Tempus tacendi

Estando Cristo morto e sepultado, cabe indagar qual é ou deveria ser o comportamento dos discípulos. Porque não parece que lhes restassem muitas opções além da tristeza e da prostração que presumivelmente se abateram sobre eles. Não foi justamente o Salvador quem disse: “sem Mim, nada podeis fazer” (Jo XV, 5)? Ele é a Videira e nós não somos senão os ramos; se a videira está morta, poder-se-ia acaso esperar que os ramos estivessem vicejantes?

O Sábado Santo radicaliza aquela passagem do Eclesiastes segundo a qual para tudo há um tempo debaixo dos céus (cf. Ecl 3, 1-8). É-nos por vezes muito difícil imaginar que possa haver um «tempo para calar» (v. 7b) em meio à sempre premente necessidade de anunciar “oportuna e inoportunamente” (cf. IITm 4, 2) o Evangelho da Salvação. Ora, como podemos ficar calados se o Templo Santo de Deus encontra-se tomado por vendilhões? Como ficar calados se as ovelhas, dispersas, vagam a esmo, sujeitas às feras selvagens, à chuva e ao frio, aos espinhos e às ribanceiras? Como ficar calados se o povo de Deus definha e falece, sedento da Sã Doutrina da Salvação? Como ficar calados sem que as próprias pedras, para nossa vergonha, ponham-se a clamar em nosso lugar?

Mas, no entanto, há tempus tacendi, e quem no-lo diz é o próprio Deus através das Escrituras Sagradas, tanto por palavras quanto por exemplos. Por palavras, na já referida passagem do Eclesiastes, onde a sentença se profere insofismável: de fato, há “tempo para calar, e tempo para falar” (Ecl 3, 7). Mas Deus o atesta também através de exemplos, o mais eloquente dos quais nós podemos encontrar no dia de hoje, no Sábado Santo, no grande Silêncio que caiu sobre a terra enquanto Nosso Senhor jazia no sepulcro.

O Verbo de Deus jaz silente no túmulo. E, considerando os acontecimentos dramáticos que vivenciámos nos últimos dias, isso parece um verdadeiro anti-clímax. Em menos de vinte e quatro horas, entre a noite da Quinta-Feira Santa e a tarde da Sexta-Feira da Paixão, assistimos à sucessão vertiginosa de acontecimentos intensos: a Ceia, a agonia no Horto das Oliveiras, a traição de Judas, a prisão, os sucessivos julgamentos — em casa de Anás e de Caifás, perante Pilatos, perante Herodes –, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário, a Crucificação, a morte, a sepultura. Todas essas coisas se sucederam umas às outras tão depressa que mal tivemos tempo de respirar; e agora já faz uma noite inteira e um dia inteiro que nada acontece, e este silêncio contrasta pesadamente com a loquacidade dos dois primeiros dias do Tríduo Santo.

E o mais perturbador é isto: as coisas aparentemente nunca estiveram tão fora de controle quanto depois da Morte do Salvador. O Messias foi crucificado, o grupo que Ele passara os últimos três anos formando se encontra agora desacreditado, disperso e perdido, e todas as promessas com as quais Ele conquistou os corações dos Seus discípulos afiguram-se, agora, incumpridas e incumpríveis. Se formos olhar pelo aspecto teológico a coisa é ainda mais desoladora, porque com o Deicídio parece que o Pecado Original encontra a sua última e definitiva realização: os pecadores que um dia foram expulsos por Deus do Paraíso agora reafirmam e aprofundam a ruptura primeva expulsando a Ele do mundo dos vivos.

E, no entanto, para nossa perplexidade, é justamente nesta hora dramática, neste momento decisivo, que o Altíssimo decide não fazer nada: Deus permanece morto no Túmulo enquanto o mundo desmorona, Cristo simplesmente Se retira da terra justamente no momento em que d’Ele mais precisamos.

E não se diga que o Salvador estava ocupado obrando milagres no mundo dos mortos. Sim, é fato que Nosso Senhor morto desceu aos infernos para resgatar os justos do Antigo Testamento aos quais o Pecado Original até ontem fechava as portas do Paraíso; para tal, no entanto, não haveria necessidade dos três dias que separam a Cruz da Ressurreição. Na verdade, ao descer aos infernos Cristo quebrou-lhes imediatamente as trancas, como ensina o Aquinate (Summa, IIIa, q. 52, a. 2. ad. 2); se se demorou por lá foi por conveniência e vontade livre, não por necessidade. E se houve um dia em que aprouve a Deus quedar-se silente enquanto as ovelhas se dispersavam, talvez devêssemos levar isso em consideração nos nossos apostolados e na nossa vida particular.

Porque sem Deus não há nada que possamos fazer; e se Ele se cala, talvez não seja a nós que compita gritar. Ora, Cristo é Senhor da História e é Cabeça da Igreja; e, portanto, o que o Corpo Místico de Cristo obra na História não escapa aos misteriosos desígnios da Providência que rege o mundo.

Se a Igreja permanece em silêncio, se Ela parece dormir, talvez não seja a nossa vocação substituir-nos à Hierarquia Sagrada — ou pelo menos não na condenação in concreto dos erros que grassam no mundo. Ainda que as ovelhas saiam em debandada, ainda que a obra do Divino Redentor pareça fracassar — não pareceu assim no Sábado Santo? –, ainda que o mundo pareça ruir: há momentos em que Deus silencia e, por absurdo que nos pareça, por difícil que nos seja, pede-nos o silêncio também.

Mas não qualquer silêncio: o «tempo de calar» não se confunde com a acomodação nem com a covardia. O silêncio que devemos a Deus é um silêncio obsequioso e confiante, um silêncio que guarde a palavra de Deus e anime a Fé dos que estiverem conosco: um silêncio como o dos Apóstolos reunidos em torno da Santíssima Virgem durante o tempo em que Jesus permaneceu no Sepulcro.

Talvez a Igreja esteja vivendo um grande Sábado Santo, e talvez devamos olhar com mais cuidado para este último dia do Tríduo a fim de discernir aquilo que Deus espera de nós nos dias de hoje. Porque, enquanto o Senhor jazia nas profundezas da terra, não parece que o debate público com os fariseus fosse aquilo que os discípulos de Cristo devessem fazer. O apologeta é uma vocação necessária na Igreja, sem a menor sombra de dúvidas, mas o apologeta que não suporta o sofrimento, a dor, a humilhação, o silêncio, não é um apologeta e sim um polemista. Há momentos em que um silêncio esperançoso é mais útil e edificante do que um falatório desesperado.

O Senhor jaz no Túmulo, mas não nos deixará para sempre. É noite na Igreja, mas a Aurora do Domingo já vem. Que a Virgem do Silêncio, Nossa Senhora da Soledade, sustente-nos nestes dias difíceis — como sustentou a Igreja nascente durante o tempo em que o Seu Filho esteve morto. Os assaltos do Inferno não prevaleceram naquele tempo; também hoje não haverão de prevalecer. A Vigília Pascal já começa. Um dia haveremos de chamar gloriosa a esta noite.

Lutando em terreno inimigo

Tenho visto algumas pessoas questionando a organização de um simpósio sobre os 100 anos da Revolução Russa pela Universidade Católica de Pernambuco. Vejam bem. Ao que parece, o site de notícias da Unicap não está divulgando este evento, ou ao menos não sob o termo “Revolução”. O máximo que encontrei foi uma referência ao XI Colóquio de História da Unicap: lá, no finzinho da programação, tem o seguinte:

3- Conferências (auditório G1)

Dia 31 de outubro, 19h

Centenário da Revolução Russa de 1917

Prof. Dr. Michel Zaidan Filho (UFPE)

Prof. Dr. Odomiro Barreiro Fonseca Filho (Doutor pela USP)

Não que a nossa Universidade Católica seja um baluarte do alto pensamento católico no país (e nem que os demais pontos do programa sejam um primor de relevância acadêmica), mas apresentar uma conferência isolada no interior de um congresso mais amplo como se fosse uma promoção do comunismo soviético por parte dos jesuítas pernambucanos parece um pouco exagerado. O mais provável, aliás, era que quase ninguém ficasse sabendo da conferência sobre o «centenário da Revolução Russa de 1917» — mera nota de rodapé da décima-primeira edição dos Colóquios de História da Unicap. Os protestos nas redes sociais, neste caso específico, parecem ter o indesejável efeito de projetar sobre o objeto da crítica mais atenção do que ele merece — muito mais atenção do que receberia se fosse deixado à míngua. Aqui o inimigo se aproveita da nossa indignação; e nós, passionais, terminamos por lhe conceder mais visibilidade do que ele lograria por si só.

Uma coisa mais interessante poderia ser feita, e lamento não ter, agora, a disponibilidade de tempo necessária para a pôr em prática. É que o evento tem um call for papers aberto até o próximo dia 27 de outubro, e seria uma coisa divertidíssima se a comissão avaliadora tivesse que se debruçar sobre vários trabalhos que tivessem, digamos, uma orientação dissonante da que comumente se espera em eventos desta natureza. Muito mais relevante, assim, do que rasgar as vestes pelo fato de uma universidade jesuítica estar organizando um simpósio sobre a Revolução Russa seria enviar uma enxurrada de artigos científicos para o tal simpósio mostrando as aberrações ocorridas na Revolução Bolchevique. Com isso, estaríamos fazendo o inimigo trabalhar a nosso favor.

Claro que é sempre possível uma rejeição liminar de todos os trabalhos anticomunistas. Penso, no entanto, que isso seria um tiro no pé da organização. Em um mundo onde praticamente tudo vira polêmica nas redes sociais, a notícia de que um evento acadêmico estivesse consistentemente rejeitando trabalhos científicos por conta meramente de discordâncias ideológicas teria um grande potencial. Provavelmente terminaria por minar a credibilidade do evento. E forneceria, inclusive, um argumento melhor para se pedir providências junto à reitoria da Universidade: pedir a condenação de um congresso em função do tema por ele abordado tem uma conotação de censura que o torna socialmente pouco aceitável, ao passo em que pedir a condenação do mesmo congresso porque ele está censurando pesquisas acadêmicas que discordam da orientação política dos seus organizadores tem muito mais apelo. E, finalmente, se nada mais desse certo, os trabalhos enviados não ficariam perdidos: sempre seria possível publicá-los em um site ou revista “As Obras Censuradas pela Unicap!” ou coisa assim, e também isso teria a sua repercussão social — talvez até mesmo, nestes tempos aguerridos, maior do que a do próprio evento.

A idéia, embora tenha surgido aqui, não vale apenas para este Colóquio da Universidade Católica de Pernambuco: ao contrário, pode ser implementada para qualquer congresso, e aliás é tanto melhor quanto mais relevância tiver o evento. Evento é sobre descriminalização da maconha? Escreve artigo argumentando pelos malefícios da liberação. Evento sobre aborto e “saúde reprodutiva”? Tasca estudos sobre os altos índices de suicídio das mães que cometem aborto. Congresso sobre a laicidade do Estado, manda paper sobre a Santa Sé enquanto pessoa jurídica de direito internacional. Et cetera.

Em outros tempos, íamos para palestras heréticas unicamente para fazer perguntas capciosas e observações constrangedoras ao final das apresentações, quando fosse facultada a palavra ao público. Era divertido, mas procurando hoje os registros daqueles momentos percebo que, afora as (deliciosas) lembranças dos presentes, praticamente nada restou. Ao contrário, uma atuação mais institucional — por exemplo, com submissão formal de artigos segundo as próprias regras estabelecidas pelos congressos — poderia ter uma repercussão mais ampla e mais longeva; poderia alcançar mais pessoas distantes (no tempo e no espaço) dos eventos polêmicos. Parece uma forma de atuação na qual valeria a pena investir algum tempo.

O Magistério não favorece heresias

Foi tornada pública no último sábado uma Correctio Filialis De Haeresibus Propagatis «assinada por 40 clérigos católicos e acadêmicos leigos» e endereçada ao Santo Padre. Os signatários da carta pretendem encontrar um “favorecimento” a sete heresias — no documento discriminadas — tanto na Amoris Laetitia quanto nas subsequentes palavras, atos e omissões do Papa Francisco.

A estrutura do documento, basicamente, é a seguinte: primeiro são listadas as passagens problemáticas da Exortação Apostólica (pp. 3-5); depois são elencadas as palavras, atos e omissões do Papa que «estão servindo para propagar heresias dentro da Igreja» (pp. 5-8). Em seguida as sete proposições errôneas são apresentadas (pp. 8-9). Finalmente, tenta-se explicar essas heresias como possuindo duas fontes: o Modernismo (pp. 10-13) e a teologia de Lutero (pp. 13-18). Este o documento. O que dizer dele?

Antes de qualquer outra coisa, o que causa mais estranheza é a ausência dos nomes dos cardeais das dubia entre os signatários da tal Correctio. O Cardeal Burke já há meses vinha dizendo que seria necessário fazer uma correção formal ao Papa Francisco; vindo a lume agora esta carta, e nela não constando o nome do Card. Burke, nem aliás de nenhum outro cardeal, nós ficamos sem saber ao certo se este documento é ou não é a correção formal anteriormente anunciada. Parece que não.

E ainda, a carta parece que não tem o peso que deveria ter. O próprio Rorate Caeli afirmou que muitos estão diminuindo o alcance da iniciativa, embora insista em afirmar que ela é apenas a primeira peça do quebra-cabeças e que muito ainda esteja por vir. O Papa Francisco, ao que parece, simplesmente bloqueou o acesso ao site a partir dos computadores do Vaticano. As primeiras reações ao documento não tiveram o alcance desejado — o que é muito de se lamentar. Porque, embora a carta meta os pés pelas mãos ao acusar publicamente o Magistério da Igreja de favorecer heresias (!), tem pontos positivos que merecem atenção e cuidado.

As sete proposições listadas na Correctio são, de fato, proposições errôneas (com talvez a exceção da quarta cujo sentido eu não consegui captar muito bem — mas se deixe isso de lado por ora), e elas estão de fato sendo propagadas no interior da Igreja, e é urgente que isso cesse. A salvação das almas assim o exige. Diante disso, muito mais correto do que apontar o dedo para o Vigário de Cristo, assim — muito mais importante do que sair à busca de culpados –, é reconhecer a existência do problema e lutar para que ele seja corrigido. Isso é o que é fundamental.

Sim, a carta acerta ao dizer que os inimigos de Cristo estão propagando heresias dentro da Igreja (e, verdade se diga, com um descaramento talvez inaudito), e, sim, é notório que eles o fazem pinçando trechos dos documentos do Magistério e se valendo das alegadas intenções progressistas do Papa Francisco. Só isso já é motivo mais do que suficiente para pôr os católicos em guarda, sem que seja necessário enveredar pelo tortuoso caminho de perscrutar as intenções do Soberano Pontífice ou acusar o Cristo-na-Terra de beneficiar heresias.

Porque a estratégia adotada pela Correctio pode muito bem ter o efeito contrário ao esperado. Note-se: se um grupo de pessoas está dizendo que o Magistério da Igreja defende as heresias ‘a’, ‘b’ e ‘c’, alguém pode perfeitamente concluir que, dado que o Magistério não ensina heresias, então as proposições ‘a’, ‘b’ e ‘c’ não são heréticas. E, de repente, aqueles que tentavam combater doutrinas errôneas terminam por chancelá-las com o mais alto grau de confiabilidade ao dizerem que elas são ensinadas pelo Magistério Católico. Um verdadeiro tiro pela culatra de consequências trágicas: pessoas normais, que não acreditariam jamais nestas heresias, podem cogitar levá-las a sério se se convencerem de que elas constam dos documentos da Santa Igreja.

Não nos enganemos: a forma mais eficaz de conferir respeitabilidade, por exemplo, a idéia de que «[u]m fiel católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e voluntariamente escolher violá-la, mas não estar em estado de pecado mortal como resultado desse ato» (proposição 3 da Correctio) é dizer que tal idéia encontra amparo no Magistério da Igreja Católica e nos ensinamentos do Soberano Pontífice. A maneira mais fácil de fazer as pessoas acreditarem nisso é dizendo ser este o ensinamento do Papa e da Igreja! Mas, ora, o Magistério não favorece heresias: estas proposições, portanto, se verdadeiramente heréticas, não se fundamentam realmente nos documentos eclesiásticos: fazem-no apenas falsamente.

Acerta, portanto, a Correctio em apontar proposições heréticas disseminadas na Igreja. Erra em fazê-las derivar do Magistério Católico. É justamente porque as proposições apontadas são errôneas que elas não decorrem do Magistério eclesiástico, que não pode disseminar o erro; e isso é tão forte que, se tais proposições estivessem realmente fundamentadas em documentos magisteriais, seria legítimo antes questionar a própria heterodoxia delas que a ortodoxia do Papa — aliás, mais que legítimo!, seria a coisa mais óbvia a ser feita.

Mas as proposições apontadas na carta são realmente errôneas. Por serem errôneas, não estão presentes no Magistério da Igreja, antes o contrariam. E, por serem errôneas e contrariarem o Magistério, devem ser combatidas com tanto mais veemência quanto mais aleivosamente se afirmarem baseadas em documentos pontifícios. Esta é a apologia de que a Igreja precisa.

Justificativas descabidas para a comunhão dos divorciados

O artigo de D. Víctor Manuel Fernández sobre o Capítulo VIII da Amoris Laetitia publicado na última edição da revista Medellín — a despeito do que alguém poderia pensar por conta da nome da revista — está, em linhas gerais, bastante sensato: não autoriza de nenhuma maneira a sanha sacrílega de se admitir os divorciados recasados à comunhão eucarística que vem tomando conta de certos setores eclesiásticos. Haveria no entanto alguns apontamentos necessários, que passo a fazer abaixo.

Em primeiro lugar (medellín 168, p. 453), não há diferença rigorosamente nenhuma entre assumir o compromisso de viver em plena continência (São João Paulo II na Familiaris Consortio, 84) e esforçar-se por viver como amigos (Bento XVI na Sacramentum Caritatis, 29b): uma expressão implica na outra sem solução de continuidade. Afinal de contas, o único compromisso exigível ao cristão é o de se esforçar para fazer a vontade de Deus, uma vez que ninguém pode garantir a priori que nunca mais vai tornar a pecar; e viver como amigos significa, exatamente, viver em plena continência, uma vez que aos amigos não é facultada a prática de atos conjugais próprios dos esposos. Não há nenhuma evolução entre os dois documentos, como se a Igreja estivesse ensaiando “um passo à frente” nessa matéria; por sua vez, a proposta dos liberais de se conferir a Sagrada Eucaristia para quem vive em relações adulterinas não guarda nenhuma compatibilidade ou gradação com os documentos apresentados.

O artigo dá a entender que, anteriormente, os que viviam em segundas núpcias não podiam receber os Sacramentos nem mesmo se estivessem vivendo em plena continência (medellín 168, p. 452), sendo a autorização para comungar nesta última hipótese uma novidade trazida por São João Paulo II. Não sei se isso é exato mas, em qualquer caso, vem ao encontro de tanto quanto já falei aqui sobre o assunto: para mim é claro que o sentido da norma é evitar por um lado que as pessoas em pecado mortal comam e bebam a própria condenação (cf. CCE §1385) e, por outro lado, afastar mesmo qualquer aparência de confusão acerca da Doutrina Católica sobre o Matrimônio e a Eucaristia. A contrario sensu, portanto, se (note-se bem, SE) não há responsabilidade subjetiva apta a configurar pecado mortal e não se produzem escândalos nem se induz a erro acerca da Doutrina, então a participação discreta nos Sacramentos é lícita. Isso vale desde sempre, mesmo antes da AL ou da FC. Isso é a própria lógica interna da Liturgia (enquanto culto público) e dos Sacramentos (enquanto canais da Graça).

Infelizmente, contudo, a situação atual é a de escândalo institucionalizado, praticamente inexistindo alguma hipótese onde a tal “novidade” do Cap. VIII da Amoris Laetitia possa ser licitamente aplicada. A situação atual, ao contrário, talvez exigisse mesmo um recrudescimento da disciplina, impondo maiores obstáculos mesmo à comunhão eucarística (pelo menos à pública) dos que vivem em segundas núpcias praticando a plena continência. A confusão é generalizada e, para não correr o risco de menoscabar os Santos Sacramentos, talvez fosse mais pastoral, em certas circunstâncias, negar a Sagrada Comunhão a quem, conquanto interiormente em estado de Graça, não estivesse em condições exteriores de A receber.

Voltando ao artigo de D. Fernandéz, as comparações feitas com o Quinto e o Sétimo Mandamentos (medellín 168, p. 454-455) não têm pé nem cabeça. Matar alguém em legítima defesa não viola o mandamento de “não matar”, nem se apropriar da comida alheia em estado de necessidade viola o de “não furtar”. Isso é arquiconhecido de todo mundo e nunca esteve em discussão, consta em qualquer catecismo ou manual de teologia moral. Em contrapartida, ninguém jamais cogitou que a convivência more uxorio com alguém que não o cônjuge legítimo pudesse ser coisa diferente de adultério ou fornicação!

E o motivo do descabimento da comparação é muito fácil de se ver. É lícito ao agredido tirar a vida do agressor injusto porque, se ele não o fizesse, seria morto: a legítima defesa se justifica porque é conditio sine qua non para a preservação da própria vida. Do mesmo modo o furto famélico é lícito porque, se a pessoa não comesse, iria morrer de fome, e a vida é um bem maior do que a propriedade; além do quê, no estado de necessidade que justifica o furto famélico há uma violação objetiva da destinação universal dos bens, há um uso desordenado da propriedade.

Ou seja, tanto um caso quanto o outro se justificam, por um lado, porque se está diante de uma injustiça em ato (uma agressão, no caso da legítima defesa; uma desordem na destinação universal dos bens, no caso do estado de necessidade) mantida por um ser humano concreto (o agressor ou o mau proprietário); e, por outro lado, porque quem repele com força a violência sofrida ou quem se apropria daquilo que não lhe pertence o fazem legitimamente apenas porque não lhes resta mais nada a fazer, porque esta é a ultima ratio, sem a qual morreriam.

Coisa completamente diferente ocorre no caso dos divorciados recasados: nem estão diante de um agressor injusto, uma vez que os fautores do adultério são eles próprios; nem estão ausentes as outras opções, uma vez que tanto a continência quanto até mesmo a própria separação permanecem como alternativas; nem, tampouco, se encontram diante de uma situação objetiva de injustiça, uma vez que a indissolubilidade é um mandamento de Deus e não uma desordem introduzida pelo homem. É claro, portanto, de uma clareza meridiana, que as diferentes situações nada guardam em comum uma com as outras. Não é possível, em absoluto, procurar uma justificativa para o adultério raciocinando a partir do estado de necessidade ou da legítima defesa!

No artigo de D. Fernandéz há, por fim, uma outra comparação, para dizer o mínimo, forçada. As “mudanças” da posição da Igreja a respeito da escravidão ou da salvação dos não-católicos (medellín 168, p. 460-461) não são, em absoluto, “mudanças de disciplina” (!) e nem se prestam a justificar a alegada permissão para que casais adulterinos possam receber a Comunhão Eucarística. Quanto à salvação dos não-católicos diga-se, simplesmente, que o Batismo de Desejo sempre foi reconhecido pela Igreja, recebendo inclusive consagração expressa em Trento. Mas a referência à escravidão é que faz o nonsense atingir níveis inimagináveis.

Ora, a escravidão jamais foi “ensinada”, sendo tão-somente tolerada quer como pena (no caso de Nicolau V e as guerras ibéricas), quer como mal menor (no caso do tráfico negreiro): o que mudou de lá para cá não foi o ensino da Igreja (nem “a compreensão da Igreja a respeito da Doutrina” nem nada do tipo), mas tão-somente as circunstâncias externas. O que acontece é que, hoje, por força da própria pregação do Cristianismo séculos afora, não há mais espaço — graças a Deus! — para a prática daquilo que a Doutrina Cristã sempre apontou como um mal. Isso é exatamente o oposto do que historicamente aconteceu com o divórcio, cuja maldade intrínseca a Igreja sempre sustentou com intransigência mesmo perante os poderosos do mundo. Na abolição da escravatura foi a Igreja que venceu e se impôs perante o mundo; admitir a comunhão dos divorciados recasados, ao contrário, seria a derrota da Doutrina Cristã, seria o mundo se impondo à Igreja. É evidente que semelhante interpretação não pode prosperar; contra ela é mister combater com todas as forças.

O homem e a mulher que se amam: esta é a obra-prima!

A história de que o Papa Francisco teria chamado uma dupla gay de “família” foi explorada ad nauseam nos últimos dias pela militância LGBT. Aconteceu que o sr. Toni Reis, conhecido militante homossexual, enviou uma carta para o Papa dando notícia, segundo ele, da sua satisfação por ter logrado batizar na Igreja os seus filhos adotivos — coisa que lhe foi muito difícil conseguir por conta da união homossexual em que ele vive publicamente. O Vaticano enviou uma resposta educada à carta. Por conta disso os meios de comunicação se apressaram a alardear que o Papa Francisco teria afirmado que o “casal gay” é também uma forma de família.

Ora, a notícia se trata, à toda evidência, de uma falsa matéria, sem absolutamente nenhum fundamento. Afinal de contas, a carta recebida pela dupla curitibana

a) não é assinada pelo Papa Francisco pessoalmente, mas sim por um secretário do Vaticano;

b) não traz o nome do destinatário, muito menos do seu “companheiro”, nem nenhuma outra informação que permita concluir, ainda que indiretamente, ter sido enviada especificamente para uma dupla gay; e

c) é um modelo-padrão que o Vaticano utiliza para responder às cartas recebidas — certamente às centenas ou mesmo milhares — pelo Santo Padre todos os dias.

Ou seja, de nenhuma maneira é possível inferir que o Papa tenha querido, nem mesmo indiretamente, estabelecer qualquer relação de similaridade entre a família — a sagrada união entre o homem e a mulher — e as uniões homossexuais — o pecado da sodomia institucionalizado em uma caricatura matrimonial. Neste caso não se trata nem mesmo de uma frase descontextualizada ou uma declaração mal-interpretada, nada disso: foi apenas uma lamentável falta de cuidado do setor vaticano responsável por cuidar da correspondência do Santo Padre. Não chega sequer a ser uma notícia distorcida; é uma não-notícia.

O assunto ganhou tanta repercussão que recebeu importantes desmentidos. O próprio Arcebispo de Curitiba — que, segundo a matéria do Congresso em Foco, foi precisamente quem providenciou o batizado das crianças — publicou uma nota no site da Arquidiocese onde desautoriza a forma como o assunto vem sendo explorado:

Não se trata (…) de uma aprovação à união estável do casal (rectius, dupla) em causa. Tampouco se tratou de permissão. Trata-se de uma simples resposta cordial a um gesto também cordial. Deve ser interpretada, portanto, com o tamanho e a importância que realmente tem.

E até mesmo a Sala de Imprensa da Santa Sé sentiu necessidade de prestar esclarecimentos:

“Em relação à carta assinada pelo Monsenhor Assessor da Secretaria de Estado, reitero que a afirmação do senhor Toni Reis de que se trata de uma resposta ao casal é falso. A carta estava dirigida apenas a ele (‘Prezado Senhor’)”, indica García Ovejero.

Vivemos em tempos estranhos, nos quais as pessoas pensam poder colocar um Papa contra outro Papa e atribuir, ao Soberano Pontífice reinante, posições em assuntos de Fé e Moral que contrariem aquilo que a Igreja sempre ensinou e o mundo moderno escolheu rejeitar. É por isso que divulgam coisas como essa: incapazes de vencer no campo doutrinário, porfiam por enganar os incautos no campo das narrativas. Mas o caso atual é particularmente esquizofrênico porque o Papa Francisco já se posicionou, por diversas vezes, e inclusive solenemente, contra o movimento homossexual.

Durante o ano de 2015 o Papa reservou a maior parte das Audiências Gerais das quartas-feiras para tratar do tema da família, de janeiro até setembro.

Desde o dia de Santa Inês:

Reevocando a figura de são José, que protegeu a vida do «Santo Niño», tão venerado naquele país, recordei que é preciso proteger as famílias, que enfrentam diversas ameaças, para que possam testemunhar a beleza da família no projecto de Deus.

É preciso também defender as famílias das novas colonizações ideológicas, que ameaçam a sua identidade e a sua missão.

Até a festa de São Cornélio, Papa:

Caminhemos juntos com esta bênção e com esta finalidade de Deus, de nos tornarmos todos irmãos na vida, num mundo que caminha em frente e que nasce precisamente da família, da união entre o homem e a mulher.

O Papa Francisco sempre falou da família nos seus elementos constituintes: o homem, a mulher e, consequentemente, os filhos. Ora, insistindo na diversidade dos sexos e na fecundidade conjugal, não há espaço absolutamente nenhum para afirmar que o Papa não tenha sempre diante dos olhos a figura sagrada da união entre o homem e a mulher; ou que não entenda a importância fundamental, insubstituível, dessa união; ou que não a queira promover e defender em face do mundo moderno! Veja-se, por todas, esta elegia rasgada da complementaridade dos sexos para a formação da família:

Isto faz-nos recordar o livro do Génesis, quando Deus conclui a obra de criação e faz a sua obra-prima; a sua obra-prima é o homem e a mulher. E aqui Jesus começa os seus milagres, precisamente com esta obra-prima, num casamento, numa festa de núpcias: um homem e uma mulher. Assim, ensina que a obra-prima da sociedade é a família: o homem e a mulher que se amam. Esta é a obra-prima!

Contra esta tríplice afirmação acerca do «desígnio originário de Deus sobre o casal homem-mulher», de que valem divulgações maliciosas de mensagens vaticanas mal-encaminhadas por estafetas atrapalhados?

Mais ainda. Como se isso não fosse o bastante, o assunto foi especificamente tratado na Amoris Laetitia (aquela mesma que acusam de progressista):

251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».

Repise-se: para o Papa Francisco, em um documento oficial sobre o amor na família, não é possível estabelecer analogias, sequer remotas!, entre as uniões homossexuais e o matrimônio e a família. Como seria possível, então, que Sua Santidade se desdissesse de repente? Teria acaso se comovido — até à apostasia — com a carta de Toni Reis? A história dos gays de Curitiba teria provocado tanto impacto sobre o Papa a ponto de ele decidir — sem fazer alarde, sem se explicar, sem nada, em uma carta, igual a mil outras, assinada por um secretário desconhecido — mudar a posição que vem consistentemente sustentando durante todo o seu pontificado?

É isso? Ou é que a história da mídia gay não tem pé nem cabeça?

Melhor ser ateu sincero que católico hipócrita?

A rapidez e a veemência com as quais se espalhou o boato (surgido há algumas semanas) de que o Papa teria dito que é “melhor ser ateu do que católico hipócrita” revela algo de muito perturbador a respeito do nosso senso moral. Aparentemente as pessoas consideram mais importante a coerência entre as idéias que alguém professa e o estilo de vida que ele leva do que o valor inerente àquelas idéias. É como se o criminoso hipócrita fosse de algum modo pior do que o criminoso altivo e convencido da justeza dos seus crimes — possivelmente porque, sendo ambos criminosos, a este último ao menos não se acrescenta o defeito da hipocrisia.

Tal concepção, conquanto pareça estar subjacente ao senso comum contemporâneo, não faz o menor sentido. Primeiro porque o valor das idéias repousa na sua coerência interna, na sua verdade intrínseca e não na capacidade de o seu propalador viver de acordo com elas. Afinal de contas a mesma idéia pode ser apresentada de maneiras diversas e por pessoas diferentes, e é perfeitamente possível que algumas dessas pessoas vivam-na com mais sinceridade do que outras. Isso só nos permite fazer (e no máximo!) um juízo de valor sobre estas pessoas, sobre o grau de sua convicção a respeito daquilo que falam; jamais no entanto sobre o conteúdo da sua mensagem.

Isso quer dizer, por exemplo, que o valor da mensagem cristã (para ficar naquilo que é talvez o maior pretexto dos ímpios para não darem crédito ao Cristianismo) não pode ser buscado nos eventuais defeitos de caráter dos pregadores do Evangelho. Os mensageiros podem eventualmente ser muito hipócritas e muito cretinos, sem que isso no entanto macule minimamente o valor da mensagem que eles portam. Se alguém me diz, por exemplo, que é errado mentir, este conselho será tão mais valioso quanto maiores forem os proveitos que eu possa obter pondo-o em prática (na obtenção da confiança dos outros, na paz de consciência e na amizade com Deus, por exemplo). O fato de alguém seguir ou deixar de seguir um conselho que dá é totalmente irrelevante para se saber se se trata de um bom ou mau conselho.

E isso sempre foi muito óbvio para todas as pessoas. Sempre se soube que a hipocrisia era um defeito da pessoa que era hipócrita, e não da idéia que ela comunicava. A rigor, o que existem são pessoas hipócritas e não idéias hipócritas. Aquela história de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” nos diz que a pessoa que assim nos interpela está errada — não que o que ela nos diz esteja errado. Da eventual incoerência do mensageiro não nos é permitido inferir a incoerência da mensagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Mas existe ainda um segundo motivo pelo qual esta confusão entre a (aparente) falta de sinceridade do pregador e a inveracidade da doutrina pregada não faz sentido. É que os seres humanos são essencialmente limitados e, portanto, o que parece hipocrisia pode ser simplesmente uma etapa provisória de um processo de crescimento pessoal.

Afinal de contas, somente duas pessoas são capazes de uma coerência radical e absoluta entre aquilo em que acreditam e o que fazem: os santos perfeitos e os completamente degenerados. Para todos os outros seres humanos o que existe é uma espécie de ambivalência moral, onde às vezes agimos em desarmonia com as nossas convicções e onde o domínio de nossa vontade (ainda) não atingiu o mesmo patamar da iluminação de nossa inteligência. Afinal — desgraçados de nós! –, podemos perfeitamente saber o que é correto sem no entanto conseguir agir corretamente em todos os instantes de nossas vidas.

Mais até: essa ambivalência, além de perfeitamente normal, é necessária a qualquer processo de crescimento. Afinal de contas, para que alguém possa melhorar é preciso que primeiramente saiba em quê precisa ser melhor: o conhecimento dos próprios defeitos e o reconhecimento do valor das virtudes que lhe faltam geralmente precede a obtenção dessas virtudes — que só se dá ao longo do tempo e via de regra ao dispêndio de muito sangue, suor e lágrimas. Ou seja: antes de fazer o certo (e até mesmo para que se possa fazer o certo, ou ao menos fazê-lo melhor do que já se faz) as pessoas precisam saber o que é certo mesmo que (ainda) não o vivam.

Tal é porventura hipocrisia, fingimento, insinceridade? Ao observador externo pode ser que assim se apresente, uma vez que os dilemas morais interiores só são do conhecimento daquele que os padece. Isso, no entanto, não deveria importar, por conta do que já se disse: primeiro porque as idéias têm valor a despeito dos hipócritas que as defendam, e segundo porque aquilo que parece hipocrisia em outrem pode ser apenas uma sua limitação sincera.

De volta à frase sobre o ateu e o católico, é preciso dizer que ela, do jeito que foi divulgada, é completamente falsa e irracional. Só existe uma maneira de encontrar lógica nela: se entendermos que é melhor (talvez se devesse até dizer é menos ruim) ser ateu sincero, por ignorância, que católico hipócrita por malícia. Quando menos porque se forem ambos para o Inferno o católico malicioso vai sofrer maiores penas que o ateu ignorante — aliás o Inferno é via de regra mais severo para os que possuem a Fé Verdadeira mesmo. O que o católico hipócrita tem de errado é a sua hipocrisia e não o seu catolicismo; do mesmo modo, o que talvez se possa louvar no ateu sincero é a sua sinceridade, jamais a sua descrença.

Os elogios que esta “declaração do Papa” recebeu nos dizem uma coisa muito séria: que as pessoas parecem achar melhor ter idéias erradas e medíocres, desde que se viva em conformidade com elas, do que as ter corretas e exigentes e não ser capaz de se portar integralmente à sua altura. Na inevitável ambivalência humana entre o que se é e o que se deve ser, entre o real e o ideal, as pessoas parecem mais dispostas a diminuir as exigências morais que a sair da própria zona de conforto e mudar de vida; mais propensas a envilecer os ideais que a converter a própria realidade. Com uma tomada de posição assim medíocre e mesquinha não é de espantar que vivamos imersos em males que tanto ultrapassam as nossas forças. Não ter coragem de lutar para se fazer melhor e, por conta disso, optar deliberadamente por ser um degenerado é uma das coisas mais ignóbeis de que a pusilanimidade humana é capaz.

A «ajuda dos Sacramentos» é para o quê?

Em novembro do ano passado eu comentei aqui sobre as dubia enviadas por alguns cardeais ao Papa Francisco a respeito de algumas interpretações da exortação Amoris Laetitia. Já então eu disse achar ter sido a divulgação bastante oportuna, uma vez que poderia ensejar um «debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões». Estava e ainda estou convencido de que disso não pode advir senão o bem de toda a Igreja, uma vez que o Cristianismo é a religião do Logos de Deus — cuja doutrina é, portanto, racional e racionalizável, adequada ao homem. A polêmica é uma coisa boa porque fortalece as posições, sedimenta os entendimentos e dissipa as dúvidas; a própria Igreja é intrinsecamente polemista, e o único caso em que agora me recordo de ter a Igreja intervindo para silenciar uma polêmica foi na discussão entre jesuítas e dominicanos a respeito da predestinação — e isso só porque, à época, tal debate havia perdido as fundamentais características de «franco, aberto e desapaixonado».

Pouco tempo depois do lançamento da Amoris Laetitia, ainda em maio, discutindo sobre o assunto no espaço de comentários do blog, eu escrevi aqui o seguinte:

i. não é somente a loucura ou a ignorância material que são capazes de mitigar a responsabilidade pessoal dos atos humanos, mas qualquer circunstância capaz de tornar «o juízo prático obscurecido e a vontade enfraquecida» (DEL GRECO);

ii. a AL não trata de abrir sacramentos a adúlteros ou concubinários, mas sim de discernir as situações em que, «[p]or causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes» (AL 305) — e jamais sem eles –, haja a possibilidade de alguém se encontrar em uma situação de pecado objetiva sem culpa grave correspondente;

iii. não há nenhuma orientação específica da AL para estes casos; no entanto, o que quer que se vá fazer, deve ser feito sempre «evitando toda a ocasião de escândalo» (AL 299) e sem «nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho» (AL 301).

De lá para cá muita água rolou por debaixo da ponte. Por exemplo, além da publicação das (agora famosas) dubia, eu tive a sorte de conhecer e ler o livro do pe. Iraburu (Comentarios sobre la Amoris Laetitia), o que me deu a oportunidade de burilar alguns pensamentos e precisar alguns conceitos. Entre outras coisas, agora me parece claro — mais claro do que então — que o primeiro dever da Igreja, diante de uma eventual circunstância atenuante (como por exemplo a ignorância axiológica, ou o condicionalismo social), é e não pode nunca deixar de ser o de libertar o pecador (ainda que só materialmente pecador) de sua limitação. Em outras palavras, não é possível institucionalizar uma pastoral da condescendência, que distribui sacramentos mantendo no entanto prostrados na lama os filhos de Deus chamados à perfeição.

Porque não pode haver a menor possibilidade de dúvida de que um divorciado recasado, ainda na hipótese de que o seu matrimônio seja sacramentalmente nulo, está prostrado na lama. Ainda que ele talvez possa, ontologicamente falando, não ser adúltero (no caso em que o seu primeiro matrimônio seja de fato nulo), torna-se ao menos fornicador na medida em que não é possível aos cristãos batizados casarem-se (= produzirem o vínculo sacramental fora do qual é defeso todo consórcio sexual) fora das condições que a Igreja estabelece para o Sacramento. Uma eventual inimputabilidade subjetiva não elide a natureza objetiva do ato praticado: este, em quaisquer hipóteses, é intrinsecamente desordenado e clama por sua reordenação.

A Amoris Laetitia, em sua famigerada nota 351, fala que há «casos» de pessoas vivendo em uma situação objetiva de pecado em que «poderia haver também a ajuda dos sacramentos». Tem-se gastado muito latim para perguntar quais seriam exatamente estes casos. No entanto, penso que se tem esquecido uma outra pergunta, muito mais fundamental, que exsurge imediatamente da leitura da nota de rodapé: é possível haver «a ajuda dos sacramentos» para quê?

Só pode ser para que a pessoa possa «crescer na vida de graça e de caridade» (AL 305), que é o período ao final do qual está posta a nota que fala da ajuda dos sacramentos. E crescer na graça santificante exige necessariamente, no limite, a superação daqueles «condicionalismos» ou «factores atenuantes» que podem tornar em certa medida inimputável alguém que viva em uma situação de pecado objetiva. Em outras palavras, a «ajuda dos sacramentos» em última instância é e não pode jamais deixar de ser para que a pessoa abandone a situação objetiva de pecado. Achar diferente disso é amesquinhar a graça de Deus.

O silogismo é bastante simples. Todos são chamados à perfeição; uma «união irregular» — concubinária ou adulterina — é evidentemente imperfeita; logo, ninguém é chamado a uma reunião irregular. Não é portanto possível estabelecer uma analogia entre a «união irregular» e o Sagrado Matrimônio: este necessariamente tende a se perpetuar e fortalecer aperfeiçoando-se cada vez mais, enquanto aquela, por sua própria natureza, exige a própria destruição. Outra leitura não é possível do parágrafo 303: mesmo nos casos em que alguém acredite em consciência estar realizando a vontade de Deus no pecado, ainda assim «deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa». E é para essa realização do ideal de forma mais completa que a Igreja deve sempre ajudar o fiel; sempre que não o faz está traindo a própria missão.

Notícias recentes nos dão conta de que os bispos alemães autorizaram fiéis divorciados a receberem os sacramentos; a notícia solta, assim, na mídia secular, não nos permite submeter as normas germânicas ao crivo que expúnhamos nas linhas acima. Parece, no entanto, que infelizmente a «pastoral» alemã é outra daquelas que conduz as almas ao Inferno, institucionalizando a condescendência e confirmando na imundície do pecado filhos de Deus chamados à santidade: também recentemente o prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Card. Müller, deu uma entrevista deplorando exatamente «que muchos obispos estén interpretando “Amoris laetitia” según su propio modo de entender la enseñanza del Papa». Não parece despropositado imaginar que o cardeal alemão esteja justamente respondendo aos seus conterrâneos.

Não faltou quem enxergasse, na entrevista do cardeal Müller, uma resposta tácita às dubia de setembro passado. Resposta oportuna: sim, existem atos intrinsecamente desordenados que não se podem jamais justificar à força de consciências mal-formadas ou circunstâncias atenuantes. Sim, os ensinamentos da Familiaris Consortio permanecem válidos e devem ser observados. Não, as interpretações confusas que existem no orbe católico não são provocadas pela Amoris Laetitia, senão pelos intérpretes confusos dela. Todas essas coisas precisam ser ditas com honestidade e clareza: porque é a céu aberto e a plenos pulmões que cumpre dissipar os equívocos urdidos a portas fechadas e disseminados por sussurros erráticos.

As questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia

Foi hoje tornada pública uma carta ao Papa Francisco onde um grupo de cardeais interpela Sua Santidade a respeito de algumas interpretações contraditórias que estão circulando no orbe católico sobre o Cap. VIII da Amoris Laetitia. Trata-se de uma atitude duplamente excelente, no conteúdo e na forma. No conteúdo, porque o seu objetivo é pôr freios à loucura generalizada que se apossou de muitos ambientes católicos; na forma porque tudo se fez de maneira exemplar, com toda a deferência exigida ao Soberano Pontífice.

Um simples olhar sobre o caso mostra a diferença gritante, estratosférica, entre ele e a histeria virtual generalizada que, aqui no blog, tanto me censuram por combater.

Em primeiro lugar a carta é, toda, de uma elegância exemplar. No lugar dos xingamentos, os preitos de submissão; no lugar das acusações vagas, as questões formuladas com todo o rigor acadêmico. Em nenhum momento o Papa é diminuído em qualquer das suas prerrogativas, em nenhum parágrafo as suas intenções ocultas são perscrutadas e censuradas. Não se encontra na carta — nem mesmo! — uma afirmação taxativa de que tal ou qual passagem da exortação apostólica esteja em desacordo com a doutrina da Igreja; simplesmente se pergunta se as disposições antigas ainda estão válidas e, se sim, de que modo.

Depois: a carta foi redigida por quatro cardeais da Santa Igreja, não pelo Zé das Couves da esquina. Foi entregue ao Santo Padre e não divulgada no Facebook. É total a diferença entre os Príncipes da Igreja, membros da cúria pontifícia, e o leigo brasileiro que mal ajuda a sua paróquia territorial. É absoluta a dessemelhança entre o documento formal, cerimoniosamente entregue ao próprio Soberano Pontífice, e o panfleto passional espalhado aos quatro ventos internet afora e cuja leitura só provoca a indisposição dos espíritos para com o Cristo-na-terra.

Finalmente, o modo de proceder dos cardeais foi aquele estabelecido por Nosso Senhor nos Evangelhos: primeiro o Papa foi procurado privadamente, e somente depois — quando tomaram consciência de que a resposta pontifícia não viria — os autores da carta decidiram ampliar a discussão, tornando-a pública. Não está, portanto, em questão aqui a pessoa do Romano Pontífice, o juízo moral sobre as suas atitudes, nada disso: o que se objetiva é, tão-somente, o esclarecimento dos fiéis católicos a respeito de algumas questões morais surgidas a partir da leitura de um capítulo da última exortação apostólica publicada pelo Papa Francisco.

As dubia enviadas ao Santo Padre são as seguintes:

  1. Se é agora possível (AL 305 c/c nota 351) conferir a absolvição sacramental, e consequentemente a Comunhão Eucarística, a uma pessoa que, conquanto possua um anterior vínculo matrimonial válido, viva more uxorio com alguém que não é o(a) legítimo(a) esposo(a).

  2. Se, após o n. 304 da Amoris Laetitia, ainda existem normas morais absolutas que proíbem incondicionalmente atos intrinsecamente maus e que são obrigatórias a todos, sem exceções.

  3. Se após o n. 301 da Amoris Laetitia ainda é possível afirmar que uma pessoa que habitualmente viva em contradição com um mandamento da Lei de Deus (e.g. o que proíbe o adultério) encontra-se em uma situação objetiva de pecado grave habitual.

  4. Se, à luz das “circunstâncias que mitigam a responsabilidade moral” (AL 302), permanecem válidos os ensinamentos de S. João Paulo II de acordo com os quais as circunstâncias, ou as intenções, não podem jamais transformar um ato intrinsecamente mau em algo subjetivamente bom ou defensável como uma escolha.

  5. Se, após o n. 303 da Amoris Laetitia, permanece válido o ensinamento segundo o qual a consciência nunca pode legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus em virtude do seu objeto.

O debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões é da mais alta importância, e em muito boa hora os eminentíssimos cardeais as trazem a lume. Que a clareza das perguntas possa dar uma exata dimensão daquilo que atualmente se está discutindo; que elas propiciem respostas cada vez mais claras, a fim de fazer cessar a confusão instaurada no seio da Igreja Santa de Deus.

P.S.: Após escrever este texto descobri já haver uma tradução para o português no Sandro Magister do apelo feito pelos cardeais — leiam lá. As perguntas que transcrevi acima foram feitas em tradução livre por mim mesmo a partir do texto do Rorate Caeli.

A «cegueira» dos que defendem o Papa

Um amigo comentou que o recente texto do prof. Nougué parecia dirigido a mim, uma vez que lá ele criticava «alguns membros da chamada “linha média” católica [que] dizem, enquanto Francisco destrói o que resta dos escombros causados pelo Vaticano II e vai à Suécia comemorar os 500 anos da revolução luterana: “Francisco é o bom pastor que vai atrás das almas extraviadas”» e eu escrevi um texto aqui sobre o tema intitulado precisamente «O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada».

Sucintamente, a despeito da similaridade material entre as expressões empregadas nos dois textos, este blog não se identifica nos doestos do (aliás sempre excelente) Estudos Tomistas por uma simples razão: ao contrário dos comunistas, que vêem na coletivização dos meios de produção o fim último da sociedade, e dos liberais, que enxergam na democracia participativa o suprassumo da organização política, o Deus lo Vult! não encara a unidade dos cristãos como uma utopia a ser construída a qualquer preço. Enquanto os comunistas não podem aceitar uma sociedade onde exista a propriedade burguesa, este blog aceita um mundo onde exista a Igreja Católica e as seitas. Ao passo em que os liberais consideram errado um Estado que não seja erigido sobre o sufrágio popular, este blog considera verdadeira e correta uma Igreja que não inclua em Si todos os cristãos. Em uma palavra: comunistas e liberais acham que falta algo ao mundo que existe — e, não podendo aceitá-lo, querem construir um mundo diferente; já o Deus lo Vult! crê e professa que absolutamente nada falta à Igreja Católica que existe desde Cristo e existirá até a consumação dos séculos, e portanto em nada quer alterá-La.

A unidade dos cristãos não está para os católicos assim como o Socialismo Verdadeiro para os comunistas. Para alcançar este os comunistas aceitam destruir o mundo que existe, que consideram mau e errado; para atingir aquela, contudo, os católicos não querem — e aliás não podem — sacrificar a Igreja que existe, que consideram santa e perfeita. As duas situações portanto nada têm a ver uma com a outra, guardando entre si apenas uma semelhança material mas não formal. Ao se olhar de perto, as diferenças saltam aos olhos.

Um comunista tolera o extermínio de seus compatriotas como um meio para atingir o “bem maior” do Estado Socialista. Um católico, todavia, não pode tolerar a destruição da Igreja e a apostasia da Fé como um meio para atingir a “unidade” dos cristãos.

Há de fato “católicos” para os quais pode-se sacrificar questões doutrinárias em atenção à convivência pacífica entre os homens, “católicos” que entendem que a Igreja é uma espécie de ONG e não a portadora de uma Verdade a anunciar a toda criatura. Estes merecem censura e este blog jamais os poupou. No entanto, e graças ao bom Deus, não coaduno com as posições deles, que reputo equivocadas e que sempre mereceram, aqui, as mais acerbas críticas.

“Mas, então, como o Deus lo Vult! defende as fórmulas de compromisso da linguagem eclesiástica e a política vaticana de aproximação aos inimigos tradicionais da Igreja?” Ora, defende-as — e isso é importante — como uma opção de governo legítima, mas não necessária. Defende que as coisas possam ser conduzidas dessa maneira sem que isso implique em apostasia da Fé Católica, e não que elas devam ser assim realizadas sob pena de traição ao Evangelho. São duas coisas completamente diferentes. A Doutrina não exige que o Vigário de Cristo se sente com os falsificadores do Evangelho para discutir alguma colaboração mútua pontual; no entanto, a mera união contingente e acidental entre católicos e hereges para fins de uma empresa comum também não infirma a Doutrina Católica!

Não se trata, portanto, de fazer “vista grossa” a um mal presente em atenção a um bem futuro. Trata-se justamente de olhar o presente, analisá-lo, discuti-lo, esmiuçá-lo e, ao fim, concluir que ele não é exatamente o que os inimigos da Igreja andam alardeando. Não se trata de aceitar a ideologia de gênero para trazer os transexuais à Igreja: o ponto é que lavar os pés a um transexual não se confunde com sacramentar o transexualismo. Não se trata de liberar a comunhão eucarística para os adúlteros a fim de que eles se sintam acolhidos nas paróquias: a questão é que a Amoris Laetitia não manda dar comunhão indiscriminadamente a adúlteros. Mil outros exemplos poderiam ser citados; é sempre esta exata mesma coisa. É sempre conferir, prima facie e inaudita altera pars, a interpretação mais desabonadora possível a qualquer gesto esboçado pelo Romano Pontífice. É sempre transformar discordâncias de governo em questões doutrinárias inegociáveis. É o tempo inteiro confundir a pessoa de quem discordo politicamente com um apóstata excomungado que devo escorraçar como um cão sarnento — mesmo que se trate do Vigário de Cristo! Não, a alternativa a isso não pode ser uma cegueira voluntária moralmente censurável. Entender que o Papa pode tomar alguma atitude com a qual eu não concorde sem que ele seja, por isso mesmo, um papa iníquo que quer destruir a Igreja é questão de maturidade social, intelectual e espiritual. Evidentemente nada disso falta ao prof. Nougué e aos seus textos sempre equilibrados. Mas uma simples olhada pela caixa de comentários deste blog — e de outros blogs e páginas de Facebook que compõem o dito tradicionalismo lusófono de internet — mostra que estou longe de me bater contra moinhos de vento.

Em suma: a ida do Vigário de Cristo à Suécia não é a destruição «[d]o que resta dos escombros causados pelo Vaticano II». Este blog tem dedicado os últimos anos a argumentar precisamente que o Vaticano II não destrói a Doutrina Católica. Da exata mesma forma que os textos conciliares não implicam em uma apostasia da Fé, embora possam ser (e, aliás, tenham historicamente sido) lidos nesta chave, as atitudes do Papa Francisco não significam a negação da Fé Cristã — embora a mídia anticlerical e muitos dos sedizentes tradicionalistas estejam alegremente acordes nesta interpretação. O paralelismo é notável: se a ortodoxia do Concílio pode ser defendida então a das atitudes do Papa Francisco também o pode. No que concerne a este blog, tal praxis — esta «cegueira» — não vem de agora; trata-se, tão-somente, de coerência com os próprios pressupostos, com a Sã Doutrina da salvação, com a Fé Católica e Apostólica sem a qual é impossível agradar a Deus. Foi Santo Inácio quem disse estar disposto a afirmar que o branco que ele via com seus olhos era preto, se tal fosse assim definido pela Igreja; em matéria de não se deixar levar pelas aparências, portanto, o Deus lo Vult! parece estar em boa companhia.

Neymar, o COI e as manifestações religiosas nas Olimpíadas

A história envolvendo Neymar, a faixa com “100% Jesus” e a reclamação do Comitê Olímpico Internacional é uma falsa polêmica — ou melhor, uma polêmica à qual se está dando mais atenção do que ela merece. Resumindo a história, o Brasil ganhou no último sábado a sua primeira medalha de ouro de futebol nas Olimpíadas. Durante a cerimônia de premiação, o capitão do time brasileiro subiu no pódio com uma faixa amarrada na cabeça com a inscrição “100% Jesus” — não é a primeira vez que ele o faz. O COI disse que iria enviar uma carta de protesto à delegação brasileira afirmando que o ato era inaceitável no evento. Houve protestos por parte da mídia cristã.

Como já antecipei, penso que se trata de uma falsa polêmica. Primeiro porque a manifestação não é a melhor expressão de Fé do mundo; segundo porque não vale a pena mendigar o reconhecimento do Comitê Olímpico Internacional; terceiro porque o próprio COI disse que não haveria sanções associadas ao incidente — ou seja, tudo se trata de mera vontade de espezinhar.

A primeira questão é talvez a mais relevante aqui. Sinceramente, eu desconheço o testemunho público da Fé Cristã de Neymar — ou ao menos o testemunho público que vá além de usar uma bandana com o Santíssimo Nome de Nosso Senhor nas cerimônias onde ele é premiado. O craque parece levar uma vida em tudo indistinguível da de todos os outros atletas jovens, ricos e famosos — festas, mulheres, brigas. Neste último fim de semana mesmo, com o nome de Cristo na testa e tudo, o atleta ganhou as manchetes dos jornais por conta de ter xingado um torcedor! É certo que a Fé Cristã deve ser difundida; mas será que não estamos fazendo isso errado? Sinceramente eu não sei quem presta maior desserviço ao Cristianismo: o COI, que não quer atletas fazendo referências a Cristo, ou o atleta que, fazendo questão de dar mostras públicas da sua Fé, comporta-se de ordinário como alguém que nada deve à mensagem evangélica!

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Não se trata de condicionar o apostolado à perfeição moral, evidentemente. O ponto é preservar o Evangelho do escândalo. Irritamo-nos, e com toda a razão do mundo, quando os burocratas ateus do COI desprezam a Fé do povo e querem afastar dos olhos do mundo quaisquer referências públicas ao Divino Salvador; ora, por que razão não nos irritaríamos, também e com até maior medida, quando um atleta amarra uma faixa com o nome de Cristo na testa e vai arrumar confusão com os torcedores a ponto de precisar ser contido por seguranças? Porventura isso não é também um desprezo terrível para com os símbolos cristãos?

[O medalhista Usain Bolt é outro atleta que deu recentemente muito mau testemunho ao ser filmado nas boates cariocas de maneira bem pouco casta, para dizer o mínimo: o mesmo Bolt que há bem poucos dias foi divulgado como sendo devoto de Nossa Senhora das Graças. Aqui, no entanto, a questão é toda outra; não me recordo de ter visto o velocista ostentando a sua Fé Católica pelos pódios nos quais subiu durante as Olimpíadas. A Medalha Milagrosa cai muito bem sobre o peito dos pecadores: que a Virgem da Rue du Bac proteja o jamaicano das brasileiras oportunistas! O problema não é ser cristão e cometer pecados — ser pecador é aliás pré-requisito para ser cristão. O problema é preocupar-se mais com dizer-se cristão do que com portar-se, ou ao menos tentar portar-se, de acordo com as exigências deste nome. Sigamos.]

Há uma outra razão pela qual a revolta parece errar o alvo: parece que, com ela, concede-se aos organizadores dos jogos olímpicos uma autoridade e um prestígio que eles, absolutamente, não detêm. O que tem o COI a ver com a Fé dos atletas, com os símbolos que eles usam, com os gestos que eles fazem, com as preces que eles recitam? Que necessidade existe da aprovação destes senhores?

É bem sabido que as normas do Comitê não têm nada a ver com nenhuma “neutralidade religiosa” (como se isso fosse possível). Trata-se, é notório, de uma deliberada e seletiva perseguição aos símbolos e manifestações do Cristianismo, e não de qualquer religião. Isto é muito fácil de ver. Aqui, no Rio de Janeiro, no início da competição, é impossível não lembrar da mulher que jogou vôlei de praia coberta da cabeça aos pés sob o sol escaldante de Copacabana. A vestimenta, que destoava do contexto muitas ordens de grandeza mais do que a pequena faixa do jovem Neymar, era evidentemente um símbolo religioso — no caso, do islamismo. Não lembro de ter visto o COI reclamar de Doaa Elghobashy. Mais ainda: na mídia houve até festa, dizendo que as atletas estavam quebrando um tabu. Se certos símbolos religiosos são aceitos sem maiores polêmicas enquanto outros ensejam reclamações formais, então é óbvio que o objeto da norma proibitória não é a generalidade das religiões, mas sim uma religião (ou algumas religiões) específica(s).

Ora, se o COI está visivelmente empenhado em uma cruzada anti-cristã sob a desculpa da neutralidade religiosa, o que mais é necessário fazer além de desmascarar-lhe a parcialidade? Apontar a medonha contradição já não é suficiente? Exigir de um órgão incoerente e tendencioso… o quê?, o reconhecimento da licitude dos símbolos e gestos cristãos?, a autorização para falar o nome de Jesus Cristo?, não é dar-lhe uma importância desmedida? Por que os atletas cristãos precisariam da autorização do COI para falar de sua Fé? Por que Nosso Senhor teria que pedir licença aos burocratas de um comitê para subir no pódio conquistado pelos Seus seguidores? Ora, que o Comitê Olímpico se limite àquilo que lhe diz respeito! Quanto aos atletas, que sigam ignorando os seus (do COI) queixumes, que mais que isso é rebaixar a Fé aos caprichos dos organismos internacionais.

A situação seria diferente se o órgão estivesse falando em alguma espécie de punição. Se os atletas estivessem sendo minimamente coagidos na manifestação de suas crenças, se estivessem sob a ameaça de alguma sanção, aí sim seria o caso de dizer com voz altiva que compete obedecer antes a Deus que aos homens, que os comitês organizadores não têm jurisdição sobre a consciência alheia e não podem determinar a quem os atletas oferecem suas vitórias ou a quem deixam de as oferecer. Mas nada disso é assim. Sabendo que não tem legitimidade alguma para impedir o uso de uma faixa com o nome de Jesus por um jogador cristão ao mesmo tempo em que placidamente permite indumentárias islâmicas completas a uma atleta muçulmana, o COI não teve nem mesmo a coragem de ameaçar com sanções. Por outra: disse taxativamente que não haveria sanção alguma. É apenas um protesto vazio, digno de adolescentes birrentos, ao qual não convém conceder mais do que um solene desprezo.

Em suma: se há alguma coisa de censurável na atitude do menino Neymar, tal é o uso meramente externo de um símbolo cristão sem que a isso sejam acrescentados alguns mínimos sinais de que se tem em verdadeira conta a seriedade da mensagem evangélica. A pretensão do Comitê Olímpico de censurar as celebrações dos atletas é descabida e, além do mais, incoerente com a própria atitude do COI diante de outras manifestações análogas — e por isso não merece ser levada a sério. A despeito dos maus exemplos dos atletas cristãos e das picuinhas dos burocratas ateus, o fato é que a Fé não depende nem da coerência daqueles nem do beneplácito destes para ser vivida. E vivê-la inclui professá-la em particular como em público — direito natural contra o qual nada podem as cartas de protesto enviadas por todos os comitês do mundo.