seus sucessores, e importa que ele sofra de modo a completar em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo em favor da Igreja – como ensina o Apóstolo, também ontem celebrado. Porque, no fundo, a escolha não é entre o sofrimento e a tranquilidade: S. Pedro sofria ao fugir de Roma e sofreu no madeiro da Cruz. A escolha cristã – do Papa e de cada um de nós – é entre o sofrimento inútil e o sofrimento agradável a Deus. E isto não é fácil. Importa, portanto, que rezemos com afinco uns pelos outros. Principalmente pelos que mais precisam e aos quais estamos mais obrigados.

É a solenidade de S. Pedro, o Príncipe dos Apóstolos: que ele olhe pelos seus sucessores! E nós, oremus pro pontifice nostro Francisco, sempre. Ele precisa. Ele o pede. Nós devemos.

“Se dizem cristãos, e fabricam armas!”

Perguntam-me o que houve, que já há mais de um mês não se vêem mais textos por aqui. Não houve nada. Por um lado, ocupações demasiadas – pessoais, profissionais, acadêmicas – a sugar-me o tempo cada vez mais exíguo; por outro lado, e talvez seja preciso dizê-lo, uma certa dificuldade em encontrar o que escrever.

Encontrar como posso ser útil a Cristo e à Santa Igreja…! Esta é uma necessidade sem dúvidas da maior importância, de primeira, primeiríssima!, ordem. No entanto, não é fácil. Talvez eu não disponha mais da agilidade necessária para acompanhar o turbilhão da mídia, cada vez mais vertiginoso e, por conta disso mesmo, cada vez menos importante. Um exemplo talvez paradigmático disso: há menos de 24h pululou uma manchete – absurda e sem sentido – dizendo que o Papa disse que fabricantes de armas não podem ser cristãos. Ora, é uma sentença perfeitamente estapafúrdia. O que se faria, aqui, neste blog, em tempos de normalidade?

Primeiramente, ir-se-ia à declaração original. A reportagem secular diz que isso aconteceu «durante um comício para milhares de jovens ao final do primeiro dia de sua visita à cidade italiana de Turim». A matéria, na cobertura da Canção Nova, é esta aqui; belíssima, piedosa, edificante, e nada diz a respeito de fabricantes de armas.

Fracassada a busca na mídia lusófona, ter-se-ia que recorrer ao original italiano. Está aqui. A parte das armas está lá, lá pelo meio do texto, na resposta à jovem Sara. “Se dizem cristãos, e fabricam armas!”, brada o Romano Pontífice. A pergunta? Desconfiança da vida. O contexto visado pelo Santo Padre? A guerra, em particular a Primeira Guerra, e «aquela hipocrisia de falar de paz e fabricar armas, e até mesmo vender armas a este que está em guerra com aquele e àquele que está em guerra com este!».

Contextualizada a celeuma, passar-se-ia à sua explicação, ao seu justo sentido, à elucidação do mistério. Mas, hoje, até mesmo a polêmica é de baixa qualidade. Não há o que discutir, porque os dois extremos são bastante evidentes.

É, por um lado, evidente que, do excerto, não é possível, ao menos não seriamente possível, inferir a excomunhão do velho Winchester ou o interdito sobre os clientes da Taurus. Não se fala das armas simpliciter, e sim das armas feitas para a guerra; e, mais ainda!, não apenas das armas feitas para a guerra, assim, abstratamente, mas sim daquelas comercializadas indistintamente para ambos os lados do conflito, promiscuamente, sem se preocupar com o restabelecimento da paz ou com a cessação da agressão injusta mas, ao contrário, tirando vantagem pecuniária do conflito armado para cuja perpetuação é economicamente interessante trabalhar. E aqui a outra evidência: é evidente, para além de toda a evidência, que quem tira proveito da morte e da carnificina não pode se dizer cristão. Que diferença, no entanto, entre isto e a manchete primeva! Feito todo o caminho, desaparece a razão do estranhamento original. O problema não está nos rifles de caça, nas academias de tiro, nas armas para a defesa pessoal ou para os agentes do Estado; o problema, o indiscutível problema, está naquilo que fazem os Sons of Anarchy. Era mesmo necessário gastar todo este latim?

Em suma, os motivos pelos quais venho progressivamente perdendo o gosto por este modus operandi podem ser sintetizados no seguinte:

  1. Está ficando humanamente impossível responder a toda besteira levantada contra a Igreja em geral (ou contra o Papa Francisco em particular), porque a taxa de surgimento de absurdos está ultrapassando – que digo? Há muito tempo já ultrapassou! – qualquer limite de razoabilidade.
  2. Devido à baixa, baixíssima qualidade dessa polêmica chinfrim, isso está deixando de ser intelectualmente recompensador. Uma coisa é o desafio de enfrentar um oponente de, pelo menos, alguma habilidade natural; outra, bem diferente, é ficar juntando lé com cré e demonstrando que, do fato de a indústria da guerra ser deplorável, não segue que o tiro esportivo igualmente o seja. Sinceramente, não é necessário que haja uma pessoa se dedicando a este serviço. Estou certo de que qualquer pessoa capaz de ler este blog e o compreender minimamente consegue, também, fazer por conta própria estes passos argumentativos aqui desenhados.
  3. Esta proliferação de alegações estapafúrdias que não resistem ao mais comezinho exame crítico está também provocando o descrédito da mídia e a sua progressiva desimportância: a enxurrada de abobrinhas é tamanha que, semana que vem, ninguém lembra mais do absurdo alardeado na semana passada. Oras, é melhor então deixar o bicho morrer sozinho do que o perseguir com estardalhaço. Não vale a pena perder tempo na caça diligente ao chacal mirrado e já moribundo do qual amanhã, de qualquer modo, só restará o cadáver putrefato.
  4. Ser reativo, às vezes, é até agradável. O tempo inteiro, contudo, é extenuante. Não acho que exista mais espaço para isso na internet pós-boom das redes sociais. O terreno está devastado pela mediocridade; não tem mais sentido arrancar laboriosa e pacientemente os cardos do campo. Cumpre dar as costas a esta porcaria toda e arranjar outra ocupação menos inglória a que se dedicar.

Que ocupação…? É este o ponto. Preciso encontrá-la. Como disse acima, preciso achar como posso ser útil à glória de Deus Nosso Senhor. Decerto escrevendo. Decerto aqui, neste espaço entrincheirado e protegido que a tantas duras penas conquistei. Deus lo Vult!, sem dúvidas. É questão, somente, de amolar a espada no rosário. É questão de dar os primeiros passos – o caminho se faz ao caminhar. É questão de voltar. Aproveitar melhor o tempo…! Levantemo-nos, vamos. Elevemos este lugar mais uma vez. Vejamos o que a Providência ainda não me reserva. Perscrutemos no horizonte que batalhas ainda não me é possível travar. AMDG. Semper.

Os detentos de Rebibbia não são modelos de virtude

Certo leitor do Deus lo Vult! dispara aqui no blog:

Bergoglio mostra para quem queira ver a sua estratégia.

Levou para a Santa Sé um travesti e lavou o pé do mesmo durante a cerimônia do Lava-Pés. Sabendo-se da repercussão negativa que isso teria para a sua imagem dentro da Madre Igreja, agora ele tenta consertar criticando de forma superficial, típica dos modernistas, a tal “teoria do gênero”.

Primeiramente, o Papa não levou ninguém “para a Santa Sé”. O que ele fez foi visitar (como aliás parece ser já tradição…), na Quinta-Feira Santa, um presídio nos arredores do Vaticano e, lá, celebrar a Missa da Ceia do Senhor.

Segundamente, e mais importante, há uma diferença enorme, gigantesca!, entre o militante LGBT que ostenta orgulhoso a sua transexualidade e o presidiário transexual. Ora, o que se esperaria encontrar num presídio? A nata da intelectualidade contemporânea? As vestais do mundanismo moderno? De maneira alguma. Em um presídio, encontram-se criminosos condenados!

Quais os crimes cometidos pelos detentos cujos pés foram lavados pelo Vigário de Cristo? Infeliz ou felizmente, nós não temos acesso à ficha criminal de cada um deles. Parece razoável imaginar que houvesse, lá, assaltantes e agressores, prostitutas e traficantes de drogas, talvez estupradores e assassinos. E se é legítimo lavar os pés a ladrões e traficantes, por que não haveria de ser, também, lavá-los a um transexual? Alguém acaso imagina que ir ao encontro de criminosos no cárcere é, de alguma maneira, condescender com o crime, apoiá-lo, legitimá-lo, diminuir-lhe a importância ou coisa do tipo? Se lavar os pés de criminosos condenados evidentemente não é apologia ao crime, por que lavar os pés de um transexual seria uma defesa do transexualismo?

É exatamente o que pergunta o blogueiro do Cigueña de la Torre. E a sua colocação é bastante pertinente: uma coisa é questionar a conveniência de o Papa celebrar a missa do Lava-Pés em um presídio, ou a evidente distorção do sentido das rubricas da Missa in Coena Domini (que mandam lavar os pés a viri selecti) em curso. Outra coisa bem diferente é se aferrar à especificidade do pecado de um dos criminosos ao qual o Santo Padre lavou os pés na última Quinta-Feira Santa e, munido disso, alardear um escândalo que de modo algum se depreende dos fatos passados em Roma!

Não é razoável esperar encontrar a fina flor do catolicismo em um presídio italiano, e nem faz o menor sentido pretender que os detentos de Rebibbia sejam modelos de virtude apresentados, pelo Vigário de Cristo, à imitação dos fiéis católicos. Tal interpretação dos fatos é evidentemente disparatada – e isso vale tanto para o transexual quanto para o assaltante ou estuprador. O crime não passa a ser moralmente lícito porque o Papa lavou os pés a criminosos. O mesmo para o transexualismo.

Os 88 anos de um gigante

Era um dia de abril de 1927: vinha à luz aquele que, muitas décadas depois, sentar-se-ia no Trono de Pedro sob o nome de Bento XVI. E faria história.

No meu entender, são duas as principais razões pelas quais o papado de Bento XVI merece ser considerado “histórico”. Em primeiro lugar, ele foi, e o foi sinceramente, com todas as forças de sua alma, um resistente. Foi ele o Papa que impôs serena e intransponível resistência a todas as demandas por mudanças na Igreja que lhe chegavam, violentamente, todos os dias, dos quatro cantos do planeta. É injusto chamá-lo simplesmente de “conservador”, uma vez que o termo carrega uma conotação negativa totalmente inaplicável a Bento XVI. Ele não lutou simplesmente por “conservar”, de maneira acrítica e beligerante, a tradição da Igreja Católica – atividade que por si só já seria extremamente meritória, vale mencionar. Ele foi além e se empenhou, com admirável e incansável zelo, por fazer essa tradição conhecida ao mundo.

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É lógico que “conservar” a mensagem da Igreja – no sentido de garantir que ela não sofra acréscimos e nem mutilações – é uma coisa necessária. É um dever da mais alta necessidade, primário até, coisa à qual católico algum – muito menos o Papa! – pode se furtar. No entanto, a simples conservação não é suficiente: é preciso levar as almas à Fé. É neste sentido que o atual pontificado, aliás, fala tanto em acabar com a autorreferencialidade da Igreja: a Fé é pra ser guardada, sim, indubitavelmente, mas é também para ser transmitida. A doutrina deve ser levada ao conhecimento dos homens: Cristo disse “ide e ensinai” (cf. Mt XXVIII, 19), e a importância deste mandato não pode ficar escondida sob a necessidade (sem dúvidas legítima) de preservar a pureza da Fé.

E a outra razão pela qual o papado de Bento XVI se pode dizer histórico é o seu término: foi ele o homem que proferiu a Grã Renúncia após séculos. A estreiteza do nosso horizonte histórico faz com que nos escape a importância desse gesto, sem dúvidas; mas, mesmo daqui, já existem duas coisas que podemos entrever. Primeira, que a pressão pela renúncia será, doravante, mais um peso acrescido à cruz reservada aos vigários de Cristo – que isto os torne mais santos! E, segunda, que a boa convivência entre um Papa e o seu sucessor tende a ser uma eficaz barreira à verossimilhança da tese de ruptura entre pontificados, que a cada conclave interessa aos aproveitadores propagar. Acho que já o disse aqui: não canso de me perguntar o carnaval que não se faria se o cardeal Bergoglio tivesse sucedido a um falecido Bento XVI… E, sob esta ótica, a renúncia do Papa que hoje completa 88 anos afigura-se-me providencial.

São os 88 anos de um gigante. Feliz aniversário, Bento XVI! Que o Deus Altíssimo o abençoe e guarde, proteja-o e não o entregue às mãos dos seus inimigos. Que o aproximar-se de Deus sobrepuje o avançar dos anos: que a santidade de vida nada deva à velhice alcançada. Obrigado por tudo.

Papa Francisco ataca a teoria de gênero!

A mídia secular não é a melhor fonte de notícias a respeito do Papa Francisco, mas vale a pena citar esta matéria do Jornal do CommercioPapa ataca a teoria de gênero e defende colaboração entre homem e mulher. E vale a pena citá-la por pelo menos duas razões.

Primeiro, porque é um bálsamo encontrar, na mídia laica, uma notícia que soe desabonadora às expectativas anticatólicas que os incréus têm a respeito do atual pontificado. Não é interessante divulgar a doutrina católica e, por isso, quando o Papa Francisco costuma aparecer na mídia, as mais das vezes é para que ela – a mídia – faça propaganda d’alguma ideia anticatólica. O expediente já foi empregado tantas e tantas vezes que perdeu a graça: na verdade, a gente já nem esperava mais encontrar, nas manchetes dos jornais, o Papa associado àqueles aspectos do Catolicismo que desagradam o pensamento mundano hoje hegemônico…

(E há algo de profundamente triste nisso, sem dúvidas. Atingiu-se um novo patamar de perda de referências: agora não é mais simplesmente que as pessoas não dêem ouvidos ao que diz a Igreja Católica. Atingiu-se o paroxismo: as pessoas não associam mais o Romano Pontífice à Igreja Católica!)

A segunda razão pela qual vale a pena citar a matéria do Jornal do Commercio é esta: a Catequese de hoje, na verdade, não tem nada de excepcional. O Papa trata o tema de modo bastante rudimentar, repleto de lugares-comuns e de banalidades – atenção, que com isso não se está fazendo pouco caso da catequese pontifícia! Está-se, tão-somente, afirmando o caráter introdutório, basilar, fundamental do discurso pontifício. E o ponto a que quero chegar é: nem mesmo um texto superficial, que aborde trivialidades da doutrina católica, pode mais ser proferido pelo Papa Francisco sem que a mídia rasgue as vestes e acuse o golpe.

Tive a curiosidade de procurar por “Papa”, “Teoria” e “Gênero” no news.google.com. As manchetes são impressionantes. Papa Francisco arremete contra la teoría de géneroCritica papa Francisco la teoría de género que reconoce a homosexualesPapa contra “Teoría del género” de grupos LGBTPapa Francisco califica a la teoría de género de ‘error de la mente humana’. Ao que parece, apenas a mídia tupiniquim lembrou acrescentar, ao final da manchete, que o Papa também defendeu a colaboração entre homem e mulher…

Quem lê pensa que saiu uma encíclica sobre o tema, uma bula papal condenando solenemente a tese, uma exortação detalhada e específica sobre o assunto! Quando, na verdade, a única frase, no meio da audiência geral, é quando Sua Santidade se pergunta «se a chamada teoria do gênero não seja expressão de uma frustração e de uma resignação, que visa a cancelar a diferença sexual porque não sabe mais como lidar com ela». E isso me leva a pensar em algumas coisas.

Pergunto-me no que acontecerá quando vier, de Roma, alguma coisa mais substancial a respeito do tema do que a menção en passant de hoje. Que retórica usarão os (de)formadores de opinião para indispôr as pessoas contra o Papa, agora que já gastaram todo o seu repertório para fulminar uma menção incidental à teoria de gênero?

Pergunto-me ainda se o problema de certa mídia não é, ao contrário do que parece à primeira vista, mais de falta de senso de proporções do que de astúcia inteligentemente voltada para o mal. Porque parece haver certa má fé em pinçar banalidades do quotidiano do Papa Francisco para as pintar como flagrantes oposições ao ensino da Igreja, como vaticínios infalíveis de que a Esposa de Cristo está se curvando aos “avanços” do século XXI. Ora, mas neste caso de hoje a banalidade pinçada é desfavorável à agenda moderna…! O que me leva a pensar que, talvez, eles simplesmente não sejam capazes de ponderar os fatos sobre os quais julgam precisar falar. Talvez, no final das contas, o deplorável nível intelectual do homem médio contemporâneo deva ser creditado não apenas à manipulação da imprensa, mas a uma sua nada negligenciável falta de bom senso e de competência na realização do seu trabalho.

Pergunto-me, por fim, se não existe algo de irônico nesse serviço à Igreja prestado por linhas tortas, uma vez que a maior parte das pessoas não vai ler a catequese hebdomadária do Papa Francisco mas tão-somente a matéria do jornal (que digo? A maior parte das pessoas vai ler somente a chamada da matéria!). E talvez isso ajude a formar, no imaginário coletivo, uma imagem do Papa Francisco um pouco mais próxima daquela de um Sumo Pontífice. Quem sabe as pessoas encontrem mais o Papa nestas manchetes (mal-feitas!) de ódio mal-disfarçado do que em todas as outras onde se incensa um ídolo moderno que, para ser mais palatável, costuma ser apresentado sob uma batina branca e por detrás do rosto sorridente de um antigo cardeal argentino.

«Mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente

Ontem, oito de março, celebrou-se o dia internacional da mulher. Qualquer mínimo passeio pelas redes sociais revela que a data comemorativa foi amplamente sequestrada pelo feminismo revolucionário; todo mundo sabe, por exemplo, que a data é amplamente utilizada para que um punhado de mal-amadas, envergonhando o sexo grandioso que possuem, venham a público na mais despudorada e cínica apologia do aborto.

A bem da verdade, aliás, talvez o mais correto não fosse dizer que o oito de março foi “sequestrado”. Em sua gênese, a comemoração é e sempre foi feminista mesmo. A diferença, talvez, é que antes da expansão desenfreada da internet os atos pró-aborto tinham a repercussão pífia que mereciam. Ninguém dava atenção. Hoje, contudo, quando a qualquer coisa se concede ares de evento histórico, as feministas – cujo barulho, por conta dos amplificadores virtuais, é percebido muitas ordens de grandeza acima do real – conseguem tornar ainda pior um dia que, a despeito das suas raízes inglórias, bem que poderia ser aproveitado. Que seria digno e justo, aliás, aproveitar.

Porque não vêm de hoje as tentativas de “cristianizar” o Oito de Março. À mensagem ontem divulgada pela CNBB – peça esquerdóide da pior qualidade que cobre de vergonha a Igreja do Brasil e atrai a ira do Todo-Poderoso sobre esta terra de Santa Cruz -, por razões que saltam aos olhos à mera leitura do documento, talvez não seja legítimo conferir o status de bem-intencionada tentativa de evangelização. Coisa distinta, contudo, já se pode dizer da ligeira saudação do Papa Francisco após o Angelus dominical: o dia de ontem, disse o Papa, «é uma ocasião para reafirmar a importância das mulheres e a necessidade da sua presença na vida».

Mas não se pense que o Pontífice argentino é pioneiro nessa seara. Fazer remissões católicas mesmo a feriados originalmente anticlericais não é novidade na história da Igreja. Veja-se, à guisa de exemplo, os dois pontífices anteriores, em dois oitos de marços do passado relativamente recente:

  • Bento XVI, em 08 de março de 2009: a efeméride «convida-nos a reflectir sobre a condição da mulher e a renovar o compromisso, para que sempre e em toda a parte, cada mulher possa viver e manifestar plenamente as suas próprias capacidades, obtendo o pleno respeito pela sua dignidade».
  • São João Paulo II, em 08 de março de 1998: «[i]nfelizmente somos herdeiros duma história cheia de condicionamentos, que tornaram difícil o caminho das mulheres, por vezes menosprezadas na sua dignidade, deturpadas nas suas prerrogativas e com frequência marginalizadas. Isto impediu-as de serem completamente elas mesmas e empobreceu a inteira humanidade de autênticas riquezas espirituais.»

É provável que tenha sido S. João Paulo II o primeiro a trazer la Giornata della Donna para o calendário eclesiástico; ao menos no site do Vaticano, a referência mais antiga à data está neste Angelus de 1987. Antes disso, aliás, e registre-se, parece que não havia nenhuma particular preocupação em execrar o 8 de março. Se o feriado é originalmente comunista, é particularmente nos dias de hoje que os seus efluxos malsãos se fazem significativamente sentir (porque hoje, como já se disse, multiplicam-se estrados para qualquer canastrão). Não é revolucionária a mera referência às mulheres, e nem existe anticlericalismo intrínseco ao fato de se parabenizar as pessoas do sexo feminino em uma data específica do ano. Este não é e nem nunca foi o ponto relevante aqui.

O que realmente interessa é o seguinte. Em referência aos grunhidos das feministas pela legalização do aborto a que se referiu acima, veja-se esta notícia hoje publicada: maioria dos internautas se posicionaram contra o aborto. É provavelmente a milésima pesquisa sobre o assunto que corre a internet; pela milésima vez, as pessoas se dizem contrárias a esta covardia suprema que é o assassinato de uma criança no ventre de sua mãe. Ou seja, em um dia abertamente devotado à propaganda da agenda pró-aborto mais escancarada, as sedizentes representantes das mulheres amargaram, de novo e mais uma vez, uma rotunda derrota: não, as pessoas não acreditam, graças a Deus!, que uma mãe pode dispôr da vida do seu filho, ainda que ele se encontre em seu ventre. As pessoas não aceitam o aborto, por mais que insistam no assunto. No meio da revolução moral em que vivemos, essa resistência não pode deixar de ser notada. Por que isso é assim?

Porque «mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente. Porque na verdade as mulheres, como o Papa Francisco disse na mensagem de ontem, são aquelas que «trazem a vida», e esta é a imagem que resplandece com maior força sempre que alguém lhes faz alusão. Para obscurecer a íntima relação existente entre feminilidade e maternidade é necessário um grau de embrutecimento muito maior do que as pessoas estão geralmente dispostas a aceitar – e tal intuito tem falhado miserável e consistentemente, por mais que as feministas tenham consagrado todas as suas forças ao longo das últimas décadas à sua imposição. Para vencer a agenda revolucionária das inimigas das mulheres, portanto, não é necessário combater o oito de março: basta enaltecer a mulher naquilo que lhe é mais próprio. Porque, no fundo, quem diz “mulher”, diz “mãe”. E a maternidade é a mais radical rejeição ao aborto que pode haver.

O Inferno continua eterno como sempre esteve

Foi recentemente divulgado, nas redes sociais, em tom elogioso, um artigo da lavra do Juan Arias e republicado pelo Unisinos que é abertamente herético. Sob o título “O Papa Francisco revisa a teologia do Inferno” (!), o articulista se esmera por demonstrar que Sua Santidade teria defendido a tese de que o inferno não é eterno.

Não sei se o mais impressionante é o sr. Arias mentir na cara dura, haver pessoas que acreditem na canalhice do sr. Arias ou haver pessoas que comemorem o disparate inventado pelo sr. Arias como se fosse um “avanço” para a Igreja Católica. Quanto a estes últimos, tolos!, não percebem que a beleza da Igreja Católica é justamente a Sua intransigência diante do furor das Potências do mundo, é precisamente a Sua solidez inabalável enquanto, ao seu redor, rebentam os vagalhões açodados pela procela do Século. Não entendem que, no instante em que a Igreja começar a “revisar” matéria teológica que seja, deixa de existir qualquer razão para alguém acreditar na Igreja Católica, uma vez que cessa de haver qualquer garantia de que a nova doutrina não vá também ser alterada na semana que vem.

Mas – ó, surpresa…! – ainda não foi dessa vez que a Igreja de Cristo prevaricou. O texto de Unisinos começa dizendo que o Papa Francisco «aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”». A alegação é simplesmente disparatada; quase tão incrível quanto aquela outra, evidentemente falsa, que circulou há um ano e onde era dito, na maior sem-cerimônia, que o Papa dissera que não há fogo no Inferno e Adão e Eva não são reais.

E, hoje, existe internet…! Com cinco minutos de Google qualquer pessoa consegue acessar, no site do Vaticano, o discurso do Papa aos novos cardeais. A homilia do Consistório (à qual cheguei primeiro), do dia 14 de fevereiro, não diz nada nem remotamente parecido com o que o Juan está falando. Achei-o no dia seguinte, na Santa Missa com os novos cardeais, celebrada pelo Papa aos 15 de fevereiro. Lá pelas tantas, o Papa Francisco dispara:

O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» essenciais da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).

É difícil saber até mesmo por onde começar. Em primeiro lugar, a palavra “Inferno” não consta nem no período e nem em nenhuma outra parte da homilia. Na passagem, aliás, o Papa fala – muito claramente – de coisas concretas como o perdão concedido àquelas pessoas que o pedem arrependidas, não havendo esforço hermenêutico possível que o possa colocar, nesta passagem, fazendo digressões escatológicas sobre os Novíssimos. Em uma palavra, o Papa está dizendo que a Igreja perdoa os que Lhe pedem perdão, e não que o Inferno não é eterno. Sobre «derramar a misericórdia de Deus», a propósito, o Papa faz questão de dizer, na imediata sequência da frase, que isso se faz «sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero». Ou seja, a Igreja perdoa as pessoas que – partícula que introduz oração subordinada adjetiva restritiva – pedem a misericórdia de Deus com coração sincero, e não “todas as pessoas” e nem “em todas as circunstâncias”. O tema não tem nada a ver com o inferno ser eterno ou temporário, evidentemente não tem, e é preciso muita estreiteza intelectual ou deformidade de caráter para interpretar dessa maneira ou assim divulgar. Sim, há quem negue a eternidade do inferno; mas esses são os hereges de todos os séculos, e não o Papa Francisco.

E o texto é ainda repleto de inverdades grosseiras, mas tão grosseiras que parecem saídas da pena de um prosélito irreligioso carente de níveis mínimos de erudição. Por exemplo, a seguinte frase é digna de um lunático:

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno.

Um relincho desses só pode ter sido escrito por alguém que nunca ouviu falar em uns livros chamados Evangelhos. Porque qualquer pessoa que tivesse alguma vez na vida se preocupado em abrir as Escrituras Sagradas encontraria, lá, entre outras, a seguinte sentença peremptória capaz de pôr fim à celeuma:

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. (São Mateus 25, 41)

Fogo eterno. Na Vulgata – cujos termos a ascendência latina do nosso português não nos permite compreender errado -, in ignem æternum. Ora, se o próprio Cristo, nos livros tidos como sagrados pelos cristãos, disse, com todas as letras possíveis, que o fogo ao qual estavam destinados o demônio e seus anjos era eterno, como pode ser possível que a Igreja nunca tenha defendido até o século III aquilo que é ipsissima verba Christi?

Ao contrário do que o lenga-lenga do autor do texto leva o leitor incauto a acreditar, por conseguinte, o Inferno é sim eterno, e é nesses moldes que a Igreja sempre o entendeu: dos primeiros cristãos ao Papa Francisco inclusive. Qualquer um pode dizer o contrário disso, é verdade. Mas querer arregimentar em favor do seu devaneio o Papa Francisco ou a Igreja Primitiva, aí não! Aí já é cretinice sem a menor correspondência com a realidade – e que, portanto, urge desmascarar.

O católico e os impostos

O mundo é, definitivamente, cômico. Eu não sei o que foi exatamente que o Papa Francisco falou na homilia da Domus Sanctae Marthae na sexta-feira (20) – no momento em que escrevo essas linhas, a página do Vaticano está atualizada somente até o dia 19 de fevereiro -; mas sei que a manchete sobre a qual as pessoas desde sexta não param de falar (“Papa diz que pagar salários sonegando impostos é “um pecado gravíssimo””) é de um sensacionalismo grosseiro, que tem muito de lugares-comuns ideológicos e muito pouco de fatos jornalísticos. É realmente engraçado: sobre Fé e Moral ninguém quer escutar a Sua Santidade, mas em questões tributárias (!) o Papa Francisco rapidamente ajunta ao redor de si um auditório atento e deferente, ávido por espraiar, mundo afora, as jóias de sabedoria que julga ter logrado garimpar do que pensa ter ouvido o Papa dizer…

[Note-se, aliás, que o mesmo acontecimento, narrado pela mídia católica, não faz nenhuma menção a impostos.]

Houve de tudo: de quem dissesse que os impostos devem ser sempre pagos como se fossem o dízimo recolhido aos cofres do Templo de IHWH até quem falasse que isso era uma estatolatria ímpia com a qual cristãos não deveriam jamais condescender. Os impostos devem ser recolhidos ferreamente, podem ser pagos ao alvitre do contribuinte ou não devem ser repassados ao Estado de nenhuma maneira: cada qual que escolhesse a bandeira que melhor o representasse. No meio do pandemônio, convém fincar dois marcos para além dos quais é certo estar o erro. No espaço compreendido entre esse dois extremos é possível mover-se; já ultrapassá-los, aí não.

Primeiro marco: as autoridades constituídas têm poder conferido pelo próprio Deus para cobrar impostos, os quais portanto devem ser pagosOmnis potestas a Deo: e se isso inclui até mesmo o poder de condenar à morte (cf. Jo XIX, 11), claro está que abarca também o de cobrar impostos. Outra coisa não diz o Apóstolo: “Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito (Romanos 13, 7)”.

Para o católico não pode haver dúvidas quanto a isso, por mais que esbravejem os libertários contemporâneos. O Catecismo Romano, escrito em seqüência ao Concílio de Trento – séc. XVI portanto, muitas gerações antes das revoluções burguesas -, já o afirmava. Com a clarividência que sempre lhe é peculiar, a Igreja transpassava o véu do futuro e fulminava, séculos antes de ser divulgada na internet, a ideia de que “imposto é roubo” hoje alardeada. É o contrário. Roubo é não pagar os impostos. Assim consta no antigo Catecismo (III parte, Cap. VIII, 10):

Nesta classe de ladrões se incluem os que não pagam, ou desencaminham, ou aplicam para si mesmos os impostos, fintas, dízimos e outras contribuições devidas aos superiores eclesiásticos e às autoridades civis.

E, respondendo à objeção de que se a vítima fosse rica a subtração de um bem de relativamente módico valor não lhe faria falta e, portanto, tal não seria pecado (qualquer semelhança com o Estado que “já tem dinheiro demais” não parece mera coincidência), o Catecismo fulmina (id. ibid., 23):

Mas que responder, quando por vezes ouvimos os ladrões afirmarem que não cometem pecado algum, roubando de pessoas ricas e abastadas, que disso não sofrem dano algum, e nem chegam a perceber o furto? Na verdade, uma vil e funesta desculpa.

O mesmo se diz, pouco antes, contra os que “tomam, por desculpa, a maior facilidade de levarem um padrão de vida mais confortável” (id. ibid. 22).

Não há, portanto, margem para tergiversar. O Estado não rouba ninguém ao cobrar impostos. Ao contrário, quem rouba é quem nega às autoridades civis aquilo que lhe é devido. Esta e não outra é a Doutrina Católica, da qual não se devem apartar os que têm mais amor à própria alma do que ao dinheiro.

Segundo marco: ninguém é obrigado a recolher impostos às custas da ruína de si próprio e dos seus.

Isso é bastante óbvio. Depreende-se da própria noção de subsidiariedade, segundo a qual não faz sentido prover às necessidades das esferas mais altas ao sacrifício das mais baixas.

Depreende-se, também, do fato de que o Estado, embora tenha legitimidade para promulgar leis, as vezes o faz de maneira ilegítima, se as leis que ele manda observar são injustas. Neste caso, tais leis não precisam ser obedecidas senão na medida de evitar o escândalo ou a desordem (cf. Summa, I-IIae, q. 96, a.4, Resp.). Ora, mas os impostos são instituídos mediante leis. Pode haver situações, portanto, em que seja legítimo deixar de pagar os impostos.

Por fim, já há, no próprio ordenamento jurídico positivo brasileiro, casos em que se reconhece não ser exigível o sacrifício do próprio patrimônio ao Fisco. P. ex.:

O conjunto probatório colhido no curso da instrução processual comprova a ausência de dolo na conduta do réu, restando testificadas as sérias dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa contemporaneamente aos fatos esquadrinhados. A inadimplência para com o fisco foi constatada mediante simples fiscalização do INSS, uma vez que todos os descontos estavam devidamente escriturados nos documentos contábeis da empresa, detalhe que bem ajuda a corroborar o juízo de que o réu não se portou dolosamente,

(TRF-5 – APR: 200784010001290 , Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho, Data de Julgamento: 13/05/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: 19/05/2014)

Na hipótese dos autos, em que pese a comprovação da materialidade e autoria delitiva em questão, faz-se necessário reconhecer a incidência da causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face das dificuldades financeiras apresentadas pela empresa. 2. Demonstradas, na forma da v. sentença apelada, as dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa administrada pela acusada, faz-se necessária a manutenção da sentença a quo que a absolveu da prática do delito previsto no art. 168-A, § 1º, I, do Código Penal, com o reconhecimento da causa de exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. 3. Sentença mantida. Apelação criminal desprovida.

(TRF-1 – ACR: 97176820104013800 , Relator: JUÍZA FEDERAL CLEMÊNCIA MARIA ALMADA LIMA DE ÂNGELO (CONV.), Data de Julgamento: 19/05/2014, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 30/09/2014)

Ou seja: do fato de o Estado ter legitimidade para cobrar impostos (falando-se em sentido amplo e genérico) não necessariamente segue que todo e qualquer imposto particular seja legítimo (falando-se, aqui, de cada caso concreto). Do fato de ser necessário pagar impostos, não segue que os impostos precisem sempre ser pagos sob pena de “pecado gravíssimo” – às vezes, aliás, como se mostrou, nem mesmo de crime.

Não se nos entenda mal. É evidente que não é legítimo a cada particular esquadrinhar as leis emanadas pelo Estado para, por conta própria, decidir se são justas ou injustas: isso geraria o caos social. As autoridades legítimas devem gozar de presunção de legitimidade, é lógico. A desobediência civil – mesmo no caso do pagamento de impostos – é para ser invocada com parcimônia, e somente em casos proporcionalmente graves. No entanto, é preciso deixar claro que ela existe. E, ao contrário do que alardeou recentemente certa mídia, não é sempre “pecado gravíssimo” deixar de pagar os impostos de César.

P.S.: Já saiu a meditazione da sexta-feira no site do Vaticano: Digiuno dall’ingiustizia. Não há nenhuma referência direta a impostos. A provável origem da manchete é a seguinte passagem:

«Va bene. E com’è il rapporto con i tuoi dipendenti? Li paghi in nero? Paghi loro il salario giusto? Versi i contributi per la pensione? Per assicurare la salute e le prestazioni sociali?»

Portanto, i) não se trata de “impostos” simpliciter, e sim daquilo que é devido pelo empregador aos seus empregados com vistas a pensões, saúde e prestações sociais – i.e., não se trata do dever do cidadão perante o Estado, mas do homem para com os que dele dependem; e ii) a censura pontifícia é dirigida à sonegação de impostos apenas mediatamente, uma vez que o que se condena na verdade é «quello che non fa giustizia con le persone che dipendono da lui». E a “justiça” ao empregado, definitivamente, não é a Previdência Social do estado brasileiro! Que não pensem que os deveres cristãos se esgotam em remeter os pobres aos tentáculos de Leviatã. Se a generosidade dos patrões não sobrepujar a dos burocratas de Brasília, ser-lhes-á difícil herdar o Reino dos Céus…