Sobre forma e conteúdo: maus comentários e o caso Ciudad del Este

A respeito do último texto do Blogonicvs, que comenta um post daqui do blog, eu gostaria de esclarecer quanto segue:

1. Não foi o Danilo quem comentou aqui no Deus lo Vult! (e nem eu disse que tinha sido), e sim o Renato, um sedevacantista que já é figurinha conhecida e carimbada entre os leitores do blog, conhecido por simplesmente cuspir links aleatórios com frases do tipo “veja isso, Jorge!”, “abra os olhos enquanto é tempo, Jorge!” e congêneres, quase sempre sem nenhuma propensão ao debate ou à crítica construtiva, quase sempre com mero animus de semeador do caos e arauto sorridente de más notícias, pouca diferença fazendo se supostas ou verdadeiras.

2. Por conseguinte, também não foi o texto do Blogonicvs (nem na íntegra e nem no excerto aqui citado) que apodei de “exemplo de mau comentário”, e sim o referido comentário do Renato, que consistia simplesmente em copiar-e-colar um link de pertinência (no mínimo) controversa. Eu o disse no próprio texto, ao esclarecer (logo no início) que recebera comentários (cito-me recursivamente, pedindo perdão pelo excesso de aspas) «exatamente naquele estilo que eu deplorei aqui de «mera reprodução de conteúdo»». E o que tem neste link, a que me referia, é o seguinte:

Contudo, procurarei ser também mais criterioso: se o texto principal não é espaço para mera reprodução de conteúdo, tampouco a área de comentários deve ser usada para simples divulgação do que quer que seja.

O “exemplo de mau comentário”, portanto, não era o texto do Blogonicvs (nem nenhum dos outros textos citados no post). Os maus comentários eram os do Renato, copiando e colando links aleatórios, sem nenhum comentário, sem nada, e despejando-os em posts daqui do Deus lo Vult! com os quais aqueles pouco tinham a ver. A questão, destarte, é e sempre foi precipuamente de mera forma, sem entrar no mérito do conteúdo divulgado.

3. Eu não comento em quase nenhum outro blog fora este aqui, mas os leio. Não com a maior fidelidade do mundo, mas leio. O Danilo, aliás, desde os tempos do Igreja Una. Inclusive aqui, no rodapé do Deus lo Vult!, entre outros blogs, estão o próprio Blogonicvs e o Fratres in Unum, de onde saíram dois dos três textos criticados naquele post que ensejou esta celeuma. Não subscrevo tudo o que eles escrevem (na verdade, as únicas coisas que eu subscrevo sem reservas são as que eu escrevo de próprio punho ou as que digo explicitamente subscrever); do Fratres, a propósito, eu discordo muito mais do que com ele concordo. Não obstante, no contexto da internet católica contemporânea têm inegável relevância. Por mais que se possa (e em alguns casos até se deva) discordar deles, é importante conhecê-los. Penso que somos todos crescidos o suficiente para conviver em relativa harmonia. Oremus pro invicem.

4. Entrando por fim no mérito dos textos, com a devida vênia, extrapolar de um anúncio de uma visitação apostólica a uma Diocese que abriga um sacerdote acusado de abuso sexual de menores (tema particularmente candente nas últimas décadas cujo combate mereceu atenção, digamos, “midiática” (no sentido de que se percebeu a importância, mais do que simplesmente fazer, de também dizer ao mundo que se estava fazendo) nos dois últimos pontificados) um suposto revanchismo do Papa Francisco e (outro) exemplo de seu combate acirrado contra tudo o que é tradicional é, convenhamos, um pouco paranóico sim. Os motivos da visitação até onde eu saiba não foram anunciados, os seus resultados não podem ser conhecidos antes de decorrerem do fato que ainda não se deu e, portanto, todo o texto que pinta o Papa Francisco – Sumo Pontífice gloriosamente reinante – com as cores de um Bicho-Papão devorador de tradicionalistas é especulativo e infundado. Enseja uma atitude de desconfiança do fiel católico simples para com o Vigário de Cristo, estado de espírito absolutamente inconveniente para o católico e que não deve, portanto, ser incentivado. Merece esta crítica, sim, que fiz en passant no outro texto (uma vez que o foco lá era desencorajar a prática de copiar-e-colar links na caixa de comentários do Deus lo Vult!), mas que detalho um pouco mais agora.

5. Por fim, ainda sobre Ciudad del Este, pouco ou nada sei sobre a exuberante vida tradicional abrigada na Diocese, mas sei de uma coisa: é óbvio que existe hoje em dia um enorme preconceito (inclusive e infelizmente eclesial) contra o catolicismo sério. Quem portanto toma sobre os ombros o fardo de ser um facho bruxuleante de luz que seja em meio ao caos generalizado em que nos encontramos não pode, de nenhuma maneira, abrir flanco a ataques dos inimigos de Cristo. À mulher de César não basta ser mulher de César, sabe-se muito bem, e ao católico que quer ser exemplo no meio da crise (ou mesmo que não queira – quem se encontre de repente como exemplo, ainda que por conta da generalizada aridez ao redor!) não basta ser católico exemplar, tem que o parecer também. Assim, é de uma imprudência sem tamanhos acolher um sacerdote acusado de pedofilia e – pior ainda! – conferir-lhe cargos de importância. Não importa se o acusado é inocente, não importa se a Diocese não tem nada a ver com as coisas das quais ele é acusado: importam as cores tétricas com as quais esta Diocese torna-se passível de ser pintada diante da opinião pública e, junto com ela, todo o catolicismo tradicional que ela encarna, que é difícil de distinguir dela própria e, por isso mesmo, que sai injustamente enlameado dessa história. As filhas do Pe. Maciel são muito mais daninhas ao catolicismo do que os de Fernando Lugo, exatamente por causa da imagem de católico que o primeiro detinha e com a qual o último nunca se preocupou. Exposto isso, é de dar graças a Deus que seja um Visitador Apostólico a chegar em Ciudad del Este. Muito pior seria se fosse um Roberto Cabrini.

A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem

Pediram-me um comentário a respeito da notícia de que o Papa Francisco estaria “sinalizando” a nomeação de mulheres para cargos importantes na cúria. Vejam, o que realmente importa nesta pergunta – assim interpreto eu os sentimentos dos que se sentem angustiados com este tipo de notícias – não é o que ela denota objetivamente. A rigor e analisada em si mesma, essa notícia (1) não possui substância alguma e, (2) ainda que possuísse, seria algo de extremamente banal e corriqueiro.

Por que digo que a notícia não possui substância? Porque ela faz todo um escarcéu em cima de uma frase solta numa entrevista à qual provavelmente nem o próprio Papa Francisco deu a importância que os microscópios da mídia artificialmente lhe conferem. Existe uma mulher concreta cujo nome está sendo cogitado pelo Papa? Não. Existe um cargo concreto que o Papa pretende conceder a uma mulher? Não. Existe um prazo definido dentro do qual passará a haver mulheres – ou pelo menos uma mulher – nomeadas para os dicastérios romanos? Não. Existe ao menos a certeza de que o Papa vai realmente fazer isso? Também não. Não há absolutamente nada, portanto, exceto o Papa dizendo em uma conversa privada com outro padre que “deve” nomear uma mulher «porque [elas] são mais inteligentes que os homens». Isso, sim, é literal: por que não apareceu ninguém, então, para criticar a novidade doutrinária de que as mulheres possuem uma inteligência metafisicamente superior à dos homens?

“Porque isso é besteira”, alguém haverá de dizer, “mas o empoderamento das mulheres em uma instituição tradicionalmente conduzida por homens tem um importante valor simbólico para a luta dos movimentos feministas”. E este é o ponto relevante aqui.

Os que se preocupam com essa notícia (e outras análogas) estão, na verdade, preocupados não com ela, mas sim com o “valor simbólico” do (possível) gesto noticiado. Mais ainda: estão, na verdade, preocupados com a instrumentalização, por parte de grupos revolucionários tradicionalmente avessos à Igreja, do (possível) gesto, conferindo-lhe um valor simbólico que ele absolutamente não possui e utilizando-o para justificar um sem-número de barbaridades (no caso em pauta, ordenação feminina e abolição das diferenças entre os sexos, p.ex.) que ele absolutamente não justifica. O problema, portanto, não está com o Papa, o problema não está nas mulheres trabalhando ou deixando de trabalhar nos órgãos da Santa Sé: o problema está naquelas pessoas que não estão nem um pouco preocupadas com a Doutrina Católica, mas são ávidas em pinçar palavras, atitudes e gestos do Romano Pontífice para dar (aparência de) força à sua concepção de mundo particular. O problema, em suma, não é o Papa nomear mulheres para cargos importantes na cúria. O problema é as pessoas usarem indevidamente uma coisa banal e corriqueira dessas em benefício de sua própria agenda ideológica.

E por que digo que é uma coisa banal e corriqueira? Por diversas razões. Primeiro, porque o trabalho administrativo nos órgãos da cúria não tem nada a ver, nem remotamente, com nada da doutrina (ou mesmo da disciplina) da Igreja Católica. Segundo, porque as mulheres ocupam desde sempre um lugar de especialíssima proeminência dentro do universo doutrinário católico – basta pensar na Santíssima Virgem Maria, referência de todo fiel, do menor dos leigos aos Papas. Terceiro, porque historicamente já foram concedidas a mulheres posições de poder totalmente inimagináveis mesmo pelo mundo laico contemporâneo. Quarto, porque já existem mulheres trabalhando nos dicastérios romanos, é óbvio, sempre devem ter existido: se elas não ocupam os cargos mais altos – de prefeitos, secretários etc. – é por razões de ordem sacramental e não sexista: a reserva é aos sacerdotes em preferência aos leigos, e não aos homens em preferência às mulheres. Quinto, porque isso é uma mera convenção em si indiferente que poderia ser de um sem-número de outras maneiras.

O problema, em suma, é a tentativa de enquadrar a Igreja – ou, melhor dizendo, aspectos desconexos da Igreja – em uma clave que A deforma e termina por A retratar de uma maneira totalmente infiel à realidade. Há uma quantidade potencialmente infinita desse expediente pouco criterioso: se um Papa não permite a ordenação de mulheres então é um misógino, se cogita dar algumas responsabilidades a uma mulher então é porque é um feminista revolucionário, se é contra a camisinha favorece a AIDS, se diz que o uso de preservativos por parte de um prostituto é o menor dos problemas morais nesta situação envolvidos então é um libertino querendo entronizar a revolução sexual na Igreja, se celebra versus populum é um modernista, se celebra versus Deum é um tridentino retrógrado, se condena o comunismo é um porco capitalista, se protesta contra as injustiças sociais é porque é um agente da KGB infiltrado.

Isso acontece, isso é feito o tempo inteiro pelos inimigos da Igreja e pior: isso tem dado certo. Há hoje muitas e muitas pessoas que odeiam a Igreja por Ela ser misógina, por ser esquerdista, por ser antiquada em excesso, por ser modernosa demais, por ser muito rígida, por ser muito lassa, por oprimir os ricos, por desprezar os pobres, por tudo: e só uma minoria ínfima odeia a Igreja por Ela ser o que Ela de fato é. Fulton Sheen dixit. E ele estava certíssimo. As pessoas via de regra não são contra a Igreja Católica. São contra a imagem desfigurada que elas têm da Igreja Católica.

O texto já vai longo, e arremato: a solução desse problema não passa por se abster de fazer as coisas em atenção às leituras distorcidas que pessoas ignorantes ou mal-intencionadas farão dessas coisas feitas. Isso é um erro monumental e absolutamente injustificável. Ninguém pode deixar de venerar a Santíssima Virgem para não ser acusado de idolatria, ninguém pode deixar de celebrar a Santa Missa com decoro e diligência para evitar ser olhado como a um fariseu. E, pela mesmíssima razão, para não ser confundido com um TL não é legítimo a ninguém esquecer que negar ao trabalhador o salário justo é um pecado que clama aos Céus vingança. Pela mesmíssima razão, ninguém pode determinar o que vai fazer ou deixar de fazer em função das reações do movimento feminista a esta ação ou omissão.

Se a Igreja tem que preservar a Sua independência, Ela a precisa preservar também (e talvez até principalmente) contra esses reducionismos maniqueístas tão em moda hoje em dia. A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem, isso é bastante evidente. Mas não é tão evidente assim que há formas mais sutis de pautar o comportamento de outrem, e também contra estas é preciso se precaver. A Igreja não pode ser coagida pelos “católicos” de esquerda a sancionar as teses já condenadas da teologia da libertação, é óbvio. Mas Ela também não pode negar que a pobreza evangélica seja um valor – ou que existam deveres de caridade para com os pobres que são mandatórios para todo cristão, por exemplo. É preciso combater o lobby modernista que é feito diuturnamente contra Igreja. Mas é igualmente preciso perceber que evitar fazer coisas em si legítimas para não ser visto como modernista é também uma forma de se ser influenciado. E a liberdade de anunciar o Evangelho não pode conhecer esses limites. Os inimigos da Igreja não podem ditar o que Ela pode fazer, é claro. Mas também não podem determinar – nem mesmo indiretamente – o que Ela não deve fazer.

Exemplos de maus comentários

Três comentários maçantes – exatamente naquele estilo que eu deplorei aqui de «mera reprodução de conteúdo», e neste caso com o agravante de serem mau conteúdo – foram postados (e não aprovados) nos últimos dias. À guisa de resposta, somente algumas linhas.

O primeiro deles, São Pio X “descanonizado” pelo Vaticano, parece acreditar (i) que o site da Santa Sé é o rol oficial dos santos canonizados da Igreja, (ii) que, nele, a ausência de um título é igual à negação do status de bem-aventurança daquele a quem o título falta e (iii) que alterações no conteúdo do site têm o condão de mudar a Fé e o Culto oficiais da Igreja de Cristo. Em suma, delírio puro e simples. Pra responder à besteira, basta remeter à página de S. Pio X como ela se encontra atualmente: lá, é possível ler, com todas as letras, «S. Pius PP. X», e este “S.” no início outra coisa não significa que São (Santo). Causa finita.

O segundo, Vaticano promoverá “pastoral de misericórdia” para os divorciados e casais do mesmo sexo, é outro delírio, dessa vez decorrente de péssimo jornalismo. A notícia fala da apresentação do Instrumentum Laboris para o próximo sínodo sobre a família; acontece que (i) no texto não existe o termo “pastoral de misericórdia”, (ii) a parte que nele fala «sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo» (nn. 110-120) na verdade se opõe à união civil homossexual («Todas as Conferências Episcopais se expressaram contra uma “redefinição” do matrimónio entre homem e mulher, através da introdução de uma legislação que permita a união entre duas pessoas do mesmo sexo», IL 113), (iii) ela merece uma consideração à parte daquela reservada às outras “situações pastorais difíceis” (como uniões de fato, mães solteiras e divorciados recasados), o que torna portanto (no mínimo!) impreciso falar numa suposta “pastoral” que englobe ao mesmo tempo as uniões homoafetivas e os casamentos adulterinos, como consta na manchete; e (iv) a única coisa que se pode minimamente afirmar como “favorável” a estas uniões é a idéia de que «caso as pessoas que vivem nestas uniões peçam o baptismo para o filho, (…) o filho deve ser acolhido com as mesmas atenção, ternura e solicitude que recebem os outros filhos» (IL 120) – uma posição, convenhamos, bastante defensável. Ainda uma coisa: já existe atendimento pastoral para divorciados recasados, e isso nunca teve nada a ver com uma condescendência institucional para com os que não honraram os votos do Sagrado Matrimônio: a Igreja ainda é contra o divórcio. E mais: este documento não é prescritivo, não se trata de “diretrizes” para nada, mas tão-somente da consolidação das posições dos diversos bispos e Conferências a respeito de um assunto que há-de ser debatido no sínodo vindouro. Por fim: “casais do mesmo sexo” é uma contradição em termos.

O terceiro, por fim, Visitação Apostólica à diocese de Ciudad del Este, traz até uma informação relevante – o fato de que haverá uma Visitação Apostólica a Ciudad del Este; mas se perde em elucubrações e devaneios que raiam às teorias da conspiração. O único dado concreto e objetivo do qual dispomos é o de que, no final deste mês, haverá um Visitador Apostólico no Paraguai. Ponto. Daí a afirmar que isso seja porque, no atual pontificado, «[t]udo o que é tradicional deve ser neutralizado» é no mínimo paranóico.

Uma das principais razões para as quais eu pretendo cobrar maior qualidade nos comentários aqui postados é exatamente esta: acusações disparatadas são muito fáceis de serem cuspidas, mas demandam um razoável esforço para serem respondidas a contento. A verdade sempre teve esta espécie de desvantagem diante da mera “opinião”: por conta de sua solidez precisa mover-se mais lentamente, e para ser ela mesma precisa honrar certos compromissos que os achismos de todos os naipes se sentem no direito de desrespeitar. Faz parte da natureza das coisas. Não pensem, assim, que certo eventual silêncio por parte do autor dessas linhas implique necessariamente em concordância tácita com o que é dito: às vezes pode significar simplesmente que a resposta, escalonada junto com um sem-número de outras atividades concorrentes e analisada em termos de custo-benefício, simplesmente não possui prioridade alta o bastante para ser executada. É uma pena, eu realmente gostaria de responder sempre tudo. Mas às vezes é humanamente impossível. Peço desde já perdão por essas minhas limitações. Espero melhorar.

“O Papa parou em nossa casa!”

Eu mal soube da viagem pontifícia a Cassano, cidade da Itália meridional cuja maior característica, a julgar pelo que dizem os órgãos de mídia, é ser profundamente marcada pela atuação da Máfia. E foi bastante por acaso que eu fiquei sabendo deste pitoresco fato que aconteceu nas estradas italianas do sul:

Trata-se de um vídeo amador, certamente de celular, feito pelas pessoas que estavam à beira da estrada para acompanhar a passagem do automóvel pontifício. O mais impressionante não é nem a bênção concedida ao doente (depois do sr. Vinicio Riva, esse tipo de atitude vinda do Papa Francisco não deveria nos surpreender mais). O mais belo está nos detalhes.

Chama a atenção sobremaneira o título que deram ao vídeo: Papa Francesco si e fermato a casa nostra, algo como “o Papa Francisco parou em nossa casa”. Parece clichê e piegas, eu sei, mas não consigo ler essa legenda – colocada, repitamos, pelas próprias pessoas que estavam acompanhando a comitiva papal na beira da estrada; moradores do lugar – sem me lembrar das diversas passagens do Evangelho em que o hagiógrafo faz insistente questão de registrar que Jesus parou em certas casas: na de São Pedro (cf. Mt 8, 14), na de São Mateus (cobrador de impostos – cf. Mt 9, 10), mas também em algumas casas anônimas: «Em seguida, deixando aquele lugar, foi para a terra de Tiro e de Sidônia. E tendo entrado numa casa, não quis que ninguém o soubesse» (Mc 7, 24a).

Nem a Catena Aurea e nem a prestigiada “Vida de Jesus Cristo” de Lafayette dão maior relevância ao detalhe; mas eu fico pensando naquela casa precedida de artigo indefinido na qual Nosso Senhor um dia entrou. E embora não seja capaz de saber ou mesmo especular nada sobre ela (Quem eram aquelas pessoas? Será que já O esperavam? Será que já O seguiam como discípulos? Será que Ele pousava lá sempre que ia a Tiro e Sidônia? Será que Ele simplesmente chegou à porta e pediu para entrar?), uma coisa se me impõe à imaginação com clareza: a alegria que deve ter tomado conta daquele lugar, alegria da qual eu penso ver um lampejo naquele «se e fermato a casa nostra» com que rotularam um vídeo que mostra o Vigário de Cristo parando no meio de uma viagem para cumprimentar alguns moradores que estavam no caminho para o ver passar.

Uma parada singela, longe dos protocolos oficiais e das agendas diplomáticas; que ficaria para sempre desconhecida se a tecnologia atual não tivesse transformado qualquer celular em uma câmera filmadora. O Papa desceu do carro para abençoar um doente e cumprimentar alguns fiéis, e não havia nenhum fotógrafo d’Osservatore para o registrar. O fato em si é banal e corriqueiro, eu sei; mas não o é para as pessoas que o vivenciaram. Aquela casa in fines Tyri et Sidonis era tão comum que não recebeu do evangelista mais do que uma menção en passant: mas lá esteve Nosso Senhor, e isso por si só é um fato extraordinário. Por aquelas ruas do sul da Itália passou o Doce Cristo na Terra, naquela estrada o Papa Francisco parou para saudar alguns fiéis. Isso nada muda no Catolicismo; mas penso na alegria que não deve ter tomado o coração daqueles italianos que lá estavam. Na alegria que transparece do vídeo que vejo ainda mais uma vez.

E a Igreja são vários membros, e n’Ela o que acontece com um membro reverbera por todo o Corpo. A alegria daquelas pessoas é também a minha alegria; o contentamento com a ligeira delicadeza pontifícia chega também a mim. Mesmo quando dirigida a um grupo particular de católicos, toda boa obra atinge toda a Igreja. Felicito-me junto com os italianos que não conheço, mas com os quais compartilho a mesma Fé. Alegro-me com eles. E com eles também posso dizer: grazie, Papa Francesco.

Papa Francisco: vejam bem que o Diabo existe!

Todos somos tentados, porque a lei da vida espiritual, a nossa vida cristã, é uma luta. O príncipe deste mundo – o diabo – não quer a nossa santidade, não quer que sigamos Cristo. Alguém de vocês, talvez, não sei, possa dizer: ‘Mas, padre, que antigo o senhor é, falar de diabo no século XXI!’. Mas vejam bem que o diabo existe! Mesmo no século XXI! E não devemos ser ingênuos. Temos de aprender com o Evangelho como se faz a luta contra o diabo.

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
11 de abril de 2014

A grama é verde e o sol brilha lá fora

Acho que foi no Facebook que eu vi recentemente alguém glosando um dito de Chesterton. Dizia o grande polemista inglês que haveria de chegar o tempo em que teríamos que provar aos nossos interlocutores que a grama era verde. E o comentarista facebookiano sentenciava que este fatídico dia enfim chegara.

As últimas manchetes sobre a família que li me provocaram uma sensação curiosa. Por um lado, as coisas lá ditas são de uma obviedade atroz; por outro, provoca-nos uma certa sensação de inesperado encontrá-las, ali, expostas assim em toda a sua clareza. Como se vivêssemos em tempos onde certas coisas óbvias se esforçam por serem mantidas escondidas, e de repente um raio de sol indomável encontra uma fresta para adentrar na sala que alguém se esmera por manter escura à força de grossas e pesadas cortinas.

Primeiro, alguém diz que a prostituição se encontra em processo de extinção. A notícia – que soa à primeira vista alvissareira – parece chocar-se com a nossa percepção imediata dos costumes degenerados do mundo ao nosso redor; mas a leitura do texto deixa claro que não se trata propriamente de uma extinção, e sim de uma metamorfose. A idéia do texto é a de que o sexo tornou-se tão fácil e tão banal que em breve não haverá mais razão para se lhe atribuir um preço de mercado e se lhe sujeitar a anacrônicas regras de comércio. É como se fosse uma versão em micro-escala da idéia comunista de fim do comércio por meio da distribuição universal dos bens de consumo, tendo no caso o sexo por commodity.

Lembro-me do “Admirável Mundo Novo” e da idéia lá retratada – incutida à força de condicionamentos hipnóticos desde a mais tenra infância nos habitantes daquela Londres futurista – de que o sexo é livre e ninguém tem o direito de se negar a ninguém. A imagem da sociedade descrita no livro é talvez a mais ilustrativa do fim do comércio sexual nos moldes em que trata o artigo acima; pode-se até constatar que a diferença entre ela e a em que vivemos hoje é mais de grau do que de essência. No entanto, ninguém hesita em classificar o romance de Huxley como uma distopia. E realçar o modo tão similar com que uma prática é socialmente aceita no nosso mundo evoluído e no pesadelo futurista é, de alguma maneira, trazer à luz um interessante paralelo entre a sociedade que estamos construindo e aquela onde nenhum de nós deseja chegar.

Depois eu encontro esta sentença entre aspas: “Divórcio eleva pobreza e afeta estabilidade”. Ninguém quer elevar a pobreza, é óbvio. Todo mundo quer que as pessoas sejam estáveis, é evidente. No entanto, parece que não há uma única pessoa – nem mesmo a responsável pela afirmativa categórica em apreço – que some dois e dois e chegue à conclusão de que o divórcio deve ser portanto combatido, quando menos por conta desses seus efeitos sociais deletérios que ninguém ousa chamar nem mesmo de indiferentes.

Contudo, existe o dogma de que o divórcio é uma conquista da humanidade, é um direito que deve ser defendido a ferro e a fogo; mesmo que às custas do aumento da pobreza e da menor estabilidade das famílias. Essa última parte não se diz às claras, para que não restem patentes os absurdos a que pode conduzir o peculiaríssimo raciocínio dos nossos formadores de opiniões – daqueles que vêm a público afirmando saber os rumos que devemos tomar para alcançarmos um mundo mais moderno, uma sociedade mais evoluída ou qualquer outro chavão destituído de significado do tipo. Mas dessa vez a manchete jornalística estampou em letras garrafais o que todo mundo se esforça por esconder. Dessa vez deu para ver claramente através da janela o rufião pateticamente escondido atrás da cortina.

Chego por fim a esta manchete luminosa: «Papa vê imagem de Deus em casamento entre homem e mulher». Na mídia secular, nos grandes portais de notícias brasileiros. Assim falou Pedro: «a imagem de Deus é o casal conjugal». E ainda: «Não apenas o homem, não apenas a mulher, mas ambos».

Inacreditavelmente, a matéria saiu sem a histeria costumeira. Sem nenhum comentário ideológico a mais do que notar discretamente que o Papa falou tudo isso «[s]em mencionar as novas formas de casamento entre dois homens ou duas mulheres». E fazer esse comentário prestou até um grande serviço à causa do óbvio, pois fez resplandecer – por contraste – a particularidade da instituição familiar sobre as tais «novas formas de casamento» tão ao gosto dos ideólogos hodiernos. Em um mundo onde se interpreta ausência como discriminação e onde qualquer discurso precisa se encher de irritantes e redundantes masculinos e femininos sob pena de ser conivente com o machismo patriarcal e opressor da sociedade judaico-cristã, a catequese do Papa Francisco – convenientemente iluminada pela lembrança jornalística de que as duplas gays não mereceram ser elevadas pelo Vigário de Cristo ao mesmo patamar sociológico onde se vê a imagem de Deus – rescende assim a uma agradável “heteronormatividade”, para pegar o termo emprestado aos bárbaros. Ficou bonito, mais uma vez.

A lufada de ar fresco nos pegou de surpresa e nos revigorou. O mundo se tornou de repente mais belo e mais esperançoso. Percebemos, de súbito, que a grama é verde e o sol brilha lá fora. E isso faz toda a diferença sim.

Resgatando o direito da Igreja de Se pronunciar sobre questões sociais

Em um discurso recente a trabalhadores de siderúrgicas italianas, o Papa Francisco falou o seguinte:

Ouvi alguns jovens operários que estão sem trabalho, e me disseram isto: “Padre, nós, em casa – minha mulher, os meus filhos – comem todos os dias, porque a paróquia, ou o clube, ou a Cruz Vermelha, nos dão de comer. Mas, Padre, eu não sei o que significa levar o pão pra casa, e eu preciso comer, preciso ter a dignidade de levar o pão pra casa”. E este é o trabalho! E se falta o trabalho, esta dignidade fica ferida!

A mensagem faz eco à outra declaração do Papa Francisco que já comentei aqui. Na ocasião, Sua Santidade utilizou “desemprego” e “maiores males modernos” na mesma frase, o que imediatamente levou as pessoas a dizerem que, para o Papa, o mal do século era o desemprego. Solene bobagem. Tanto lá como aqui, o trabalho era visto sob um enfoque espiritual. O materialismo estava e está somente nos olhos de quem lê.

Afinal, a mais nefasta conseqüência do desemprego não é a mera carência material, e sim a «dignidade de levar o pão pra casa» ferida. E este «pão» possui uma dimensão tão espiritual que o próprio Cristo fez questão de incluir uma súplica por ele na Oração que é modelo de todas as orações. Outrossim, quer coisa menos materialista do que a reminiscência permanente daquele longínquo «comerás o pão com o suor do teu rosto» que integra o anátema original? Prover ao próprio sustento e ao da própria família – levar o pão pra casa -, antes de uma contingência fisiológica, é um imperativo metafísico. A teologia tem exigências e conseqüências sensíveis; dizer diferente disso é dar razão, ainda que indireta, aos que propugnam uma separação radical entre religião e vida.

Quando li esta mensagem do Papa Francisco, lembrei imediatamente outra declaração da Igreja sobre assuntos aparentemente materiais, sobre um tema à primeira vista tão estranho às coisas do Céu quanto o salário mínimo. No entanto, foi Leão XIII o Pontífice que lhe dedicou alguns parágrafos na Rerum Novarum. Está lá, no número 27. da grande Encíclica:

Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado.

E Pio XI foi ainda mais além e acrescentou algumas características mais específicas a esta justa remuneração (Quadragesimo Anno, II, 4.):

É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar [as esposas], por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa.

Escusado comentar o quanto o nosso «salário mínimo» legal está aquém dessas exigências estabelecidas – como «uma lei de justiça natural»! – pelo Supremo Magistério da Igreja…

Em suma, há muito em comum entre o «desemprego» sobre o qual fala atualmente o Papa Francisco e o «justo salário» sobre o qual versam as grandes Encíclicas Sociais do passado: ambos são temas à primeira vista «seculares» sobre os quais políticos, economistas, sociólogos e congêneres reivindicam exclusiva competência, com exclusão do parecer moral da Igreja; e ambos são temas que os filhos rebeldes do Catolicismo têm enorme facilidade de instrumentalizar em prol de uma certa “teologia” horizontal e intranscendente que tanto mal fez e continua fazendo à Igreja nos últimos tempos.

Cumpre frustrar os maus intentos de uns e de outros. É preciso defender com clareza, contra os naturalistas modernos, que a Moral tem exigências concretas a fazer inclusive à Economia; e ao mesmo tempo é preciso afirmar com ainda mais clareza a existência de uma doutrina social católica que não é aquela dos teólogos ditos «da libertação». A esquerda tem uma enorme facilidade em se apossar do discurso católico. Contra isso é preciso não negar à Igreja o direito de se pronunciar sobre questões sociais, mas sim anunciar ao mundo os Seus ensinamentos devidamente purificados da parasitagem marxista com a qual eles as mais das vezes são apresentados.

Eu não sabia de quem se tratava

exatamente um ano este blog publicava em seqüência os anúncios de «Habemus Papam» e «Franciscus». Lembro-me da demora, diante da televisão, entre a fumata bianca e o esperado aparecimento do novo Pontífice no balcão diante da Praça de São Pedro. Pareceu-me demorar mais do que há alguns anos, à eleição de Bento XVI. Ou talvez eu estivesse mais velho, menos paciente, mais ansioso… mais contaminado com o espírito do mundo.

O velho jesuíta veio do fim do mundo e surpreendeu a todos. Confesso: eu não sabia de quem se tratava. Ao que parece, muitas pessoas também não. Daqui, do outro lado do Atlântico, ouvi-lhe o «buona sera» antológico. Recebi a primeira Urbi et Orbi do novo pontificado. A televisão continuou ligada, e eu saí. Estava perplexo.

Demorei um pouco a perceber que toda pressa era vã e, toda ansiedade, inimiga da compreensão serena. Não seria possível descobrir quem é o Chefe de uma Igreja de dois mil anos com a velocidade à qual nos acostumamos graças às modernas telecomunicações. A Igreja é Eterna, e isso faz com que haja algo de atemporal em todos os Papas. Quem entende isso, já sabe mais do que é possível aprender com uma legião de vaticanistas.

Um Papa fora eleito e eu não sabia de quem se tratava. Para meu temor, parece que hoje, transcorrido um ano, ainda há muitas pessoas que continuam sem saber. Leio uma profusão de matérias sobre o Papa Francisco na mídia secular, ouço falar dele o tempo inteiro em ambientes religiosos. É impressionante esse mistério: trata-se talvez da pessoa de quem mais se falou ao longo do último ano e, mesmo assim, ela permanece completamente desconhecida para a maior parte dos que ouviram falar dele.

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Como explicar? Tudo parece girar em torno da obsessão que se tem hoje em dia pelo conceito de «mudança», à luz do qual é impossível entender o Catolicismo. Pior ainda quando este conceito é substituído pelo de «Revolução», tão ao gosto da imprensa anti-clerical ou dos desgostosos – de séculos… – com a Igreja. Sob essa clave muito se falou e fala sobre o Papa Francisco. E sob ela o Bispo de Roma é aos homens de hoje cada vez menos conhecido.

Trago um exemplo somente, de tantos que se podiam coligir. Há poucos dias um amigo publicou no Facebook que o Papa era tão revolucionário que ele temia por sua vida, agora que ele – o Papa – estava tentando incluir os “casais gays” dentro da Igreja. A história é de um descabimento retumbante, de uma inverossimilhança tão grotesca que espanta alguém dar crédito. No entanto, ouve-se algo parecido com isso, as pessoas projetam suas expectativas no que acharam ter ouvido dizer, a história se repete e, de repente, tem-se a histeria formada. Contudo, longe dessa pirotecnia irracional, o humilde jesuíta que hoje calça as Sandálias de Pedro se encontra na mais solitária obscuridade. Já há um ano ele guia a Igreja e ainda não sabem de quem ele se trata.

Criou-se muita falsa expectativa em relação ao Vigário de Cristo, e qual o resultado disso? Passou-se um ano, o wishful thinking não se realizou e o papado do primeiro latino-americano permanece para muitos uma incógnita tão grande quanto o era naquele outro 13 de março.

Esta tragédia foi abertamente anunciada. Menos de quinze dias depois da eleição do Papa Francisco, eu ecoei aqui a denúncia de Vortex sobre o «seqüestro do Papa» que estava em andamento. Hoje, um ano depois, ficamos com a impressão de que o plano macabro teve uma perturbadora eficácia. Hoje, ainda há multidões de pessoas que não sabem quem é o Papa e nem se apercebem disso.

Sempre à volta com quimeras. Já se completou um ano. Quantos outros aniversários será preciso esperar para que as sucessivas frustrações com «mudanças» que nunca podem vir dêem enfim lugar à serena aceitação da realidade?

Tarefa difícil. Veja-se: abro um texto de uma revista não-religiosa sobre este primeiro ano de pontificado. Lá, perdido no meio de uma matéria enorme, é dito en passant, quase como se fosse uma curiosidade sem importância, que o Papa Francisco é um homem que passa uma hora em oração diante da Santíssima Eucaristia todas as tardes. E penso que há nessa pequena frase mais sobre o atual Bispo de Roma do que nos desvarios e tresvarios que se costumam apresentar como análises da Igreja. Se as nossas manchetes sobre o Papa Francisco do último ano fossem assim, talvez hoje os homens já soubessem melhor de quem ele se trata…

Faz um ano. Eu não sabia quem ele era. Mas sabia que se tratava do Vigário de Cristo, da Cabeça Visível da Igreja, daquele a quem toda submissão é necessária para os que desejam se salvar. Eu não sabia quem ele era, mas sabia que precisava rezar por ele. E refaço aqui as orações de um ano atrás, as súplicas de cada dia, pelo nosso Pontífice Francisco. A fim de que o Bom Deus o conserve e vivifique. A fim de que o torne feliz sobre a terra. A fim de que jamais o entregue nas mãos dos seus inimigos.

“Quanto mal fazem à Igreja os padres untuosos!” – sobre o pe. Fábio de Melo e suas más colocações

O revmo. Pe. Fábio de Melo voltou a aprontar das suas. Em entrevista que ainda não foi ao ar (mas da qual alguns trechos já foram amplamente divulgados pelos órgãos de mídia), o padre soltou a seguinte estarrecedora frase:

Jesus não queria a Igreja, queria o Reino de Deus, mas a Igreja foi o que conseguimos dar a Ele.

É impressionante como uma frase tão pequena possa conter um número tão grande de absurdos, e é muito difícil conceber como uma pessoa católica, que tenha ao menos noções básicas de Catecismo, seja capaz de proferi-la e ao mesmo tempo manter a Fé. Esta frase estarrecedora, em uma única linha,

  1. afirma que a Igreja não é da vontade de Deus [Jesus não queria a Igreja];
  2. introduz uma oposição descabida entre “Igreja” e “Reino de Deus” [não queria a Igreja, queria o Reino de Deus]; e
  3. afirma que a Igreja é criação humana [a Igreja foi o que conseguimos dar a Ele].

Não percamos tempo com fabiodemelorices. Vamos à Doutrina Católica.

Primeiro, é óbvio que a fundação da Igreja sempre esteve nos desígnios de Deus. Nem poderia ser diferente, uma vez que, se Cristo tivesse querido com Sua Encarnação uma coisa diferente da Igreja, teria fracassado miseravelmente em Sua Missão e, portanto, não seria Deus e, portanto, não deveríamos nos preocupar com Ele e nem com mais nada nessa vida.

Não fossem suficiente as claríssimas palavras de Nosso Senhor nos Evangelhos – “E eu te declaro que és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a Minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra Ela” -, o Catecismo ainda nos diz com todas as letras:

766. (…) Assim como Eva foi formada do costado de Adão adormecido, assim a Igreja nasceu do coração trespassado de Cristo, morto na cruz (CCE).

Se tudo isso ainda não bastasse, o erro de número 52 condenado por São Pio X no decreto Lamentabili é o seguinte:

52. Cristo não pensou constituir a Igreja como uma sociedade destinada a durar na terra por uma longa série de séculos; além disso, na mente de Cristo, o reino dos céus juntamente com o fim do mundo já deveria ter chegado.

Ora, tudo isso posto, em qual esotérico sentido, então, de que maneira minimamente católica é possível afirmar “Jesus não queria a Igreja”? Essa frase é herética e blasfema. Encontrá-la nos lábios de um sacerdote católico é daquela espécie de desolação no lugar santo que nos faz gritar do fundo da alma: Exsurge, Deus, iudica causam tuam.

Em segundo lugar, não existe oposição entre a Igreja fundada por Cristo e o Reino de Deus, exatamente porque a Igreja por Ele fundada é precisamente o Reino de Deus já inaugurado na terra! De novo, é o que nos ensina o Catecismo:

541. (…) Ora a vontade do Pai é «elevar os homens à participação da vida divina». E fá-lo reunindo os homens em torno do seu Filho, Jesus Cristo. Esta reunião é a Igreja, a qual é na terra «o germe e o princípio» do Reino de Deus (CCE).

567. O Reino dos céus foi inaugurado na terra por Cristo, e resplandece para os homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo. A Igreja é o gérmen e o princípio deste Reino. As suas chaves são confiadas a Pedro (CCE).

A Igreja já é o Reino de Deus! Pouco importa aqui a obviedade de que este Reino só estará plenamente estabelecido quando Cristo voltar em Sua Segunda Vinda Gloriosa, exatamente porque, então, será a Igreja – a mesmíssima Igreja da qual hoje fazem já parte todos os católicos – que reinará perfeitamente. O Fim dos Tempos não destrói a Igreja, cáspita, mas é exatamente o contrário: realiza-A em plenitude! Que um sacerdote católico não saiba dessas coisas é uma dessas tragédias religiosas que, em épocas mais sensatas, seria interpretada como um sinal do Fim dos Tempos iminente e levaria os católicos a baterem no peito e fazerem penitência, suplicando ao Senhor misericórdia pelos seus muitos pecados.

Em terceiro lugar, e muito sucintamente, é óbvio que a Igreja não é criação humana. Não é criação humana porque é criação de Cristo, que é Deus. Não é criação humana porque Ela não poderia ser Santa e Santificante se fosse o homem que A tivesse criado, uma vez que o homem não tem por si só capacidade de santificar a nada e nem a ninguém. E não é criação humana, por fim, porque assim o diz com todas as letras a Doutrina Católica: «a Igreja católica [é] fundada por Deus» (Lumen Gentium, 14).

Não fomos nós que “demos” a Igreja a Cristo, foi Ele quem no-La deu, através do Seu Sacrifício na Cruz; e o fez para que por meio d’Ela (e somente por meio d’Ela) pudéssemos nos unir a Ele. Qualquer criança minimamente catequizada aprende isso. Por que diz o contrário o pe. Fábio de Melo?

Após a polêmica inflamada, o pe. Fábio publicou no Facebook uma de suas famosas respostas que não respondem a coisa alguma. Absolutamente nada do blá-blá-blá lá despejado tem o mínimo a ver com o que se está discutindo. Aproveito a oportunidade, no entanto, para fazer (mais uma vez) um comentário que talvez possa ser útil ao reverendíssimo sacerdote. Lá, no seu Facebook, no meio da tagarelice irresponsável, o padre diz o seguinte:

Estou unido ao Papa Francisco, quando movido por coragem profética, falou-nos do perigo que a Igreja corre de tornar-se uma ONG.

Será que está mesmo? Em outra tristemente famosa entrevista (ocorrida em meados do ano passado), o padre Fábio fez questão de destacar a sua própria vaidade e afirmou ser «vaidoso sim». A matéria que inicia esse post traz na manchete a seguinte piedosa frase proferida pelos lábios sacerdotais do padre Fábio de Melo: «Sempre me senti artista». Será que o padre Fábio acredita, em consciência, estar unido ao Papa Francisco?

Vejamos o que o Vigário de Cristo tem a dizer sobre isso. Em homilia proferida na semana passada (sábado, 11 de janeiro; original italiano aqui, tradução para o português aqui, de onde retiro a citação), o Papa Francisco falou o seguinte:

[Q]uanto mal fazem à Igreja os padres untuosos! Aqueles que colocam a sua força nas coisas artificiais, na vaidade.

Quantas vezes se ouve dizer, com dor: “Este é um padre-borboleta, porque há sempre vaidade nele”.

Se nos afastamos de Jesus Cristo, devemos compensar isto com outras atitudes… mundanas. E assim, há todas estas figuras… também o padre de negócios, o padre empreendedor…

[…]

É belo encontrar padres que deram a sua vida como sacerdotes, verdadeiramente, de quem as pessoas dizem: “Sim, tem esta característica, tem aquela… mas é um padre”. E as pessoas têm a intuição.

Em vez disso, quando as pessoas vêem os padres – para dizer uma palavra – idólatras, que em vez de terem Jesus têm os pequenos ídolos… pequenos… alguns até devotos do “deus Narciso”… Quando as pessoas vêem isto, dizem: “Coitado!”

Que sirvam estas palavras para o pe. Fábio, mas que sirvam também para nós, a fim de que saibamos escolher com mais sabedoria os homens que admiramos e a quem seguimos. Procuremos – como nos pede o Papa Francisco – aqueles «padres que deram a sua vida como sacerdotes». Procuremos os padres que nos falem das coisas de Deus! Não percamos tempo com estes que, ao contrário, têm um gosto particular por frases heréticas e blasfemas, nunca se responsabilizando pelas barbaridades que ensinam com seus exemplos e suas palavras.

Também o Papa Francisco celebra versus Deum

Já faz quase uma semana, mas eu não queria deixar de registrar que o Papa Francisco, na Festa do Batismo do Senhor, celebrou versus Deum na Capela Sistina. A foto abaixo é do pe. Z:

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A notícia me deixou sobremaneira feliz por dois motivos.

O primeiro é que, ao contrário do que aconteceu no túmulo de João Paulo II, aqui não há mais desculpas de ordem pragmática. “No túmulo de João Paulo II não dava pra colocar uma mesa”, disseram alguns à época; pois bem, ainda que isso seja verdade, na Sistina dava e o Papa dessa vez não a colocou. Celebrou, assim, versus Deum podendo ter escolhido celebrar versus populum. Celebrou porque quis.

O segundo é porque foi precisamente na Capela Sistina que o Papa Francisco resolveu colocar uma mesa na sua primeira Missa celebrada como Romano Pontífice. Lembro-me de que registrei dolorosamente o fato aqui no Deus lo Vult! e, agora, é como se uma espinha se nos tivesse sido arrancada da garganta, como se os fios houvessem percorrido o caminho inverso para desatar o nó: na Sistina um dia o Papa deu as costas ao Altar, na Sistina hoje o mesmo Papa celebra tendo diante de si o Juízo Final.

É óbvio que isso não significa o menor desmerecimento, por parte do Sumo Pontífice, da Missa celebrada de frente para o povo, e é igualmente óbvio que o Papa Francisco não vai adotar agora o ad orientem como posição oficial das celebrações pontifícias. O ponto não é esse. O que este gesto do Papa mostra é que não existe da parte dele a menor hostilidade para com o versus Deum. Não há nenhum preconceito ideológico – tão comum nos nossos dias! – com o padre celebrar “de costas para o povo” e, embora o Vigário de Cristo possa pessoalmente preferir celebrar na posição que se popularizou nas últimas décadas, entende que outros elementos litúrgicos extraordinários têm lugar na catolicidade da Igreja.

O Papa tanto entende que é legítimo celebrar ad orientem que ele próprio celebrou dessa maneira, para o mundo inteiro ver! Calem-se portanto os “liturgistas” modernos com suas teorias estapafúrdias, dêem lugar os ideólogos da moda ao exemplo que se nos chega do próprio Vigário de Cristo. Também o Papa Francisco celebra versus Deum. Aprendamos com o seu exemplo, respeitemos o que ele demonstra respeitar.