Nas minhas recentes andanças espanholas, encontrei-me em Barcelona – bela cidade que eu não conhecia. No meio do meu roteiro turístico, visitei entre outras coisas o recomendado Museu Picasso de Barcelona – “centro de referência para o conhecimento dos anos de formação de Pablo Ruiz Picasso”.
Eu não sou crítico de arte (aliás, sequer entendo de arte) e, portanto, não é nesta condição que escrevo estas linhas. Quero apenas registrar as impressões que os quadros do conhecido pintor espanhol provocaram em mim, um simples observador leigo e ignorante. Mais especificamente, alguns quadros da série Las Meninas que ocupavam a última sala do museu. Para fins desta análise, trago dois aqui.
O primeiro, de outubro de 1957, retrata Isabel de Velasco, María Bárbola i Nicolasito Pertusato. O segundo, de novembro do mesmo ano, traz Isabel de Velasco i María Bárbola. Ambos encontrados neste catálogo virtual do Museu. Seguem abaixo, nesta ordem:
O meu primeiro impulso diante dos quadros foi o de tentar associar as meninas representadas nos dois quadros aos nomes que constavam no título da obra. Faltava uma garota; o segundo quadro, portanto, representava duas das três garotas do primeiro quadro, e uma delas ficara de fora. Quem estava faltando?
Tal processo aparentemente banal se mostrou bastante demorado, para minha grande frustração. As duas meninas do segundo quadro pareciam-me completamente diferentes das três meninas do primeiro. A do segundo quadro que tinha um sinal no queixo (a da direita) não me parecia estar no primeiro; a que tinha “uma lua em cima do nariz” no primeiro quadro (a da direita) não me parecia estar no segundo. Para mim, a que tinha cabelos cacheados no segundo quadro (a da esquerda) não estava no primeiro, e a que tinha “cara de coruja” no primeiro (a do meio) não estava no segundo. Desconcertado, quase julguei ter matado a charada ao notar que “a de rosto quadrado” (a da esquerda) do primeiro quadro não estava no segundo; mas a resposta me pareceu insuficiente.
Foi quando li de novo os títulos dos quadros e percebi que a ordem em que os nomes apareciam provavelmente indicava a ordem em que apareciam as meninas, da esquerda para a direita. Portanto, nos dois quadros, a da esquerda era Isabel de Velasco. María Bárbola era a do meio no primeiro quadro e a da direita no segundo. A que faltava, ergo, era Nicolasito Pertusato. Faltava a garota da direita.
Olhei e olhei novamente para os dois quadros, tentanto encontrar algum indício de que a garota faltante era mesmo a de vermelho. E foi quando eu, embaraçado, percebi: a de vermelho. No primeiro quadro havia verde, azul e vermelho. No segundo, só verde e azul. A garota que estava no primeiro quadro e não estava no segundo era portanto a de vermelho.
A de vermelho! Pensei depois na possibilidade caridosa de que Picasso fosse sinesteta e enxergasse coloridos os nomes das meninas. Mas, naquele momento, o que pensei foi no grande absurdo que é as pessoas serem identificadas pela cor da roupa que utilizam. Na hora eu pensei que os quadros diziam que as meninas não tinham individualidade, distinguindo-se umas das outras tão-somente por coisas exteriores (no caso, as roupas) – talvez uma farda, um número ou um crachá. Eu procurara em vão traços fisionômicos similares (como formato do rosto, olhos, cabelo) para distinguir as meninas, e devia ter desde o início procurado pelas cores dos vestidos.
Na verdade, o que eu vi nestes quadros foi justamente uma arte de vanguarda no pior sentido possível: uma preconização (e em tom laudatório) da supremacia do exterior sobre o interior, das personalidades diluídas e escondidas sob as vestes, as fardas. Vi o nonsense de um mundo onde não era possível identificar os indivíduos senão pelos adereços que eles ostentam, como se Isabel de Velasco pudesse passar a ser María Bárbola bastando que, para isso, trocasse o seu vestido verde por um azul.
E percebi também, temeroso, que o mundo moderno caminha exatamente nesta direção. Assustei-me com a possibilidade de que talvez nós cheguemos um dia a este extremo de impessoalidade retratado nos quadros de Picasso! E este mundo preconizado naquelas telas parecia-me terrivelmente feio, ainda mais feio do que a “arte” disforme e mal-feita nelas contida.