Canonização sem martírio nem heroísmo: os altares ficam mais próximos?

Com o motu proprio Maiorem hac dilectionem, publicado no último dia 11 de julho, o Papa Francisco estabeleceu um novo critério para a canonização dos santos: a oferta da vida (vitae oblatio), que agora passa a ser uma nova causa para o processo de beatificação e canonização. Até então o caminho para os altares era aberto pelas hipóteses do martírio (super martyrio) e do heroísmo das virtudes (super heroicitatem virtutum).

Na prática, o que acontece é que a Congregação para a Causa dos Santos vai passar a admitir processos de canonização baseados na oferta da própria vida, ainda que a morte não se dê in odium Fidei (hipótese tradicional de martírio) e ainda que a pessoa não tenha levado uma vida extraordinária na prática das virtudes cristãs (hipótese tradicional de heroísmo das virtudes). Ou seja, será possível postular a canonização de uma pessoa que, ainda não tendo exercido durante a vida as virtudes em grau heróico, ofereça propter caritatem a própria vida e aceite uma morte prematura mesmo em situações distintas do martírio propriamente dito.

As condições, segundo o documento (Art. 2), são as seguintes:

a) oferta livre e voluntária da vida e aceitação heroica propter caritatem de uma morte certa e a curto prazo;
b) nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até à morte;
d) existência da fama de santidade e de sinais, pelo menos depois da morte;
e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão.

A ideia (ventilada, por exemplo, aqui) de que o Papa Francisco esteja querendo canonizar cristãos não-católicos não se sustenta. Se ele quisesse fazê-lo, seria muito mais fácil utilizar-se da hipótese (desde sempre vigente!) do martírio, uma vez que não-católicos são, ainda hoje, perseguidos e mortos mundo afora por conta de sua fé. A perseguição movida contra cristãos, por exemplo, pelos muçulmanos, naturalmente não conhece barreiras denominacionais — para os sarracenos, um herege é tão infiel quanto um católico, e um e outro são igualmente assassinados por não aceitarem se prostrar diante do Allah de Maomé.

Ora, todos sabemos «que aqueles que sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível, não são eles ante os olhos do Senhor réus por isso de culpa alguma» (Pio IX, Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort) e, a princípio, uma pessoa que prefere morrer a negar suas convicções transmite um atestado bastante credível da própria boa-fé (conquanto matar por aquilo em que se acredita, e eventualmente morrer no processo — caso, por exemplo, dos fautores de todas as revoluções do mundo –, seja coisa banal e bastante condizente com os instintos desordenados humanos, naturalmente não é disso que se trata quando, por exemplo, cristãos coptas morrem em uma Igreja explodida por terroristas islâmicos). Aqui a virtude (mesmo que meramente humana) é inegável e, em muitos aspectos, verdadeiramente admirável.

Se o objetivo fosse canonizar não-católicos, então, não seria necessário alterar os critérios vigentes de canonização. Seria perfeitamente possível lançar mão dos mártires não-católicos que os muçulmanos, inadvertidamente, costumam mandar para o Paraíso.

No entanto, elevar aos altares essas pessoas não é possível. Primeiro porque fora da Igreja nenhuma salvação é certa, nem mesmo a do martírio: o Concílio de Florença atesta que fora da comunhão da Igreja não se pode salvar nem mesmo vertendo o sangue em nome de Cristo, e diante de uma sentença assim peremptória não é possível abrir brecha para nenhuma espécie de irenismo. No mesmo sentido, embora de maneira mais comedida, o Papa Pio IX ensina a mesma coisa: é um erro esperar bem da salvação dos que vivem fora da verdadeira Igreja de Nosso Senhor (Syllabus, erro 17).

Em segundo (e mais importante) lugar porque declarar alguém santo — “santo de altar” — não é meramente ter fundada esperança de que o sujeito se encontra na Bem-Aventurança Eterna, não é apenas encontrar na vida da pessoa aspectos admiráveis: é mais que isso. Canonizar é insculpir uma vida humana no frontispício da Igreja de Cristo, para louvor público de Deus e edificação dos fiéis. É abrir uns rasgos na Eternidade e trazer para as feridas da Igreja Militante uns lampejos da glória da Igreja Triunfante. Qualquer um pode salvar-se mediante um ato de contrição sincero in articulo mortis (e nós esperamos que sejam muitos os que ingressam nas Moradas Eternas por esta via!), mas não é disso que se trata quando estamos falando em eternizar histórias humanas nos altares imorredouros da indefectível Igreja de Nosso Senhor.

A virtude é virtude onde quer que se encontre — e isso não foi jamais negado –, mas a canonização não é um mero atestado de que alguém foi “uma pessoa boa”. Sem dúvidas é justo, em princípio, reconhecer que há um grande valor (talvez até mesmo — permita-o Deus! — sobrenatural) nestas mortes provocadas não por um ódio específico às heresias, mas sim pela imagem de Cristo que, nelas, conquanto deformada, ainda bruxuleia. Isso, no entanto, não autoriza jamais cogitar de apresentar um herege como modelo de santidade à imitação dos fiéis católicos. Evidentemente não é possível ornamentar a face visível da Igreja (Seu culto público) com almas que em vida A rejeitaram externamente — ainda que possam, na glória, fazer enfim parte d’Ela. São duas coisas completamente diferentes.

E se não é possível canonizar indistintamente os que são mortos por ódio a Deus, tampouco se pode conceder altares sem mais critérios aos que entregam a vida por amor ao próximo. Inclusive parece até mais fácil encontrar não-católicos martirizados do que não-católicos dispostos a realizar a oferta da própria vida propter caritatem. A situação atual não é, portanto, mais laxa do que a anterior. E se não era anteriormente possível canonizar entre os não-católicos nem mesmo as almas simples que derramaram o próprio sangue por causa de Nosso Senhor, pela exata mesma razão não é possível, agora, canonizar aquelas que, fora da Igreja, abrem mão de sua vida por amor ao próximo. A mera idéia não faz nem sentido.

O que muda então com o documento? O Padre Z. arriscou alguns comentários, e lembrou alguns santos que facilmente se encaixariam nesta hipótese de vitae oblatio — como S. Maximiliano Kolbe, que se ofereceu em lugar de um prisioneiro em um campo nazista, ou Santa Gianna Beretta Molla, que mesmo diagnosticada com um câncer de útero manteve a gravidez até que sua filha nascesse. São exemplos que revelam uma coisa que convém não esquecer: abrir mão da própria vida em favor de outrem já é uma atitude que apresenta rasgos de heroísmo! Não ficou mais fácil ser canonizado. Os altares não são para os medianos.

O Papa Francisco não está tornando mais fácil chegar ao Céu (afinal de contas, quem em sã consciência diria que é fácil morrer por alguém?): os altares continuam tão altos quanto sempre estiveram. Não é possível ao homem elevar-se aos altares: o que ele pode — e deve! — fazer é se deixar ser elevado até eles por Deus. Porque pode até haver canonização sem milagre, sem martírio, mesmo sem virtudes extraordinárias: o que não pode haver, jamais, é canonização sem santidade. Esta é a que não pode nunca faltar. Esta é a que somente Deus pode conceder.

Questões sobre o socialismo e a propriedade

Em defesa do socialismo, argumenta-se:

  1. Direitos trabalhistas como salário mínimo, limitação da jornada de trabalho e previdência pública — dentre outros — são conquistas que, historicamente, só foram possíveis graças às lutas dos socialistas. Ora, esses direitos são hoje unanimemente reconhecidos como devidos de fato. Logo, é possível dizer que o socialismo deu certo, ao menos nestes pontos que se incorporaram aos ordenamentos jurídicos ocidentais do pós-Revolução Industrial pra cá. Ainda: se estes pontos eram justos, então a luta por eles era necessária e justa também.
  2. Se «as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres» (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 7), então por que a lei positiva não poderia estabelecer mecanismos, por confiscatórios que fossem, capazes de coagir os abastados a sustentar os desvalidos? Não estaria ela, nisso, apenas aplicando a lei natural?

Responda-se brevemente.

Quanto ao primeiro, não é absolutamente a questão do salário mínimo (e suas assemelhadas) que define o socialista frente o não-socialista. Esta dicotomia é artificial e tem o único intuito de transformar a posição socialista na única aceitável, por meio da atribuição de um rótulo odioso a todas as outras: a redução do não-socialista ao capitalista explorador é simplesmente falsa.

O Magistério da Igreja trata, por exemplo, sobre o salário justo, entre outros lugares na Rerum Novarum (n. 10) e na Quadragesimo Anno (II. 4). Os economistas dirão que estes documentos só falam sensaborias e trivialidades; ora, não poderia ser diferente. São encíclicas e não tratados econômicos, e devem cuidar para que o seu ensino seja suficientemente geral a ponto de poder ser aplicável à natural diversidade dos tempos e dos lugares de que é composta a história humana. Trata-se de princípios e não de modelos políticos; qualquer sistema político que se pretenda válido deve concretizar aqueles princípios.

É por enunciar princípios universalmente válidos que a Rerum Novarum, publicada no séc. XIX, é atual ainda hoje, ao passo que as análises de conjuntura publicadas pela CNBB já saem com cheiro de mofo e ninguém lhes dá maior atenção.

O que define o socialista em face do não-socialista, como diz Pio IX, é uma determinada forma de concepção da sociedade; de fato, o socialismo afirma «que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece» e que o fim da sociedade humana deve ser «a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa» (cf. QA, III., 2). Deste naturalismo e deste individualismo surgem, no atual estágio de degeneração da sociedade, bandeiras como o homossexualismo e o aborto, nas quais com muito mais propriedade se identifica o dito “progressismo social” do que na limitação da jornada de trabalho em 40h semanais.

Em resumo, ninguém é socialista unicamente por querer melhores condições de trabalho, e os bons frutos produzidos pela «questão social» dos quais hoje gozamos devem ser tributados antes aos influxos benéficos da Igreja na História que ao embate materialista entre liberalismo e socialismo.

Quanto ao segundo, o próprio Aquinate responde que «como são muitos os que padecem necessidades e não se pode socorrer a todos com as mesmas coisas, deixa-se ao arbítrio de cada um a distribuição das coisas próprias para socorrer os que passam necessidade» (Summa, ibidem, Resp.) — ou seja, é o particular e não o Estado que deve tomar sobre si o encargo de cuidar dos pobres. Este é um dever moral e não jurídico.

Ainda, se o destino dos bens exteriores é comum, o mesmo não se pode dizer da sua gestão: no que concerne a esta é lícito aos homens possuírem as coisas como próprias, porque os bens se cuidam melhor, mais ordenadamente e de modo mais pacífico se cada um possui o que é seu (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 2, Resp.).

E mais, se é evidentemente lícito que os poderes públicos assumam de alguma maneira e em alguma medida o cuidado dos desvalidos, tal no entanto não se pode dar de modo a impedir ao homem a posse dos bens exteriores, uma vez que esta lhe é natural (cf. Summa, IIa-IIae, q.66, a.1).

Por fim, se se quisesse estabelecer, em determinada sociedade humana, uma comunidade de bens de tal modo que somente a uma pessoa ou a um determinado grupo de pessoas coubesse a distribuição dos seus frutos por todos os membros da sociedade, tal seria legítimo; mas só se poderia fazer voluntariamente e não de modo compulsório, uma vez que a propriedade dos bens exteriores é lícita, como se mostrou, e ninguém pode ser coagido a deixar de fazer o que lhe é lícito.

Hoje a Igreja celebra os protestantes que estão no Céu

Santo é uma palavra equívoca dentro da doutrina católica. Pode significar aquela pessoa que, por ter levado uma vida terrena de extraordinária conformação a Cristo, merece ser apresentada aos fiéis católicos como um modelo a ser seguido — é o seu sentido aliás mais comum e corriqueiro; mas pode significar, também e igualmente, aquela pessoa que simplesmente (como se “simplesmente” fosse um modo aplicável aos novíssimos, mas enfim) ao final da vida se salvou e, tendo já purificado os seus pecados, encontra-se na Glória diante de Deus. São os santos no seu sentido mais lato, i.e., todas aquelas pessoas que alcançaram a santidade — que, em última instância, outra coisa não é que a salvação. É por isso, aliás, que as proposições “fora da Igreja não há salvação” e “fora da Igreja não há santidade” são equivalentes, e por vezes nós as encontramos na sua forma mais sintética quando se quer enfatizar este papel insubstituível da Igreja Católica: Ela é a Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação nem santidade.

Santo, assim, significa duas coisas distintas. Há, como gosta de dizer um velho professor amigo meu, o santo do Céu e o santo de altar. Todos aqueles que estão no Céu junto a Deus são, no rigor do termo e com todo o direito, santos; mas nem todas as pessoas que alcançaram a graça da perseverança final levaram necessariamente uma vida externa digna de ser reverenciada e imitada. O mais empedernido pecador que tenha se arrependido na hora de morte, e de cujo arrependimento a notícia não chegou a ser humano algum, pode purgar os seus pecados no Purgatório e, depois, alcançar a Bem-Aventurança junto a Deus — e será santo por estar no Céu. Mas não poderá jamais, por razões óbvias, ser santo de altar, ser apresentado como modelo de vida à imitação dos fiéis, simplesmente porque a única parte da sua vida propriamente digna de imitação — o arrependimento final — é desconhecido de todos os homens.

Não obstante, santo é santo. Todas as almas bem-aventuradas que estão diante de Deus gozam, por assim dizer, dos mesmos privilégios, independente dos caminhos pelos quais tenham passado até chegar à presença do Altíssimo. São, assim, todos eles, membros da Igreja Triunfante — e por conseguinte da única Igreja de Cristo — e podem interceder pela salvação dos homens que ainda vivem aqui na terra, na Igreja Militante ou fora d’Ela.

Hoje a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos e esta festa é particularmente dedicada a estes “santos ocultos” — a estas almas benditas que, não possuindo a glória dos altares, são todavia membros da Igreja Triunfante e com Ela intercedem junto a Deus pela salvação do mundo inteiro. E hoje o Santo Padre, o Papa Francisco, termina a sua viagem apostólica à Suécia — uma viagem de polêmico cariz ecumênico — justamente com a celebração da Santa Missa de Todos os Santos. A data não podia ser melhor escolhida. Trata-se de um dia extremamente propício para a realização de atos ecumênicos pela seguinte singela razão: hoje é o único dia do ano litúrgico em que a Igreja celebra os não-católicos que estão no Céu!

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Afinal de contas, quem são os que se salvam? São aqueles que, conservando ao longo da vida as vestes puras que receberam no Santo Batismo, mediante uma vida de graça e de amizade com Deus adquirem d’Ele o imerecido dom da perseverança final. Esta é a regra. Mas há uma importante exceção: também se salvam aqueles que, cumprindo retamente os ditames da Lei Natural, «sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível» (Pio IX, Singulari Quadam). E os que se salvam fora dos limites visíveis da Igreja Católica por esta ignorância somente de Deus conhecida são santos também, com todas as prerrogativas das almas bem-aventuradas cuja festa nós hoje celebramos. O Dia de Todos os Santos é também o dia destes santos.

Não dá para saber exatamente quem são as almas que apenas na hora da morte descobriram que deviam ter sido católicas a vida inteira, nem quantas elas são. No entanto é certo que elas existem; e se elas existem, e se no momento da morte descobriram que a religião que seguiram a vida inteira mais as afastou que as aproximou de Cristo, e se sabem agora que deveriam ter desde sempre, desde a mais tenra infância, militado nas fileiras da Igreja Católica e Apostólica sob o estandarte do Papa e da Virgem Santíssima… não é então razoável imaginar que elas, no Céu, junto de Deus, intercedam particularmente pela conversão dos que vivem nas trevas do erro religioso? Do mesmo erro que quase lhes valeu a danação eterna?

Imagine-se um protestante que tenha ido ao Céu — quer por ter se convertido verdadeiramente no último suspiro, quer porque viveu a sua vida inteira na mais cândida ignorância da verdadeira religião. Esse protestante há de ter se arrependido amargamente de toda a insubmissão na qual consumiu a vida inteira; há de ter pensado em como a sua vida teria sido mais fácil se ele acorresse com frequência aos sacramentos, se se valesse diariamente da invocação do nome da Santíssima Virgem Mãe de Deus. Há de aquilatar como não teria sido mais santo, e com muito mais facilidade, se tivesse à sua disposição os meios que Cristo instituiu para a santificação das almas. Ora, este protestante não há de se compadecer particularmente do risco terrível que correm os seus correligionários? Não há de consumir o seu Céu especialmente a serviço deles — para que não corram os mesmos riscos que correu e para que alcancem o quanto antes, ainda em vida!, a graça que ele só abraçou no instante derradeiro?

Façamos um pequeno exercício especulativo. Imaginemos que Lutero, na hora derradeira, após gravar nas paredes do seu quarto o agônico e blasfemo pestis eram vivens, moriens ero mors tua, papa, tenha se arrependido. Imaginemos que, por uma graça insólita da Virgem Mãe de Deus (pela qual, ao que parece, o Heresiarca conservou sempre um resquício de devoção), ao último suspiro o monge louco caiu em si e se arrependeu. Tal portento, que a História não registrou, se de fato ocorreu há de ficar oculto dos homens até a Segunda Vinda de Cristo. Mas semelhante graça, se existiu, aproveitou à pobre alma atormentada do monge alemão. Se tal tiver acontecido, o monge rebelde estará no Céu e não poderá ser jamais santo canonizado — porque a sua vida inteira foi um completo anti-exemplo de Cristianismo. Mas, se tal tiver acontecido, o único dia em que ele poderá ser de algum modo celebrado é o dia de hoje, Primeiro de Novembro, o day-after da Reforma. Seria uma deliciosa ironia.

Lutero certamente pode não ter se salvado. Mas algum protestante que tenha vivido nestes últimos quinhentos anos provavelmente se salvou; e este protestante que gastou a sua vida na heresia e que consumiu seus anos distante de Deus tem hoje a chance de suplicar uma melhor sorte para os seus companheiros de infortúnio. Hoje a Igreja celebra todos os protestantes que a despeito do protestantismo tenham alcançado a salvação; é, portanto, um dia adequado, adequadíssimo, para suplicar a unidade de todos os cristãos sob o báculo do Vigário de Cristo. Ao Papa Francisco juntam-se hoje os santos do Céu; e entre os santos do Céu há alguns que em vida foram protestantes até o suspiro derradeiro.

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Hoje, na Suécia, o Papa Francisco rezou junto com os hereges, e a cena tinha certos contornos escatológicos. Porque hoje — especialmente hoje! –, no Céu, rezam juntos os católicos e os [que em vida foram, ao menos materialmente,] protestantes. Para que esta cena terrestre se reproduza um dia no Céu, no entanto, é preciso que todos, católicos e protestantes, estejam dentro da única Igreja de Cristo — fora da qual não há salvação e nem santidade. Isto já o perceberam todos os protestantes que estão no Céu. E todos estes hoje, diante de Deus, rezam para que também o percebam, e o quanto antes!, os protestantes que ainda estão na terra — as ovelhas tresmalhadas, moribundas e exânimes, ao encontro das quais nestes últimos dias o Papa Francisco moveu toda a Igreja.

Hereges, Cismáticos e Concílios Ecumênicos

Motivado por alguns comentários surgidos em outro post no qual eu falava sobre um convite feito a uma cantora protestante, por um grupo carismático [que, repito, não tenho certeza se se trata de um grupo da Renovação Carismática Católica],  para que participasse de um “culto de louvor e adoração” , trago aqui algumas considerações sobre a presença de não-católicos nos Concílios Ecumênicos ao longo da história da Igreja. Vou fazer algumas citações do livro do pe. Ralph Wiltgen, “O Reno se lança no Tibre”, disponível em língua portuguesa pela Permanência.

Os Concílios Ecumênicos sempre foram vistos como oportunidades de fazer com que os cristãos que se houvessem desviado da Fé retornassem ao seio da Igreja. Por isso, a presença de não-católicos às sessões conciliares sempre foi (ao menos) desejada por todos os Papas e Padres Conciliares, inclusive com o envio de convites expressos às igrejas separadas para que mandassem delegações aos Concílios. No Concílio de Trento, por exemplo, a Enciclopédia Católica nos diz que foram emitidos até mesmo salvo-condutos para garantir a segurança dos protestantes que desejassem participar do Concílio. Uma tradução de um decreto neste sentido está disponível no Veritatis (não vou citar na íntegra, mas recomendo vivamente a leitura):

O Sacrossanto, Ecumênico e Geral Concílio de Trento, reunido legitimamente no Espírito Santo, e presidido pelos mesmos Legados e Núncios da Santa Sé Apostólica, insistindo no salvo-conduto concedido na penúltima Sessão, amplia suas prerrogativas nos termos que se seguem:

A todos em geral faz fé que pelo teor das presentes cláusulas, dá e concede plenamente a todos e a cada um dos Sacerdotes, Eleitores, Príncipes, Duques, Marqueses, Condes, Barões, Nobres, Militares, Cidadãos e a quaisquer outras pessoas de qualquer estado, condição ou qualidade, que sejam da Nação e Província da Alemanha e das cidades e outros lugares da mesma, assim como a todas as demais pessoas eclesiásticas e seculares em especial da revelação de augusta, os que, ou as que viriam com eles a este Concílio Geral de Trento, ou serão enviados ou se colocarão a caminho, ou que até o presente tenham vindo sob qualquer nome que lhes sejam dados, ou lhes sejam especificados, fé pública e plena e verdadeira segurança que chamam salvo-conduto, para vir livremente a esta cidade de Trento e permanecer nela, ficar, habitar, propor e falar de comum acordo com o mesmo Concílio, tratar de quaisquer negócios, examinar, discutir e representar sem nenhuma punição tudo o que quiserem e quaisquer dos artigos, tanto por escrito como por palavra, divulgá-los, e em caso necessário, declará-los, confirmá-los e compará-los com a Sagrada Escritura, com as palavras dos santos Padres e com sentenças e razões, e de responder também, se for necessário, as objeções do Concílio Geral e disputar cristãmente com as pessoas que o concílio indique ou conferenciar caritativamente sem nenhum obstáculo (…).

[…]

E este mesmo salvo-conduto e seguros devem durar e subsistir desde o início e por todo o tempo que o Concílio e seus componentes os recebam sob seu amparo e defesa, e até que sejam conduzidos a Trento e por todo o tempo que se mantenham nesta cidade, e também, depois de ter passado vinte dias desde que tenham suficiente audiência, quando eles pretendam retirar-se, ou o Concílio, depois de os ter escutado, os intime para que se retirem, os fará conduzir com o favor de Deus, longe de toda a fraude e dolo, até que o lugar que cada um escolha e tenha por seguro.

Aliás, é bom frisar que a publicação de alguns decretos que estava marcada para esta sessão foi adiada em atenção ao pedido dos protestantes que ainda não haviam chegado:

[T]endo além disso acreditado que viriam a este Sacrossanto Concílio os que se chamam Protestantes, (…) e como no entanto, não chegaram até o presente momento, e como tenham suplicado em seu nome, a este Santo Concílio que se espere até a próxima Sessão a publicação que deveria ser feita hoje, confirmando que certamente viriam sem falta, (…) transferiu à Sessão seguinte, para trazer à luz e publicar os pontos acima mencionados, no dia da festa de São José, que será em 19 de março, com aqueles que não somente tenham tempo e lugar bastante para vir, mas também para trazer propostas antes do dia marcado.

Pois bem. O pe. Ralph, no livro citado acima, diz o seguinte no capítulo sobre os observadores-delegados e convidados ao Concílio Vaticano II:

Em 8 de setembro de 1868, quinze meses antes da abertura do primeiro Concílio do Vaticano, Pio IX dirigiu a todos os patriarcas e bispos da Igreja Ortodoxa uma Carta Apostólica convidando-os a pôr fim ao estado de separação. Se o aceitassem, teriam no Concílio os mesmos direitos de todos os outros bispos, uma vez que a Igreja Católica considera válida sua sagração. Se não, eles teriam, como no Concílio de Florença em 1439, a possibilidade de tomar parte nas Comissões conciliares compostas de bispos e teólogos católicos, para discutir os assuntos do Concílio. Mas o texto da carta foi considerado ofensivo pelos patriarcas e bispos.

[Wiltgen, Ralph M., “O Reno se lança no Tibre: o Concílio Desconhecido”, p. 124. Ed. Permanência, Niterói, RJ, 2007]

Recapitulando: o Concílio de Trento convidou protestantes, e ainda lhes concedeu um salvo-conduto para que transitassem com segurança por terras católicas. O Papa Pio IX convidou ortodoxos para o Concílio Vaticano I, garantindo-lhes a possibilidade de tomar parte nas Comissões conciliares e discutir os assuntos do Concílio. O mesmo aconteceu no Concílio de Florença. Portanto, a presença de hereges e cismáticos nos Concílios Ecumênicos – ou, ao menos, o convite feito por Roma, dado que eles nem sempre aceitaram – sempre existiu na história da Igreja.

Com qual objetivo? O de convertê-los a Fé Verdadeira, é óbvio. O de discutir francamente com eles, mostrando-lhes a Verdade Católica e o erro no qual eles incorrem ao se separarem da Igreja de Jesus Cristo. O de permiti-los acompanhar de perto os trabalhos conciliares, a fim de que se impregnem da Doutrina Católica e possam, quiçá, ser tocados pela graça de Deus e abjurarem os seus erros. A presença de hereges e cismáticos, portanto, em Concílios Ecumênicos, não deveria escandalizar ninguém.

No Concílio Vaticano II foi feito o mesmo convite. Hereges e cismáticos participaram das sessões conciliares. Participaram, no entanto, como hereges e cismáticos – ou como “irmãos separados”, na linguagem conciliar -, podendo assistir às sessões, podendo (talvez) discutir nas comissões (como no Vaticano I e no Concílio de Florença), mas sem direito a voto, óbvio, porque não fazem parte da Igreja. Aliás, não sei nem mesmo se eles tinham direito a fazer intervenções nas Aulas Conciliares.

Ao Vaticano II fizeram-se presente diversas delegações de não-católicos. Para que isso fosse possível, ajudou o clima mundial à época da convocação do Concílio Ecumênico; permito-me citar de novo o pe. Ralph, porque ele traz uma informação muito interessante sobre este assunto (grifos meus):

O clima religioso do mundo na época de João XXIII era bem diferente do clima dos tempos de Pio IX. Desde então, o movimento ecumênico em favor da unidade dos cristãos tinha se implantado solidamente em todas as comunidades cristãs.

Numerosos fatores haviam contribuído para a expansão deste movimento verdadeiramente providencial. O primeiro era a investigação bíblica que tinha aproximado eruditos católicos, protestantes, anglicanos e ortodoxos. O segundo era a existência do Conselho Ecumênico das Igrejas, fundado precisamente para promover a união dos cristãos em todos os domínios possíveis, e que em menos de trinta anos tinha visto sua composição ultrapassar 214 igrejas-membros de pleno direito e 8 membros associados – igrejas protestantes, anglicanas, ortodoxas e velho-católicas. Enfim, a ameaça neo-pagã do nazismo na Europa durante a II Guerra Mundial tinha unido, na defesa da religião, católicos e cristãos de todas as denominações, o que explica que o movimento ecumênico tenha primeiro se manifestado na Alemanha, na França e nos Países Baixos. Entre os chefes mais ativos do ecumenismo católico figuravam jesuítas e dominicanos.

Os primeiros sucessos alcançados nesses três países receberam novo alento quando o Santo Ofício publicou, em 20 de dezembro de 1949, sua longa “Instrução sobre o movimento ecumênico”. Esta “instrução” convidava insistentemente os bispos do mundo inteiro “não somente a vigiar com cuidado e diligência todas as atividades deste movimento, mas também promovê-las e dirigi-las prudentemente, para que aqueles que estão em busca da verdade e da verdadeira Igreja possam ser ajudados, e para que os fiéis fossem prevenidos contra os perigos que corriam tão facilmente ao promoverem tais atividades”.

[op. cit., pp 124-125]

Havia, portanto, uma instrução do Santo Ofício, pré-conciliar (de 1949, 13 anos antes de se iniciar o Vaticano II), convidando os bispos a promover e dirigir as atividades ecumênicas. Com qual objetivo? Obviamente, com o objetivo de fazer com que o movimento desse frutos verdadeiros e, ao invés de proporcionar um falso irenismo, fosse um instrumento eficaz para ajudar os hereges e cismáticos a encontrarem na única Igreja de Nosso Senhor a unidade que eles estavam buscando. Não vejo, portanto, justificativas para que o Vaticano II seja condenado por coisas que, antes dele, já faziam parte da Igreja, como o convite a hereges e cismáticos para que aprendam a Doutrina Católica nos Concílios Ecumênicos ou a promoção do ecumenismo para que ele sirva como meio de regresso dos sarmentos secos à Igreja de Nosso Senhor. Aos que diferenciam o “ecumenismo conciliar” do ecumenismo do Santo Ofício em 1949, precisariam provar as suas acusações de modo inequívoco. O mesmo vale aos que diferenciam a participação de protestantes e ortodoxos no Vaticano II daquela à qual hereges e cismáticos sempre foram convidados ao longo da história da Igreja.

Concluamos: os membros de outras religiões não estiveram no Concílio Vaticano II como “palpiteiros” para dizer como “deveria” ser a Doutrina Católica, pois esta é imutável e a Igreja o sabe muito bem. Foram, repito, os prelados católicos que votaram os documentos, não os observadores ortodoxos e protestantes. Estes, aliás, se é que chegaram a discutir nas comissões os assuntos do Concílio – coisa que eu não sei se aconteceu -, não fizeram nada diferente daquilo que Pio IX já havia proposto e, antes dele, o Concílio de Florença. Não existe nenhum motivo para se rasgar as vestes quanto a isso.

Não estou dizendo com isso que tudo está muito lindo e perfeito, e que os católicos hoje em dia vivem, via de regra, a mais pura expressão da Doutrina Católica, porque é claro que não vivem. É preciso fazer muita coisa, tanto para tentar descobrir o porquê do Concílio ter sido tão tremendamente distorcido, quanto para tentar propôr caminhos a serem seguidos pelos católicos; mas esse artigo já vai muito longo e eu vou deixar isso para uma outra oportunidade. Acredito que valha a pena, para finalizar, citar a intervenção feita às vésperas do fechamento do Concílio pelo chefe da delegação anglicana numa cerimônia realizada na Basílica de São Paulo Fora dos Muros para promover a unidade dos cristãos:

O Rev. Moorman, chefe da delegação anglicana, dirigiu-se ao Papa em nome dos observadores-delegados e dos convidados, cujo número atingira 103 componentes durante a quarta sessão. “Nenhuma vez sequer durante estes quatro anos”, disse, “sentimos que nossa presença incomodasse fosse a quem fosse. Ao contrário, sempre nos pareceu que ela havia contribuído, em vários aspectos, para o êxito do Concílio e da grande tarefa de reforma que ele empreendeu”. E acrescentou: “Nós acreditamos que passou o tempo do medo recíproco, do exclusivismo rígido, da suficiência arrogante. A estrada da unidade por certo será longa e difícil, mas Vossa Santidade sentirá talvez o conforto de saber que, pelo fato de nossa presença aqui na qualidade de observadores, terá a companhia de uma centena de homens (…) [reticências no original], que pelo mundo afora se esforçarão por levar às Igrejas alguma coisa do espírito de amizade e tolerância de que foram testemunhas em São Pedro. Nossa missão de observadores não terminou. Eu me refiro, caríssimo e santíssimo Padre, ao que vós pensais de nós, como amigos – como mensageiros – agora que cada um de nós retoma a própria estrada.

[op. cit., p. 285]

As besteiras teológicas proferidas pelo reverendo Moorman diante do Papa são da lavra dele, e não do Concílio. As mesmíssimas bobagens irenistas, aliás, multiplicam-se amiúde nos nossos dias, e é importante que elas sejam corrigidas. Seria ingenuidade – o próprio anglicano reconhece – achar que a unidade dos cristãos seria alcançada de outra maneira que não por uma estrada “longa e difícil”. O Vaticano II não se propôs a isso, e é aquele que falou ao Papa em nome dos observadores-delegados ao fim do Concílio que o atesta. Vale ainda destacar que o herege tem consciência de que o seu papel no Concílio é o de observador. E eu, particularmente, fico feliz em ver um herege anglicano chamando o Papa de “Vossa Santidade” e de “Santíssimo Padre”…