Os paradoxos do Cristianismo – Chesterton

Este estranho efeito provocado pelos grandes agnósticos, de levantarem dúvidas ainda mais profundas do que as suas próprias, poda ser exemplificado de várias maneiras. Citarei apenas uma. Quando li e reli todos os relatos não-cristãos e anticristãos a respeito da Fé, de Huxley a Bradlaugh, logo uma lenta e horrível impressão gravou-se, gradual mas graficamente, sobre o meu espírito – a impressão de que o Cristianismo devia ser algo extraordinário. De fato, o Cristianismo (como eu o entendia) tinha os mais  violentos vícios, mas tinha também, aparentemente, o místico talento de conciliar defeitos que pareciam incompatíveis entre si. Atacavam-no por todos os lados e pelas mais contraditórias razões. Assim que um racionalista acabava de demonstrar estar o Cristianismo demasiadamente longe para o leste, outro vinha demonstrar, com igual clareza, que ele estava muito mais longe para o oeste. E tão logo minha indignação esmorecera perante sua angular e agressiva quadratura, logo minha atenção era despertada para observar e condenar sua enervante e sensual esfericidade. Caso algum leitor não tenha compreendido o que quero dizer, dar-lhe-ei tantos exemplos quantos, ao acaso, lembrar-me a respeito desta auto-contradição do ataque cético. Começarei por apresentar quatro ou cinco exemplos; existem mais de cinqüenta.

Por exemplo, deixei-me influenciar bastante pelo eloqüente ataque contra o Cristianismo por sua desumana melancolia, pois sempre pensei (e ainda penso) que o pessimismo sincero é o pecado imperdoável. O falso pessimismo é uma realização social, mais aceitável do que qualquer outra coisa e, felizmente, quase todo o pessimismo carece de sinceridade. Mas, se o Cristianismo fosse, como se costumava dizer, algo meramente pessimista e contrário à vida, então eu estaria inteiramente disposto a mandar pelos ares a Catedral de S. Paulo. O mais extraordinário, porém, é o seguinte: provaram-me, no Capítulo I (para minha absoluta satisfação), que o Cristianismo era demasiadamente pessimista; mas, depois, no Capítulo II, provaram-me que ele era, em grande parte, otimista demais. Uma das acusações contra o Cristianismo era a de que ele impedia os homens, por meio de lágrimas e terrores mórbidos, de procurarem a alegria e a liberdade no seio da Natureza. Outra acusação, porém, era que ele confortava os homens com uma fictícia providência e os colocava numa creche rosa e branca. Um grande agnóstico perguntava por que motivo a Natureza não era suficientemente bela, e por que razão custava tanto ser livre. Outro agnóstico argumentava que o otimismo cristão – “esse vestido ‘de mentirinha’ tecido por mãos piedosas” – escondia de nós o fato de que a Natureza era feia e que era impossível ser livre. Quando um racionalista classificava o Cristianismo como um pesadelo, já outro começava a chamá-lo de paraíso dos tolos. Isso me intrigavam porque tais acusações pareciam-me incompatíveis. O Cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, uma máscara preta sobre um mundo branco e uma máscara branca sobre um mundo preto. A situação de um cristão não podia ser, ao mesmo tempo, tão confortável a ponto de ser ele um covarde para prender-se a ela, ou tão desconfortável a ponto de ser um tolo para nela permanecer. Se o Cristianismo deturpava a visão humana, devia deturpá-la de uma forma ou de outra: o cristão não poderia usar, ao mesmo tempo, óculos verde e óculos cor-de-rosa. E, como todos os rapazes daquele tempo, eu repetia com terrível alegria as zombarias que Swinburne proferia contra a monotonia do credo:

“Venceste, ó pálido Galileu, e o Mundo tornou-se sombrio com o Teu hálito”.

Mas, quando li as narrativas deste mesmo poeta acerca do paganismo (como em “Atlanta”), cheguei à conclusão de que o Mundo era ainda mais sombrio, se isso fosse possível, antes do Galileu bafejá-lo com o seu sopro, do que depois disso. Certamente o poeta afirmava, em abstrato, que a própria vida era escura como breu. E no entanto, de uma forma ou de outra, o Cristianismo a tinha obscurecido ainda mais. O mesmo homem que acusava o Cristianismo de pessimismo era, ele próprio, um pessimista. Achei que devia haver algo errado. E, num momento de exaltação, veio-me à mente a idéia de que aqueles talvez não fossem os melhores juízes da relação entre a religião e a felicidade, pois não possuíam nem uma coisa nem outra.

Deve-se compreender que não concluí, apressadamente, que as acusações eram falsas ou que os acusadores não passavam de loucos. Apenas deduzi que o Cristianismo deveria ser algo mais estranho e perverso do que se pretendia afirmar. Uma coisa pode ter esses dois defeitos opostos, mas era necessário que fosse bastante estranha para poder concentrar tais características. Um homem podia ser muito gordo em uma parte do corpo e muito magro em outra, mas seria preciso que tivesse uma compleição deveras singular. Nesse ponto, todos os meus pensamentos centravam-se, apenas, na bizarra forma da religião cristã, sem atribuir qualquer forma bizarra ao pensamento racionalista.

Segue-se outro caso semelhante. Uma das coisas que eu julgava que mais depunham contra o Cristianismo era a acusação que lhe faziam, de que havia algo de tímido, de monacal e de desumano em tudo o que se costuma chamar de “cristão”, especialmente sua atitude perante a resistência e a luta. Os grandes céticos do século XIX eram, em grande parte, viris. Bradlaugh, de forma expansiva, e Huxley, de forma reservada, eram, decididamente, homens. Em comparação, parecia aceitável que existisse algo de fraco e de excessivamente paciente nos ensinamentos cristãos. O paradoxo do Evangelho acerca da outra face, o fato dos padres nunca lutarem em guerras, uma centena de coisas, enfim, tornava plausível a acusação de que o Cristianismo era uma tentativa de transformar o homem em um cordeiro. Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada diferente, continuaria a acreditar. No entanto, li algo muito diferente depois. Virei a página seguinte do meu manual agnóstico, e logo meu cérebro ficou de pernas para o ar. Descobri, então, que tinha de odiar o Cristianismo, não por combater pouco, mas por combater demasiado. A religião cristã parecia a mãe das guerras. O Cristianismo tinha inundado o mundo em sangue. Eu, que havia ficado zangado com o Cristianismo por ele nunca se zangar, tinha, agora, de zangar-me com ele, porque sua fúria havia sido a coisa mais horrível e mais monstruosa da História da Humanidade. O seu ódio embebera-se na Terra e fumegara até o Sol. As mesmas pessoas que criticavam o Cristianismo por sua mansidão e pela não-resistência dos mosteiros eram as que vinham, agora, acusá-lo pela violência e pela bravura das Cruzadas. Fora por culpa do pobre e velho cristianismo (de uma forma ou de outra) que Eduardo, o Confessor, não combatera, e Ricardo Coração de Leão, sim. Os Quackers (assim ouvíamos dizer) eram os únicos cristãos típicos e, no entanto, os massacres de Cromwell e de Alba eram crimes tipicamente cristãos. O que tudo isso queria dizer? Que Cristianismo era este que sempre proibia as guerras e sempre estava a provocá-las? Qual poderia ser a natureza de uma coisa que era insultada, primeiramente, por não combater e, depois, por estar sempre envolvida em lutas? Em que mundo de enigmas se gerara esse monstruoso assassino e essa monstruosa mansidão? A forma do Cristianismo tornava-se mais estranha a cada instante.

Passo, agora, ao terceiro caso; o mais estranho de todos, porque envolve uma objeção real contra a Fé. A única objeção real contra a religião cristã é o fato [de] ser ela uma religião. O Mundo é um grande lugar, habitado por povos das mais diferentes espécies. O Cristianismo (parece-me razoável fazer esta afirmação) está limitado a um tipo de povo: surgiu na Palestina, e, praticamente, parou na Europa. Esse argumento impressionou-me fortemente na mocidade, e senti-me como que arrastado para a doutrina que sempre fora pregada nas sociedades éticas, isto é, a doutrina segunda a qual existe uma grande e inconsciente igreja que pertence a toda a Humanidade, fundada sobre a onipresença da consciência humana. Os credos – dizia-se então – dividiam os homens, mas a moral ao menos acabava por uni-los. A alma podia procurar as mais estranhas e mais remotas terras e épocas, e, ainda assim, encontraria o essencial senso comum ético. Podia encontrar Confúcio sob as árvores do Ocidente, mas encontrá-lo-ia escrevendo: “Não roubarás”. Podia decifrar os mais obscuros hieróglifos encontrados no mais primitivo deserto, e o seu significado, depois de decifrado, seria este: “Os meninos devem dizer a verdade”. Eu acreditava nesta doutrina da irmandade de todos os homens que diz respeito à posse de um senso moral, e nela acredito ainda, como acredito em outras coisas. Eu ficava, então, muito irritado com o Cristianismo, porque sugeria (como eu supunha) a idéia de que todas as épocas e impérios dos homens tinham escapado, inteiramente, a esta luz da justiça e da razão. Mas encontrei, depois, algo surpreendente. Verifiquei que as pessoas que diziam ser a Humanidade uma Igreja, de Platão a Emerson, eram as mesmas que afirmavam ter a moralidade mudado totalmente, afirmando, ainda, que o que era considerado certo em uma época já não o era em outra. Se eu pedisse, digamos, um altar, responder-me-iam que não havia necessidade dele, pois os nossos irmãos nos haviam deixado claros oráculos e um credo, nos seus ideais e costumes universais. Mas, se eu, serenamente, argumentasse que um dos costumes universais do homem era ter um altar, então os meus agnósticos mestres virar-se-iam completamente e responder-me-iam que os homens sempre tinham estado mergulhado nas trevas e nas superstições dos selvagens. Verifiquei que seu constante desdém em relação ao Cristianismo era por ser ele a luz de um povo, enquanto deixava todos os outros morrerem nas trevas. No entanto, pude também observar que era para eles motivo especial de orgulho o fato de serem a ciência e o progresso a descoberta de um povo, enquanto todos os outros povos jaziam na escuridão. O seu principal insulto contra o Cristianismo era, efetivamente, para eles, motivo de glória, e parecia uma estranha injustiça toda a sua relativa insistência nesses dois aspectos. Ao considerarmos algum pagão ou agnóstico, era forçoso lembrarmo-nos de que todos os homens tinham uma religião; ao considerarmos algum místico ou espiritualista, tínhamos apenas de ponderar as absurdas religiões que alguns homens professavam. Podíamos acreditar na ética de Epicteto porque a ética nunca tinha mudado, mas não devíamos acreditar na ética de Bossuet porque a ética tinha mudado. Operara-se uma mudança em duzentos anos, mas não em dois mil.

Tudo isso começava a parecer alarmante. Não que o Cristianismo fosse suficientemente mau para agregar em si todos os defeitos, mas qualquer vara era suficientemente boa para açoitar a religião cristã. A que poderíamos comparar esta coisa extraordinária que todos estavam ansiosos por contradizer, sem mesmo repararem que, assim procedendo, contradiziam a si próprios? Observei o mesmo em todo o lugar. Não posso dispor de mais espaço para esta discussão em todos os seus pormenores, mas, para que não se suponha que estive selecionando, injustamente, três casos aleatórios, mencionarei, rapidamente, alguns outros. Alguns céticos descreveram que o grande crime do Cristianismo tinha sido o seu ataque contra a família. O Cristianismo arrastava as mulheres para a solidão e para a vida contemplativa de um mosteiro, longe de seus lares e de seus filhos. Mas logo outros céticos (ligeiramente mais avançados) vinham dizer que o grande crime do Cristianismo era forçar-nos ao casamento e à constituição da família, condenando as mulheres ao duro trabalho do lar e dos filhos, proibindo-lhes a solidão e a vida meditativa. As acusações eram, na verdade, contraditórias. Dizia-se, ainda, que algumas palavras das Epístolas ou do Rito do Matrimônio revelavam desprezo pelo intelecto das mulheres. No entanto, concluí que os próprios anticristãos sentiam desprezo pelo intelecto das mulheres, porque seu grande desdém pela Igreja no continente era devido ao fato de afirmarem que “só as mulheres” a freqüentavam. Outras vezes, o Cristianismo era censurado por seus trajes indigentes e pobres, por seu burel e suas ervilhas secas. Entretanto, no momento seguinte, o Cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo, seus relicários de pórfiro e suas vestes de ouro. Acusavam-no por ser demasiadamente humilde e por ser demasiadamente pomposo. O Cristianismo era acusado, ainda, de ter sempre reprimido em extremo a sexualidade, quando Bradlaugh, o Malthusiano, descobrira que ele a reprimia muito pouco. De um só fôlego, lançavam-lhe ao rosto uma recatada respeitabilidade e uma religiosa extravagância. Nas capas do mesmo panfleto ateu, fui encontrar a fé censurada por sua falta de união (“uns pensavam uma coisa e outros pensavam outra”) e, ao mesmo tempo, por sua união (“é a diferença de opinião que impede o Mundo de se arruinar”). No decorrer da mesma conversa, um amigo meu, livre-pensador, censurava o Cristianismo por desprezar os judeus e depois desprezava a si mesmo por ser judeu.

Eu desejava ser absolutamente imparcial, como ainda o desejo ser agora, e não concluí que o ataque ao Cristianismo fosse de todo injusto. Concluí apenas que, se o Cristianismo estava errado, estava, sem dúvida, muito errado. Tão hostis terrores poderiam ser combinados em uma só coisa, mas tal coisa devia ser bem estranha e única. Há homens que são avarentos e, ao mesmo tempo, perdulários; porém, são raros. Há também homens lascivos e, ao mesmo tempo, ascéticos, mas estes também são raros. Mas, se este amálgama de loucas contradições realmente existisse, pacifista e sanguinário, suntuoso e maltrapilho, austero e lascivo, inimigo das mulheres e seu tolo refúgio, pessimista declarado e otimista ingênuo, se este mal existisse, então haveria nele algo de supremo e único. De fato, não encontrei nos meus mestres racionalistas explicação alguma para tal excepcional corrupção. O Cristianismo (teoricamente falando) era, a seus olhos, apenas um dos mitos ordinários e um dos erros dos mortais. Eles não me davam a chave para esta retorcida e desnatural maldade. Esse mal assumia as proporções do sobrenatural. Era, sem dúvida, quase tão sobrenatural como a infalibilidade do papa. Uma instituição histórica que nunca se mostrou acertada é um milagre tão grande como uma instituição que nunca pode errar. A única explicação que imediatamente me ocorreu à mente foi que o Cristianismo não viera do céu, mas do inferno. Na verdade, se Jesus de Nazaré não fosse Cristo, devia ter sido o Anticristo.

G. K. Chesterton, “Ortodoxia”, pp. 114-121. Ed. LTr, São Paulo, 2001.

Antes de tudo, um forte.

O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
(Euclides da Cunha, “Os Sertões“).

Um forte, antes de tudo: assim se expressou Euclides da Cunha, referindo-se ao sertanejo – ao nordestino! -, no seu clássico livro sobre a expedição de Canudos. De acordo com o jornalista, o que impressionava na figura do nordestino era o contraste entre a sua aparência e esta força que se revelava, de maneira súbita, tão logo fosse necessária.

O sertanejo em “Os Sertões” é “desgracioso, desengonçado, torto“. Tem uma “postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente“. É um “homem permanentemente fatigado” e “[r]eflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo“. Todavia, “toda esta aparência de cansaço ilude“:

Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
(id. ibid.)

Ao ler essas linhas e descobrir a surpresa que causa no jornalista encontrar tamanha força de vontade em uma figura de onde parecia que não poderia sair nada, não consigo deixar de imaginar que surpresa, então, não teria o ilustre escritor se se debruçasse um pouco sobre a figura mais simples, mais comum e mais corriqueira que ele poderia encontrar: o cristão. Bem que escreveria, então, e o faria com muito mais propriedade, que o cristão é que é, antes de tudo, um forte.

Acusa-se muitas vezes a religião de ser uma muleta de fracos, engodo de massas, pseudo-consolo para fracas inteligências, e tantas coisas assim parecidas. De fato, o cristianismo tinha tudo para ser uma religião de derrotados. Dentre os seus preceitos, constam coisas como dar a outra face para quem lhe esbofetear e oferecer a túnica para quem lhe roubar a capa. Dentre os seus valores mais básicos, está a noção de que ganhar o mundo inteiro não tem importância nenhuma se se vier a perder a própria alma. Entre as coisas que os cristãos podem esperar, citam-se serem perseguidos e sofrerem tribulações. Até mesmo o seu Fundador – e exemplo máximo a ser seguido – é representado no ápice da derrota, morto vergonhosamente como marginal, dependurado numa Cruz.

Colocadas as coisas desta forma, poder-se-ia esperar, realmente, que o seguidor sincero dessa doutrina fosse um fracassado, um traumatizado, um masoquista, um “Zé-Ninguém”, um “mosca-morta”, um inútil. Todavia, já São Paulo nos ensinava, há dois milênios, o grande segredo que se encontra escondido nessa doutrina: “Porque, quando eu sou fraco, aí é que eu sou forte” (cf. 2Cor 12, 10).

Ao contrário do que se poderia esperar, o Cristianismo venceu o mundo. Produziu não covardes, mas mártires. Construiu não favelas, mas civilizações inteiras. Conquistou não somente os rudes e ignorantes, mas as mais finas inteligências de todos os tempos. Saindo do subterrâneo das catacumbas, elevou-se até o céu com as torres góticas das catedrais medievais. Quem poderia imaginar tudo isso, se olhasse para os Doze homens rudes da Galiléia? Esta transmutação é muito mais portentosa do que a transfiguração do sertanejo fatigado em “titã […] potente“!

O segredo desta grande força motriz do Cristianismo encontra a sua mais eloqüente expressão em dois aspectos da Doutrina Cristã, que se referem à relação do homem consigo próprio e com o seu próximo, e que, reunidos, são capazes de mudar o mundo. Refiro-me ao aperfeiçoamento pessoal e à consciência da vida em sociedade, da qual os cristãos precisam ser fermento. Se uma construção portentosa é feita com material de má qualidade, então todo o edifício irá fatalmente ruir. Se, por outro lado, os melhores materiais do mundo estão jogados no canteiro de obras, eles continuam sendo um monte de entulho sem utilidade. Somente quando os materiais são bons e estão dispostos da maneira correta é que se podem levantar as catedrais.

Para o cristão, então, não é suficiente empenhar-se para a sociedade ser perfeita: ele precisa também cuidar da própria perfeição. Ao mesmo tempo, não é suficiente acumular bens, ciência, virtude, poder: todas essas coisas precisam estar ordenadas para o bem comum. Esmagados estão, pela Doutrina da Igreja, ao mesmo tempo, quer o egoísmo do capitalismo selvagem, quer o totalitarismo do comunismo igualitário. Nem os materiais de construção têm serventia sozinhos, e nem as construções úteis e belas são feitas com um tipo só de material. O homem moderno não percebe essas coisas e, por isso, não consegue erguer catedrais.

Preocupar-se com a sociedade mesmo quando o homem poderia ter tudo, e preocupar-se com o homem mesmo quando a sociedade poderia oferecer tudo: eis a grande fraqueza do cristão e que, ao mesmo tempo, é a sua grande força. Movido por este ideal, o cristão avança ao longo da História. É perseguido, e não se desespera; vê caírem impérios, e ele não se perturba. Por importar-se tanto consigo mesmo até o ponto de desprezar as benesses estatais, e por importar-se tanto com os outros até o ponto de desprezar o sucesso próprio, alguém bem que poderia dizer: – mas, então, este sujeito não se importa com nada!

Engana-se. O cristão, na verdade, importa-se com Deus; e isso é tudo o que importa. “Buscai primeiro o Reino de Deus“, diz o Evangelho, “e tudo o mais vos será acrescentado” (cf Mt VI, 33). A história da Igreja ao longo dos séculos revela o cumprimento desta promessa do Divino Salvador. Os seguidores do Crucificado não são uns derrotados, e sim os heróis da História. Escolhendo caminhar por si próprios quando outros lhes apresentam um caminho largo e fácil de ser seguido, e escolhendo caminhar junto com os outros quando poderiam ir muito mais longe por si próprios, a aparente contradição só pode ser resolvida quando se tem os olhos fitos no Alto: na verdade, nem há paraíso terrestre que os homens possam oferecer, nem há pote de ouro no fim do arco-íris para quem chegar lá primeiro. Há somente a Cruz, e Ela é a única esperança; e, carregá-la, a única alegria verdadeira. Eis a força cristã, eis a vitória por meios adversos, eis o que causa verdadeiramente estupor. Não merece tantos elogios o sertanejo: ser cristão, ah, isso sim – isso é que produz os verdadeiros fortes.