O preto de hoje talvez seja uma das maiores mudanças da Liturgia pascal antiga em relação à do Novus Ordo. A Celebração da Paixão do Senhor, desde que me entendo por gente, assisto-a com o sacerdote vestido de vermelho: cor do sangue, cor do martírio. Hoje, na Forma Extraordinária do Rito Romano, vi a Paixão ser celebrada com o sacerdote ostentando paramentos pretos — negros como a morte, escuros como a Noite que se fez durante a Crucificação hoje rememorada.
Paramentos negros! A bem da verdade, a estola somente sobre a alva — na função litúrgica de hoje, não propriamente sacramental, o padre não enverga a grande casula negra das missas de Réquiem — é até bastante discreta. Mas não perde em eloquência. A prostração diante do altar vazio com a qual se inicia o rito de hoje é bem expressiva daquele abandono ao qual fiz referência ontem, no fim da Missa in coena Domini: parece que deu tudo errado, parece que acabamos de perder algo que já nos havíamos acostumados a ter sempre conosco, parece que os nossos pecados desta vez foram demais e, por conta deles, a desolação fez-se presente no lugar santo — e o templo, vazio, censura-nos a impiedade.
Mas é durante as Grandes Orações que o negro dos paramentos se faz mais vívido. O padre voltado para o altar, diante de nós, com o pluvial preto, a grande capa escondendo-lhe praticamente todo o brancor da alva. Agora, sim, o luto da cerimônia se faz mais presente, mais pesado, quase como se lhe pudéssemos tocar. Dirigimos as nossas súplicas Àquele que crucificamos: pedimos pelo Papa, pela Igreja, pelos sacerdotes, por nós próprios. E num arroubo missionário que brota do lado do Crucificado, é como se as graças alcançadas no Calvário não se contentassem com a Igreja apenas. O Sangue vertido na Cruz do Gólgota pede mais — e o sacerdote de negro clama ao Deus Altíssimo sucessivamente pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos pagãos. É de Cristo que nasce a Igreja, mas é também da Cruz que Ela se expande para abarcar aqueles que, antes, a Ela não pertenciam: e a cada vez que nós celebramos a Sexta-Feira da Paixão, nós nos lembramos disso e, solenemente, enlutados, pedimos ao Deus elevado no madeiro da Cruz que Se digne atrair a Si o mundo inteiro.
Sem dúvidas o luto é bem apropriado ao dia de hoje. E se trata de uma dupla tristeza: há a falta que nos faz o Cristo, sem dúvidas, que até ontem estava conosco e hoje nos foi retirado; há a dor da Crucificação, evidentemente — ó vós que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor como a minha!, como nos interpela a Pietà. Mas há uma dor ainda maior e mais pungente, uma dor que enlouquece e desespera: há a dor da culpa, e é essa que não suportamos, é essa que somos constantemente tentados a afastar de nossa frente — e é exatamente por isso que devemos sempre acompanhar piedosamente o Tríduo Santo, ano após ano, para ver se daqui para o dia da nossa morte, com a graça de Deus, conseguimos nos emendar.
Tudo isso que estes dias estamos vivenciando, tudo, tudo, o Getsêmani e a traição, a prisão e os julgamentos injustos, a flagelação e as bofetadas, a coroa de espinho e as cusparadas, o caminho do Calvário, as quedas, a transfixação dos pés e dos pulsos, a sede, o vinagre, a asfixia da Cruz, tudo é por culpa nossa, tudo é por culpa minha. E não se trata aqui da culpa difusa que estamos acostumados a dividir com os nossos contemporâneos, por exemplo, a culpa de uma equipe pelo fracasso de um projeto. No geral, um determinado conjunto de pessoas é capaz ainda de alcançar o objetivo a que se propõe mesmo que um de seus membros falte com os seus deveres, e a falha de um só não é de ordinário capaz de frustrar os esforços de todos. Quando fracassa uma empresa de muitos, não é geralmente por conta de um apenas: o malogro de um projeto comum ocorre devido aos erros de vários, e isso de certo dilui a culpa de cada um dos corresponsáveis pela empreitada.
Na Paixão de Cristo, no entanto, não é assim. A Redenção é da humanidade inteira, é verdade, mas ela se aplica toda a cada pecador. Dito de outro modo, não foi um grande conjunto de pecados que fez Cristo sofrer e morrer — um grande conjunto para o qual a minha contribuição é bem modesta e, portanto, bem pequena a minha responsabilidade. Não; Cristo sofreu tudo por cada pecado, e isso de tal modo é verdadeiro que, se fosse eu o único ser humano a pecar na face da terra, a Paixão seria a mesma, e os mesmos seriam os gritos de dor, as mesmas as lágrimas que atravessam os séculos, o mesmo o Sangue que tinge de rubro o madeiro da Cruz. Não foi por uma imensidão genérica de pecados que Cristo morreu, mas pelos meus! Vistas as coisas assim, é até bem pouco o luto que hoje nós manifestamos: nem mesmo no silêncio litúrgico é possível ouvir os gemidos que nos deveriam aflorar do fundo do peito, e a pequena dor que sentimos ao acompanhar a procissão do Senhor Morto é somente um pálido reflexo da compunção que nos deveria vergar o corpo por terra.
Esta Sexta-Feira Santa é também 25 de Março, é também o dia da Anunciação (*): convergem hoje para o mesmo dia a Encarnação e a Paixão, e o “alegra-Te!” do Anjo à Santíssima Virgem divide espaço com as lágrimas que Ela verteu ao pé da Cruz. Hoje uma Virgem trouxe Deus aos homens; hoje uma Virgem entregou o Seu Filho a Deus. Se o nosso arrependimento não está à altura da multidão dos nossos pecados, olhemos corajosamente para a Virgem Maria, confiemos n’Ela, recorramos a Ela — e Lhe supliquemos que todo este horror não seja em vão.
[(*) Liturgicamente, como as celebrações da Semana Santa têm precedência sobre quaisquer outras festas, a Liturgia da Anunciação é transferida para a segunda-feira depois da Oitava de Páscoa. Este ano, portanto, celebrar-se-á a Festa da Anunciação aos quatro de abril, já em pleno tempo pascal.]