Os contraceptivos e a Zika

O grande Paulo VI, na sua conhecida encíclica Humanae Vitae, estabeleceu o seguinte ensinamento lapidar: “[é] de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). Não satisfeito, antevendo talvez as objeções que porventura lhe pudessem fazer, o Servo de Deus continua assim o seu arrazoado:

Não se podem invocar, como razões válidas, para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal menor (…). Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais [id. ibid.].

Esta encíclica não diz diretamente que a contracepção é intrinsecamente má. Quem o faz é S. João Paulo II na Veritatis Splendor (n. 80). O que são atos intrinsecamente maus? São aqueles — ainda S. João Paulo II — que são maus “sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (id. ibid.). Aliás, vale a pena a leitura dos parágrafos desta encíclica que falam sobre o tema: os nn. 79-83 e 95-97 ajudarão a conhecer com mais clareza a posição da Igreja sobre o assunto. Em suma, não é legítimo, “nem sequer por razões gravíssimas”, tornar um ato conjugal intencionalmente infecundo — independente das circunstâncias em que se encontre o agente (e.g. às voltas com um surto de uma moléstia incurável) e das intenções que ele porventura tenha (evitar que um filho nasça gravemente doente, v.g.).

[Existe, talvez, uma discussão teologicamente legítima que se pode fazer a respeito da posição católica contrária à contracepção: é a que indaga se o Magistério versa sobre todo e qualquer ato sexual, em qualquer contexto, ou se fala especificamente a respeito do ato conjugal entre esposos legitimamente casados. Pode-se encontrar aqui uma discussão a este respeito. A argumentação é pertinente porque, em se tratando da fornicação — da prática do ato sexual fora do casamento, entre solteiros — tão desgraçadamente comum nos dias de hoje, não é claro se o uso do preservativo agrava ou não o pecado (que, lembremo-nos, já é mortal). De qualquer maneira, não se discute (obviamente) se existe alguma situação em que o uso dos contraceptivos seja legítimo, mas sim se há alguma que o Magistério não abrangeu. São duas coisas completamente distintas, mas a questão tem a sua relevância prática, quando menos, para responder à acusação estapafúrdia de que a Igreja, condenando a camisinha, é responsável (v.g.) pelos altos índices de gravidez na adolescência. Tal é um completo nonsense (afinal, a Igreja condena os atos sexuais fora do Matrimônio, e não apenas “a camisinha”), contra o qual, por frustrante que seja, o baixo nível do anti-catolicismo contemporâneo obriga-nos por vezes a nos batermos.]

Coletiva do Papa aos jornalistas durante o voo de retorno do México deixou perplexos católicos e não-católicos por conta de uma resposta estranha que Sua Santidade deu a uma pergunta a respeito da Zika, do aborto e da contracepção. Ei-las, pergunta e resposta, na íntegra (grifos da RV):

(Paloma Garcia Ovejero, “Cope”)

Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angustia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?

Papa Francisco: O aborto não é um “mal menor”. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto. Sobre “mal menor”: mas, evitar a gravidez é – falemos em termos de conflito entre o quinto e o sexto Mandamento. Paulo VI, o Grande!, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas de usar anticoncepcionais par aos casos de violência. Não confundir o mal de evitar a gravidez, sozinho, com o aborto. O aborto não é um problema teológico: é um problema humano, é um problema médico. Mata-se uma pessoa para salvar uma outra – nos melhores dos casos. Ou por conforto, não? Vai contra o Juramento de Hipócrates que os médicos devem fazer. É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado. Ao invés, evitar a gravidez não é um mal absoluto: e, em certos casos, como neste, como naquele que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar. Obrigado.

Não há reparos a serem feitos no que diz respeito ao aborto, penso, uma vez que a sua condenação está bastante clara e enfática; prestemos atenção no que concerne à contracepção.

Primeiro, que evitar a gravidez não é um mal absoluto. Verdade. A própria HV citada ensina que, havendo “motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” (HV 16), é lícito “regular a natalidade”. Mas, atenção!, que isto não se pode fazer de qualquer modo: o que é lícito é “ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos” (id. ibid.). Uma epidemia de Zika é motivo suficientemente grave para espaçar o nascimento dos filhos? Sim, é. Isso significa que, em tais circunstâncias, um casal pode legitimamente recorrer aos “períodos infecundos” para não engravidar.

Segundo, a história de Paulo VI e as freiras. Aqui o negócio fica mais nebuloso; parece que ninguém conseguiu encontrar uma referência primária a este fato. O pe. Z., aliás, afirma, altissonante, que isso é uma mentira e Paulo VI jamais deu permissão alguma para que freiras usassem contraceptivos; houve um artigo, publicado no início da década de 60, onde esta hipótese era aventada, e nada mais. Há referências esparsas a coisas parecidas com isso (por exemplo, o pe. Cullinane afirma, num panfleto, que há um decreto do Santo Ofício com este teor na época de Pio XII), mas nada capaz de dirimir a questão.

Se a materialidade da história é — pra dizer o mínimo — controversa, o seu conteúdo não é mais cediço. Del Greco ensina que é lícito à mulher violentada expulsar do seu corpo o sêmen do estuprador, e que isto se deve considerar como legítima defesa; no entanto, parece que este uso “defensivo” dos anticoncepcionais não tem sido tão pacificamente aceito pelas autoridades vaticanas como dá a entender a entrevista pontifícia. Na década de 90, já sob S. João Paulo II, a Santa Sé proibiu a pílula mesmo para freiras que, missionárias em zona de guerra, corriam risco de estupro. Roma, portanto, non locuta, e esta causa não se pode pretender finita.

Terceiro, por fim, a ilação anticatólica — que, malgrado o Papa não diga com estas exatas palavras, os meios de comunicação do mundo inteiro foram praticamente unânimes em alardear — de que é lícito usar contraceptivos durante o surto de Zika para evitar o nascimento de crianças com microcefalia. Sobre isso, é preciso dizer

i) que a situação das freiras na África aparentemente não guarda semelhança alguma com a de pessoas tendo relações sexuais livres e consentidas em um país da América Latina afligido pela Zika: no primeiro caso há a violência que permite aventar a hipótese da legítima defesa e, no segundo, não;

ii) que, portanto, para que se possa discutir a possibilidade de se usar contraceptivos como no (suposto) caso de Paulo VI, é preciso que se esteja diante de uma situação que lhe seja minimamente análoga — é o que faz o National Catholic Register, ao aventar o exemplo de uma mulher que é constrangida, pelo marido doente de Zika, a ter relações sexuais com ele;

iii) que o Pe. Lombardi, comentando a entrevista, disse que o uso dos contraceptivos só poderia ser objeto de deliberação da consciência em casi di particolare emergenza e gravità — casos de particular emergência e gravidade –, o que parece ir ao encontro do que NCR publicou; por fim,

iv) que independente de tudo isso permanece integralmente válido o ensino tradicional da Igreja, contido no Magistério de — entre outros — Paulo VI e S. João Paulo II, segundo o qual o uso de contraceptivos não é legítimo nem “mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais” (HV).

Evidentemente o aborto é um pecado mais grave que a contracepção; claro que peca mais quem tira a vida de um ser humano inocente do que quem torna um ato sexual intencionalmente infecundo. Esta diferença de gravidade entre os pecados, no entanto, não tem o condão de “justificar” o pecado menos grave, que continua sendo pecado, e pecado grave, é bom lembrar. Nunca é lícito fazer o mal para que dele provenha o bem; tendo lembrado Paulo VI no avião, o Papa Francisco bem que poderia ter-lhe citado esta frase — esta, sim, de cuja autoria não há dúvidas, e cuja doutrina é certa e segura.

O “escândalo” sobre a vida íntima do Papa João Paulo II

Um leitor desafia-me aqui no blog: «quero ver agora qual será a desculpa para defender Karol Wojtyła». Ora, mas defender do quê?

A despeito da péssima qualidade da mídia laica e anticlerical — somente na qual, ao que parece, os detratores da Igreja vão buscar as suas informações… –, nem mesmo nela é possível encontrar o «escândalo sobre a vida intima (sic) de Karol Wojtyła» que o meu contendedor alardeia. O Jornal Nacional fala em «amizade intensa» do Papa polonês com uma filósofa americana; El País, em «íntima amizade». A BBC fala em «relação ‘intensa’», e o máximo que encontrei foi «amizade “corajosa”» na Gazeta do Povo. Onde está o escândalo?

Responda-se: o “escândalo” está na ilação maliciosa — que nem os órgãos de mídia ousarem fazer diretamente! — de que haveria, para usar o termo corrente, “segundas intenções” por detrás da correspondência que o Papa João Paulo II trocou durante longos anos com Anna-Teresa Tymieniecka. Veja-se bem o que estamos tratando aqui: nem mesmo a mídia anticlerical ousou acusar diretamente São João Paulo II de ter mantido um caso com a americana, e o comentarista autoproclamado católico sequer pensa duas vezes em tomar a insinuação maliciosa como um fato incontestável! E, pior, quer — exige até! — que todo mundo acredite no mesmo que ele!

Não satisfeitos em deixar o fundo do poço ao jornalismo medíocre que alardeia fatos públicos como se fossem descobertas bombásticas a respeito da vida privada dos santos da Igreja, os comentaristas do Deus lo Vult! que parecem dedicar as suas vidas à difamação da Igreja foram mais ousados: chafurdando ainda um pouco mais na lama para não perder em abjeção à imprensa anticatólica, complementam-lhe o serviço e vêm alardear, com ares de autoridade, aquilo que a mesma imprensa teve ao menos o decoro de deixar encoberto. É impressionante.

O que interessa dizer sobre o mérito da acusação? Primeiro, que trocar cartas não é crime nem é pecado. O clero católico faz voto de celibato (e não “de castidade” (sic), como saiu na mídia), não de silêncio ou de isolamento social. A correspondência pessoal do Romano Pontífice não é em si mesma uma violação de nenhum dos seus deveres de estado.

Segundo, que a incapacidade de enxergar amizade desinteressada nas conversas alheias — como se um homem só conversasse com uma mulher se tivesse interesses sexuais nela — é um defeito de quem julga deste modo, e não se pode admitir que semelhante reducionismo seja transposto da imaturidade dos que o alimentam para a personalidade das grandes almas do planeta. Em uma palavra: não é porque alguns retardados acham que só escreve “aquele tipo de carta” quem está sexualmente interessado em alguém que todo mundo — o Papa inclusive — fica obrigado a só escrever para quem quiser “pegar”. Isto é ridículo até mesmo no mundo secular; na Igreja, é patético a ponto de não merecer dois segundos de atenção.

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Terceiro, que se fosse verdade «que Anna-Teresa Tymieniecka poderia estar apaixonada pelo então cardeal Karol Wojtyla», como está na Gazeta do Povo, isso em nada desabonaria a figura de S. João Paulo II. As pessoas devem ser avaliadas moralmente por suas ações, e não pelas que terceiros têm para com elas; um possível (e olhe o que digo, possível, porque tudo não passa de especulação) amor platônico entre a americana casada e o cardeal europeu pode no máximo ser censurável a ela, não a ele — ao menos não sem acrescentar uma série de outras variáveis desabonadoras (e.g. que o Papa alimentasse deliberadamente a paixão da filósofa pelo simples prazer de se sentir desejado) que de nenhuma maneira se pode inferir dos documentos existentes.

Quarto, por fim, que o assunto não é sequer novidade; como disse um amigo jornalista no Facebook, o fato já fora publicado na biografia do Papa escrita há vinte anos por Carl Bernstein e Marco Politi. Além disso, não se trata de um caso isolado: a correspondência trocada entre Sua Santidade e a médica polonesa Wanda Półtawska ao longo de mais de 50 anos, por exemplo, é um livro que tem inclusive uma edição brasileira desde 2011.

Qual o sentido da “polêmica” agora levantada? Ela não diz nada a respeito da figura do Papa que não fosse já de conhecimento público; mas diz, sim, um bocado!, sobre as pessoas que, lendo a reportagem, ensaiaram um sorriso lascivo ou fizeram algum comentário malicioso sobre o assunto (preenchendo as lacunas que os jornais intencionalmente deixaram abertas, ‘pegando’ as insinuações deliberadamente deixadas no ar e achando que, com isso, faziam algum exercício particularmente notável de perspicácia). Ela revela, na verdade, a própria pequenez desses leitores, incapazes de manter um relacionamento interpessoal desinteressado e reduzindo a diferença entre os sexos ao seu mero aspecto venéreo. O que projetam no Papa é somente o seu próprio reflexo. E essa história, portanto, pode até não dizer nada sobre São João Paulo II; mas diz muito, sim, sobre o homem contemporâneo — e o que diz é deprimente.

O mundo velho e o vinho novo

Vi no Facebook uma chamada do pe. Kramer para a homilia que o Papa Francisco proferiu ontem na Casa Santa Marta. E vi-a sob um viés profundamente negativo: o sacerdote citava o texto dizendo que a preleção pontifícia era uma inversão do ensino católico. Os papas sempre haviam ensinado que era preciso não inovar, mas seguir a tradição; o Papa Francisco, ao contrário, dizia que — para usar a manchete do Catholic Family News — aqueles que resistem às mudanças são rebeldes obstinados e idólatras, e são culpados de “divinização”!

Eu imediatamente apontei um distinguo: do fato de se deverem evitar as inovações na Doutrina não segue que toda inovação seja execrável, por um lado, e, pelo outro, a condenação do Papa aos que “resistem às mudanças” não abarca por si só os que resistem contra mudanças doutrinárias. Trata-se, claramente, da célebre dicotomia entre a Doutrina e a expressão da Doutrina (ou melhor, em um sentido mais amplo, entre os aspectos doutrinários e os não-doutrinários da vida cristã) que eu já pincelei aqui no blog quando Bergoglio nem sonhava em ser Papa.

Ainda: a meditação pontifícia centra-se em condenar aqueles que justificam as suas atitudes por meio do «sempre si è fatto così!» — sempre se fez assim. Se por um lado eu claramente percebo como um rad-trad possa vestir esta carapuça, por outro lado não é possível admitir que lhe assista razão em sua queixa. Isto por uma razão muito simples: não seguimos o Cristianismo porque entre nós “sempre se fez assim”, mas sim porque o Cristianismo é a Religião Verdadeira! Há sem dúvidas muita nobreza em respeitar as tradições da família e da pátria, mas isso não é, absolutamente, um valor em si mesmo. É pelo fato de o Cristianismo ser verdadeiro que os que nos antecederam o preservaram, e não por ele ter sido preservado que é verdadeiro. Esta ordem, aqui, é absolutamente fundamental, e desconsiderá-la é equiparar o Cristianismo aos antigos pagãos — afinal, também eles honravam os deuses dos seus antepassados…

Na meditação do Papa Francisco, assim, não há nenhuma condenação às coisas antigas — à «tradição» defendida de S. Clemente a Bento XV — pelo simples fato de serem antigas, no que se poderia interpretar como um desejo desordenado por mudanças, uma sede de inovações (inclusive Sua Santidade o diz com todas as letras: «cosa significa questo, che cambia la legge? No!»); como não há também censura alguma, note-se, simplesmente aos que àquelas coisas aderem. Não se critica o amor ao passado; critica-se, isto sim, o desdém pelo presente. Trata-se de uma diferença muito grande e muito importante, porque se por um lado ninguém pode abandonar o passado, por outro a ninguém é lícito — salvo talvez vocações especialíssimas — fugir do presente.

Ora, nós não somos espíritos desencarnados vagando a esmo por uma dimensão etérea, alheios ao mundo dos homens e às suas contingências; não. Somos seres humanos dotados de alma e corpo — de um corpo que se encontra geograficamente delimitado e também historicamente situado. Aprouve à Divina Providência que nós vivêssemos em um lugar concreto e em um tempo determinado. Cada um de nós é chamado a viver a sua vida da melhor forma, e isso significa viver o presente por duro que ele seja. Se Deus nos pôs neste mundo atual, com todos os seus problemas e todas as suas dificuldades, é este mundo atual, doente e falho, que somos chamados a converter ao Evangelho — e é neste mundo, com todas as suas vicissitudes, que temos que nos santificar. Não há outra opção.

Sempre si è fatto così é uma forma de dizer “nunca se fez de outra maneira”; mas outras maneiras podem ser necessárias para novas situações e, neste sentido, dizer que nunca se fez diferente equivale a queixar-se de que o mundo nunca foi como é hoje. Ora, mas essa é uma queixa absurda e sem sentido. Deus nos chama a pelejar contra os inimigos atuais, e não temos o direito de murmurar que a Cristandade nunca os viu tão pérfidos e tão numerosos, que a Igreja jamais os enfrentou tão vis e tão cruéis. Devemos fazer guerra incansável contra os inimigos à frente dos quais nos coloca a Providência! Que eles não tenham sido jamais enfrentados antes é um detalhe que deve preocupar somente pagãos. Não nos exime do combate.

O mundo está velho e não suporta mais o vinho novo do Evangelho. E não temos o direito de desperdiçar a Sã Doutrina despejando-a em vasos rotos — falando a ouvidos moucos — sob a escusa de que sempre se fez dessa maneira, quando os odres não estavam tão estragados, quando os homens ainda eram capazes de ouvir. Se os odres estão imprestáveis, se os homens ensurdeceram, exigem-se novas maneiras de lhes fazer chegar à alma a Boa Nova da Salvação. Cabe a nós, servos inúteis, fazer o que for necessário — ainda que nunca se tenha feito antes — para o cumprimento deste dever.

Tudo o que é possível é perdoá-lo

O aborto, enquanto assassinato direto de um ser humano inocente, é um pecado grave, gravíssimo — daqueles que “clamam ao Céu vingança”, ao lado de praticar atos de homossexualismo, oprimir os pobres e negar o salário ao trabalhador. Por conta dessa sua (tão grande!) gravidade intrínseca e porque, muitas vezes, o horrendo crime do aborto é negligenciado e encarado como se fosse algo de somenos importância, a Igreja impõe, a quem o pratica e aos que colaboram materialmente com ele, uma pena de excomunhão. É o que diz o Código de Direito Canônico vigente: «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae» (CIC 1398). A pena não é nova; a mesmíssima sanção consta no Código Pio-Beneditino, Cân. 2350, o qual reza: «[p]rocurantes abortum, matre non excepta, incurrunt, effectu secuto, in excommumcationem latae sententiae Ordinario reservatam». Quem procura o aborto, sem exceção da mãe, incorre, alcançado o efeito, em excomunhão automática reservada ao Ordinário.

Ora, existem duas coisas distintas aqui. Existe o pecado mortal, decorrente de uma violação direta de um dos preceitos do Decálogo, cujas conseqüências — das quais a mais grave é a perda do estado de graça — nós conhecemos bem das aulas de teologia moral; e existe a pena canônica de excomunhão, imposta pelo Direito eclesiástico. Conquanto emanem ambas do mesmo ato, as duas coisas não se confundem. Um só é o ato humano aqui: o aborto. Dele decorrem, simultaneamente, duas penas, uma de ordem moral, outra de ordem eclesiástica: uma, a perda do estado de graça, outra, a perda da comunhão com a Igreja.

Todo pecado mortal — e não apenas o aborto — provoca a perda do estado de graça. Para recuperá-lo, são necessárias a contrição, a confissão e a satisfação: i.e., arrepender-se verdadeiramente do mal praticado, confessá-lo a um sacerdote da Igreja Católica que tenha a faculdade de o absolver e, na medida do possível, repará-lo. Esses são os pré-requisitos básicos e imprescindíveis para que alguém, tendo perdido a graça santificante por meio de um pecado mortal cometido após o Batismo, venha um dia a recuperá-la. Sem isso (ou pelo menos sem o primeiríssimo deles, a contrição — e perfeita –, na impossibilidade material de acorrer à Confissão Sacramental), não cabe falar em “perdão”.

Se todo pecado grave, pelo fato mesmo de ser grave (i.e., de ser uma ofensa consciente e deliberada à lei de Deus em matéria grave), provoca a perda do estado de graça, nem todo ele provoca excomunhão latae sententiae. Nem mesmo os pecados que clamam ao Céu vingança são, todos, punidos com excomunhão. Na verdade, são apenas oito as excomunhões automáticas atualmente vigentes no ordenamento jurídico canônico (no Código: aborto, absolvição de cúmplice em pecado contra o sexto mandamento, violação de sigilo de Confissão, agressão física ao romano pontífice, sagração episcopal sem mandato pontifício, profanação eucarística e heresia, apostasia ou cisma — hipóteses às quais foi posteriormente acrescentada a tentativa de ordenação feminina). A excomunhão é mais grave do que o mero pecado mortal, uma vez que rompe o vínculo jurídico do excomungado com a Igreja — o qual passa a, d’Ela, não poder receber mais nada. Quem está em pecado mortal, conquanto não aufira as graças próprias (e.g.) dos sacramentos “de vivos”, está apto a receber o perdão sacramental mediante o Sacramento da Penitência. Quem está excomungado, não; precisa primeiro ter a sua excomunhão levantada para, em seguida, receber o perdão sacramental.

Quem comete o aborto está sob uma dupla pena: a perda do estado de graça, comum a todos os pecados mortais, e a excomunhão, que é própria do aborto (e do restrito conjunto de pecados acima mencionado). Isso significa que, uma vez arrependido, o penitente precisa de um pouco mais do que o comum para se reconciliar com a Igreja: se àqueles que cometem pecados mortais que não excomungam basta a absolvição sacramental (i.e., basta a confissão com qualquer sacerdote que esteja apto a ouvir confissões), quem está excomungado precisa antes ser readmitido à comunhão eclesiástica para, só depois, ser absolvido.

O problema é que nem todo padre possui, de ordinário, o poder de levantar a excomunhão do aborto. Assim, quem comete o pecado do aborto — e que está, portanto, além de em pecado mortal, excomungado — precisa, para se reconciliar com Deus e a Igreja, de um sacerdote não só capaz de ouvir confissões, mas também com a faculdade de retirar a excomunhão. Quem possui tal faculdade, segundo o que está expresso no Código Pio-Beneditino (e ainda em vigor), é o Ordinário do lugar. Ou seja, é o bispo diocesano. O bispo pode delegar esta faculdade a alguns dos sacerdotes de sua diocese, ou mesmo a todos eles.

O Papa é o Pastor Supremo da Igreja, que possui jurisdição plena e imediata sobre todo fiel católico. Tudo aquilo que um bispo pode fazer, o Papa pode — e com muito mais razão — fazer igualmente. E foi isso o que Sua Santidade o Papa Francisco fez recentemente: estendeu, a todos os sacerdotes do orbe, durante o Ano Santo, a faculdade de levantar a excomunhão do aborto.

Algumas coisas, portanto, precisam ficar claras.

  • O aborto sempre foi perdoável, como todo pecado mortal, mediante arrependimento e confissão.
  • A pena de excomunhão do aborto, como toda pena de excomunhão, não pode ser levantada por todo e qualquer sacerdote — mas apenas pela autoridade competente e por aqueles a quem esta autoridade competente delegar este poder.
  • A autoridade competente para levantar a excomunhão do aborto é o Bispo Diocesano (o Ordinário).
  • O aborto comporta duas penas — a perda do estado de graça e a excomunhão eclesiástica — e, portanto, o processo de reconciliação com Deus e a Igreja de quem comete este pecado passa, também, por duas fases: o levantamento da excomunhão e a absolvição sacramental.
  • Estas duas fases, via de regra, acontecem no ato da mesma confissão sacramental: o penitente, arrependido, se confessa, e o padre, que tem a faculdade de levantar a excomunhão e a de absolver os pecados, revoga a excomunhão e, acto contínuo, absolve o penitente.
  • Na eventualidade de um fiel católico que tenha cometido o pecado do aborto vir a se confessar com um padre que não possua a faculdade de levantar a excomunhão, então este padre não o pode absolver, pelo menos não de imediato, e deve encaminhá-lo ao bispo, ou a outro sacerdote que, na diocese, possua esta faculdade, ou mesmo solicitar, ele próprio, o padre, ao seu bispo a faculdade de revogar a excomunhão do aborto, para então conferir ao penitente a reconciliação eclesiástica e a absolvição sacramental.
  • A fim de facilitar aos pecadores arrependidos a reconciliação com a Igreja, o Papa Francisco determinou que, durante o Ano Santo, todo sacerdote tem o poder de revogar a excomunhão na qual incorre “quem procura o aborto”. Aquilo que era privativo do bispo diocesano e dos sacerdotes que ele designasse, portanto, durante o Jubileu, por um ato de liberalidade do Romano Pontífice, cabe a todo e qualquer padre.
  • Não tem o menor sentido falar que, com isso, o Papa esteja “desculpando” o aborto ou qualquer coisa do tipo. As palavras de Sua Santidade são claras: «decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». Ou seja, não é para revogar automaticamente todas as excomunhões de todo mundo; é para que os padres possam absolver aqueles fiéis que cometeram aborto e — conjunção aditiva –, «arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». É preciso, portanto, i) estar arrependido — contrição — e ii) pedir o perdão — confissão sacramental.
  • O Ano Santo «abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição» e «terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016» (Misericordiae Vultus). É somente dentro deste intervalo de tempo que os padres gozarão da faculdade conferida pelo Papa.
  • Até lá, quem se arrependeu do aborto que cometeu ou ajudou a cometer pode se reconciliar com a Igreja procurando o Bispo da sua diocese.
  • Por fim, mesmo durante o Ano Jubilar, quem não está arrependido de ter praticado ou ajudado a praticar o aborto, evidentemente, não tem como receber o perdão sacramental. A estes cabe esta censura do Papa (cf. carta citada):

Uma mentalidade muito difundida já fez perder a necessária sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento de uma nova vida. O drama do aborto é vivido por alguns com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta.

Não surpreende que a mídia faça eco a esta «mentalidade». Os católicos, no entanto, aos quais Cristo mandou não se conformar com este mundo, não podem compreender as coisas — nem muito menos as coisas da Igreja — do modo superficial que elas aparecem nos meios de comunicação. Sim, o aborto é um «gravíssimo mal» — o Papa sabe disso! Mas não existe mal que não possa ser vencido por um coração contrito. O mundo clama por misericórdia. Mas misericórdia e arrependimento andam lado a lado. As reivindicações do mundo — por exemplo, para que se deixe de condenar os atos de homossexualismo, o adultério e a fornicação, o egoísmo, o aborto — não são, de nenhum modo!, misericórdia verdadeira. São, aliás, o contrário mesmo de misericórdia, na medida em que, fechando os olhos ao pecado, fecham o coração ao arrependimento — e, por conseguinte, vedam-lhe o perdão. Não é possível fazer com que o pecado deixe de existir. Tudo o que é possível é perdoá-lo. Para isso existe a Igreja. Fora disso não há salvação.

No amor e na verdade

As manchetes ribombam mundo afora: Papa quer que divorciados casados de novo não sejam tratados como excomungadosPapa pede que divorciados não sejam tratados como excomungadosPapa: divorciados que casam novamente ‘não são excomungados’! Dir-se-ia alguma revelação fantástica, alguma novidade inaudita; trata-se, no entanto, do lugar-comum mais comezinho, que certamente todas as pessoas saberiam se tivessem prestado atenção em suas aulas de catequese – e que, com toda a certeza, os correspondentes de religião dos jornais tinham e têm obrigação de o saber de cor, se quiserem fazer jus ao trabalho que se propõem a fazer.

É evidente que os divorciados não estão “excomungados” (ao menos não pelo fato de serem divorciados recasados) e nem nunca o estiveram. Os adúlteros sempre foram merecedores das mais ásperas censuras, é fato, mas não me consta que tenham sido em alguma época fulminados de excomunhão – e, certamente, não o eram até ontem (ao contrário do que as manchetes dão a entender!), antes de a imprensa alardear como se fosse a maior novidade do mundo aquilo que os católicos sempre souberam.

Simplificando as coisas (uma vez que a similaridade entre as palavras “comunhão [eucarística]” e “excomunhão” pode levar a crer que não poder participar da comunhão eucarística é o mesmo que estar excomungado), existem dois tipos de pessoas: as que fazem parte da Igreja Católica e as que não fazem parte da Igreja Católica. A “excomunhão” é uma pena mediante a qual o sujeito, que fazia parte da Igreja, é d’Ela expulso e a Ela deixa de pertencer. Portanto, quem é excomungado não faz parte da Igreja Católica. Por não fazer parte da Igreja Católica, evidentemente, não pode participar dos Sacramentos, como não o podem um herege protestante, um pagão ou um ateu.

As pessoas que fazem parte da Igreja Católica – e aqui, por definição, está-se falando daquelas que não estão excomungadas – dividem-se entre as que estão em estado de graça e as que não estão em estado de graça. O estado de graça é a situação de amizade com Deus que se adquire com o batismo, se perde com o pecado mortal e se recupera com a confissão sacramental; portanto, quem comete pecado mortal e não se confessa não está em estado de graça. O adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Logo, os divorciados recasados, enquanto não se confessarem, estão em pecado mortal, não estão em estado de graça.

Certos sacramentos – chamados sacramentos “de vivos” – exigem o estado de graça para serem licitamente recebidos. Exemplo máximo desta espécie de sacramentos é o Sacramento da Eucaristia, do qual S. Paulo falou que comia e bebia a própria condenação quem O comesse e bebesse indignamente. A recepção da Santíssima Eucaristia – a comunhão sacramental – exige o estado de graça. Quem está em pecado mortal não pode, portanto, comungar. Adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Os divorciados recasados não estão em estado de graça e, portanto, não podem comungar.

Nem todo mundo que não pode comungar não o pode por não fazer parte da Igreja Católica! Quem não é católico (p.ex., quem está excomungado) não pode comunga, é evidente; mas quem não está em estado de graça, mesmo sendo católico, também não pode se aproximar da comunhão eucarística. Os divorciados recasados não podem comungar por conta deste segundo motivo. Não pelo primeiro. É óbvio.

Que isso não se trata de novidade nenhuma é coisa bastante fácil de se mostrar. Abra-se, por exemplo, a Sacramentum Caritatis. Exortação pós-sinodal, escrita há apenas oito anos. Ora, isso é já no terceiro milênio; não é crível que a realidade familiar contemporânea seja substancialmente diferente daquela de 2007. Pois bem. Lá, na década passada, um Sínodo dos Bispos já discutiu o “problema” da admissão dos divorciados recasados ao Sacramento da Eucaristia – que, hoje, quer-se fazer acreditar que é uma discussão importantíssima e inédita em vinte e um séculos de Cristianismo. Um Sínodo dos Bispos, dizia-se, já o discutiu um dia desses. E decidiu (negrito meu):

O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos (Sacramentum Caritatis, 29).

Ora, dizer que os divorciados recasados «continuam a pertencer à Igreja» é a mesmíssima coisa que dizer que eles «não são excomungados». O que Bento XVI disse há oito anos, o Papa Francisco repetiu-o agora. À época, a mídia fez um escarcéu porque o Papa dissera que o divórcio era una piaga; hoje, a mídia faz uma festa para ocultar que o Papa disse que é preciso acolher os divorciados recasados no amor e na verdade.

No amor e na verdade! A expressão se encontra na catequese pontifícia (o itálico é meu): «é necessário um fraterno e atento acolhimento, no amor e na verdade, para com os batizados que estabeleceram uma nova convivência depois do fracasso do matrimônio sacramental». Amor na verdade. Lembra alguma coisa?

«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Assim se inicia um outro documento de Bento XVI, a encíclica Caritas in Veritate. Tudo bem, é uma encíclica social. Mas veja-se se a introdução não serve como uma luva para as presentes celeumas a respeito de divorciados e acesso aos sacramentos:

Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente (Caritas in Veritate, 3).

E ainda, a se grafar em faixas enormes a serem estendidas a cada vez que alguém vier falar em dar a comunhão aos divorciados recasados:

Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo (CV 4).

Eis, portanto, o que significa acolher «na verdade» – e outra coisa não é possível fazê-lo significar. Não dentro da Igreja de Nosso Senhor – Aquela que, «fundada sobre Cristo, não obstante as inúmeras tempestades e os nossos muitos pecados, permanece fiel ao depósito da fé no serviço, porque a Igreja não é dos Papas, dos Bispos, dos padres e nem mesmo dos fiéis; é só e unicamente de Cristo» (Papa Francisco na homilia de 29/06/2015).

Decerto o mundo, inimigo da Igreja, havia de tentar obscurecer a mensagem do Evangelho; decerto a mídia anticlerical haveria de tentar semear a confusão. Não é a primeira vez, nem será a última. O que importa aos homens é permanecer firmes na Verdade, e não dar ouvidos às opiniões levianas que saem na mídia. Porque a Igreja, que não é nem mesmo dos Papas, muito menos o é da imprensa. Muito menos o é das reivindicações da moda. Por mais que rujam os demônios, a Igreja é e vai continuar sempre sendo «só e unicamente de Cristo». E, por mais que se tente, ninguém será capaz de vencer a força desta verdade.

Fala-se muito em como a Igreja deveria se portar; ninguém quer ouvir como a Igreja ensina que os homens devem proceder. Não engrossemos o coro dos primeiros. Ouvir a voz da Igreja outra coisa não é que ouvir a voz de Cristo. E felizes – mil vezes felizes! – os que, ouvindo esta Doutrina, puserem-na em prática.

“Se dizem cristãos, e fabricam armas!”

Perguntam-me o que houve, que já há mais de um mês não se vêem mais textos por aqui. Não houve nada. Por um lado, ocupações demasiadas – pessoais, profissionais, acadêmicas – a sugar-me o tempo cada vez mais exíguo; por outro lado, e talvez seja preciso dizê-lo, uma certa dificuldade em encontrar o que escrever.

Encontrar como posso ser útil a Cristo e à Santa Igreja…! Esta é uma necessidade sem dúvidas da maior importância, de primeira, primeiríssima!, ordem. No entanto, não é fácil. Talvez eu não disponha mais da agilidade necessária para acompanhar o turbilhão da mídia, cada vez mais vertiginoso e, por conta disso mesmo, cada vez menos importante. Um exemplo talvez paradigmático disso: há menos de 24h pululou uma manchete – absurda e sem sentido – dizendo que o Papa disse que fabricantes de armas não podem ser cristãos. Ora, é uma sentença perfeitamente estapafúrdia. O que se faria, aqui, neste blog, em tempos de normalidade?

Primeiramente, ir-se-ia à declaração original. A reportagem secular diz que isso aconteceu «durante um comício para milhares de jovens ao final do primeiro dia de sua visita à cidade italiana de Turim». A matéria, na cobertura da Canção Nova, é esta aqui; belíssima, piedosa, edificante, e nada diz a respeito de fabricantes de armas.

Fracassada a busca na mídia lusófona, ter-se-ia que recorrer ao original italiano. Está aqui. A parte das armas está lá, lá pelo meio do texto, na resposta à jovem Sara. “Se dizem cristãos, e fabricam armas!”, brada o Romano Pontífice. A pergunta? Desconfiança da vida. O contexto visado pelo Santo Padre? A guerra, em particular a Primeira Guerra, e «aquela hipocrisia de falar de paz e fabricar armas, e até mesmo vender armas a este que está em guerra com aquele e àquele que está em guerra com este!».

Contextualizada a celeuma, passar-se-ia à sua explicação, ao seu justo sentido, à elucidação do mistério. Mas, hoje, até mesmo a polêmica é de baixa qualidade. Não há o que discutir, porque os dois extremos são bastante evidentes.

É, por um lado, evidente que, do excerto, não é possível, ao menos não seriamente possível, inferir a excomunhão do velho Winchester ou o interdito sobre os clientes da Taurus. Não se fala das armas simpliciter, e sim das armas feitas para a guerra; e, mais ainda!, não apenas das armas feitas para a guerra, assim, abstratamente, mas sim daquelas comercializadas indistintamente para ambos os lados do conflito, promiscuamente, sem se preocupar com o restabelecimento da paz ou com a cessação da agressão injusta mas, ao contrário, tirando vantagem pecuniária do conflito armado para cuja perpetuação é economicamente interessante trabalhar. E aqui a outra evidência: é evidente, para além de toda a evidência, que quem tira proveito da morte e da carnificina não pode se dizer cristão. Que diferença, no entanto, entre isto e a manchete primeva! Feito todo o caminho, desaparece a razão do estranhamento original. O problema não está nos rifles de caça, nas academias de tiro, nas armas para a defesa pessoal ou para os agentes do Estado; o problema, o indiscutível problema, está naquilo que fazem os Sons of Anarchy. Era mesmo necessário gastar todo este latim?

Em suma, os motivos pelos quais venho progressivamente perdendo o gosto por este modus operandi podem ser sintetizados no seguinte:

  1. Está ficando humanamente impossível responder a toda besteira levantada contra a Igreja em geral (ou contra o Papa Francisco em particular), porque a taxa de surgimento de absurdos está ultrapassando – que digo? Há muito tempo já ultrapassou! – qualquer limite de razoabilidade.
  2. Devido à baixa, baixíssima qualidade dessa polêmica chinfrim, isso está deixando de ser intelectualmente recompensador. Uma coisa é o desafio de enfrentar um oponente de, pelo menos, alguma habilidade natural; outra, bem diferente, é ficar juntando lé com cré e demonstrando que, do fato de a indústria da guerra ser deplorável, não segue que o tiro esportivo igualmente o seja. Sinceramente, não é necessário que haja uma pessoa se dedicando a este serviço. Estou certo de que qualquer pessoa capaz de ler este blog e o compreender minimamente consegue, também, fazer por conta própria estes passos argumentativos aqui desenhados.
  3. Esta proliferação de alegações estapafúrdias que não resistem ao mais comezinho exame crítico está também provocando o descrédito da mídia e a sua progressiva desimportância: a enxurrada de abobrinhas é tamanha que, semana que vem, ninguém lembra mais do absurdo alardeado na semana passada. Oras, é melhor então deixar o bicho morrer sozinho do que o perseguir com estardalhaço. Não vale a pena perder tempo na caça diligente ao chacal mirrado e já moribundo do qual amanhã, de qualquer modo, só restará o cadáver putrefato.
  4. Ser reativo, às vezes, é até agradável. O tempo inteiro, contudo, é extenuante. Não acho que exista mais espaço para isso na internet pós-boom das redes sociais. O terreno está devastado pela mediocridade; não tem mais sentido arrancar laboriosa e pacientemente os cardos do campo. Cumpre dar as costas a esta porcaria toda e arranjar outra ocupação menos inglória a que se dedicar.

Que ocupação…? É este o ponto. Preciso encontrá-la. Como disse acima, preciso achar como posso ser útil à glória de Deus Nosso Senhor. Decerto escrevendo. Decerto aqui, neste espaço entrincheirado e protegido que a tantas duras penas conquistei. Deus lo Vult!, sem dúvidas. É questão, somente, de amolar a espada no rosário. É questão de dar os primeiros passos – o caminho se faz ao caminhar. É questão de voltar. Aproveitar melhor o tempo…! Levantemo-nos, vamos. Elevemos este lugar mais uma vez. Vejamos o que a Providência ainda não me reserva. Perscrutemos no horizonte que batalhas ainda não me é possível travar. AMDG. Semper.

O Inferno continua eterno como sempre esteve

Foi recentemente divulgado, nas redes sociais, em tom elogioso, um artigo da lavra do Juan Arias e republicado pelo Unisinos que é abertamente herético. Sob o título “O Papa Francisco revisa a teologia do Inferno” (!), o articulista se esmera por demonstrar que Sua Santidade teria defendido a tese de que o inferno não é eterno.

Não sei se o mais impressionante é o sr. Arias mentir na cara dura, haver pessoas que acreditem na canalhice do sr. Arias ou haver pessoas que comemorem o disparate inventado pelo sr. Arias como se fosse um “avanço” para a Igreja Católica. Quanto a estes últimos, tolos!, não percebem que a beleza da Igreja Católica é justamente a Sua intransigência diante do furor das Potências do mundo, é precisamente a Sua solidez inabalável enquanto, ao seu redor, rebentam os vagalhões açodados pela procela do Século. Não entendem que, no instante em que a Igreja começar a “revisar” matéria teológica que seja, deixa de existir qualquer razão para alguém acreditar na Igreja Católica, uma vez que cessa de haver qualquer garantia de que a nova doutrina não vá também ser alterada na semana que vem.

Mas – ó, surpresa…! – ainda não foi dessa vez que a Igreja de Cristo prevaricou. O texto de Unisinos começa dizendo que o Papa Francisco «aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”». A alegação é simplesmente disparatada; quase tão incrível quanto aquela outra, evidentemente falsa, que circulou há um ano e onde era dito, na maior sem-cerimônia, que o Papa dissera que não há fogo no Inferno e Adão e Eva não são reais.

E, hoje, existe internet…! Com cinco minutos de Google qualquer pessoa consegue acessar, no site do Vaticano, o discurso do Papa aos novos cardeais. A homilia do Consistório (à qual cheguei primeiro), do dia 14 de fevereiro, não diz nada nem remotamente parecido com o que o Juan está falando. Achei-o no dia seguinte, na Santa Missa com os novos cardeais, celebrada pelo Papa aos 15 de fevereiro. Lá pelas tantas, o Papa Francisco dispara:

O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» essenciais da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).

É difícil saber até mesmo por onde começar. Em primeiro lugar, a palavra “Inferno” não consta nem no período e nem em nenhuma outra parte da homilia. Na passagem, aliás, o Papa fala – muito claramente – de coisas concretas como o perdão concedido àquelas pessoas que o pedem arrependidas, não havendo esforço hermenêutico possível que o possa colocar, nesta passagem, fazendo digressões escatológicas sobre os Novíssimos. Em uma palavra, o Papa está dizendo que a Igreja perdoa os que Lhe pedem perdão, e não que o Inferno não é eterno. Sobre «derramar a misericórdia de Deus», a propósito, o Papa faz questão de dizer, na imediata sequência da frase, que isso se faz «sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero». Ou seja, a Igreja perdoa as pessoas que – partícula que introduz oração subordinada adjetiva restritiva – pedem a misericórdia de Deus com coração sincero, e não “todas as pessoas” e nem “em todas as circunstâncias”. O tema não tem nada a ver com o inferno ser eterno ou temporário, evidentemente não tem, e é preciso muita estreiteza intelectual ou deformidade de caráter para interpretar dessa maneira ou assim divulgar. Sim, há quem negue a eternidade do inferno; mas esses são os hereges de todos os séculos, e não o Papa Francisco.

E o texto é ainda repleto de inverdades grosseiras, mas tão grosseiras que parecem saídas da pena de um prosélito irreligioso carente de níveis mínimos de erudição. Por exemplo, a seguinte frase é digna de um lunático:

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno.

Um relincho desses só pode ter sido escrito por alguém que nunca ouviu falar em uns livros chamados Evangelhos. Porque qualquer pessoa que tivesse alguma vez na vida se preocupado em abrir as Escrituras Sagradas encontraria, lá, entre outras, a seguinte sentença peremptória capaz de pôr fim à celeuma:

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. (São Mateus 25, 41)

Fogo eterno. Na Vulgata – cujos termos a ascendência latina do nosso português não nos permite compreender errado -, in ignem æternum. Ora, se o próprio Cristo, nos livros tidos como sagrados pelos cristãos, disse, com todas as letras possíveis, que o fogo ao qual estavam destinados o demônio e seus anjos era eterno, como pode ser possível que a Igreja nunca tenha defendido até o século III aquilo que é ipsissima verba Christi?

Ao contrário do que o lenga-lenga do autor do texto leva o leitor incauto a acreditar, por conseguinte, o Inferno é sim eterno, e é nesses moldes que a Igreja sempre o entendeu: dos primeiros cristãos ao Papa Francisco inclusive. Qualquer um pode dizer o contrário disso, é verdade. Mas querer arregimentar em favor do seu devaneio o Papa Francisco ou a Igreja Primitiva, aí não! Aí já é cretinice sem a menor correspondência com a realidade – e que, portanto, urge desmascarar.

Siamo tutti conigli

conigli

Certas verdades são bastante óbvias para serem problematizadas. É bastante evidente que homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, únicos seres no mundo sensível dotados de inteligência e vontade, possuem uma dignidade intrínseca que os coloca a uma distância virtualmente infinita dos animais irracionais – inclusive dos coelhos. É óbvio, portanto, que não são coelhos os seres humanos em geral e nem muitíssimo menos os católicos em particular.

Uma outra coisa que é evidente para além de toda a evidência é que a Igreja Católica possui uma doutrina peculiar e bem conhecida a respeito da contracepção, segundo a qual – na conhecida formulação da Humanae Vitae – é “de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). E à Igreja, Mestra infalível em Fé e Moral, pode-se até acusar de ser pretensiosa; jamais, no entanto, de ser incoerente consigo mesma. Admitindo que a um observador externo seja legítimo perguntar se o ensinamento católico é verdadeiro ou falso, uma sua característica ninguém pode negar: ele é incomodamente constante.

Causou certo frisson a última declaração do Papa Francisco, segundo o qual católicos não devem se reproduzir como coelhos. Ora, trata-se de verdadeira evidência. É lógico que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos”, e sim como filhos de Deus – a quem foi dirigido aquele mandato de “crescei e multiplicai-vos”. Não foi aos coelhos que Deus ordenou encher a terra e a submeter, e sim aos homens! Cumpre, pois, a estes procriar como convém à sua dignidade – que é muito maior, repita-se, do que a dos coelhos.

Ainda, simplesmente não é possível aos católicos reproduzirem-se como os simpáticos leporídeos. Isso porque, como disse Chesterton em certa ocasião, um homem nunca age igual a um animal: ou age de modo muito superior a ele, quando se comporta como homem; ou, então, muito inferior a ele, quando se esquece de sua dignidade e age de maneira irracional, instintiva, animalesca. Os seres humanos, portanto, jamais se reproduzem como animais: caso se esqueçam de que são homens, então agirão de maneira muito mais baixa, vil e degradante do que os pobres coelhos. E uma das formas de se esquecerem de que são homens está, precisamente, na busca irresponsável e egoísta pelo prazer venéreo em si mesmo, que é marca registrada dos dias de hoje. Um homem que viva praticando relações sexuais “casuais” e sem compromisso está agindo muito mais como um animal no cio do que outro, que tenha com a sua esposa um número de filhos maior do que a nossa sociedade decadente julga “conveniente”.

Houve quem pensasse que, com a sua declaração sobre coelhos, o Papa Francisco estivesse a legitimar de algum modo o controle de natalidade. Tal é insustentável por um sem-número de razões. Em primeiro lugar, como disse um santo – recente! – da Igreja, “são criminosas, anti-cristãs e infra-humanas, as teorias que fazem da limitação da natalidade um ideal ou um dever universal ou simplesmente geral” – e o Papa, que já se disse outras vezes “filho da Igreja”, sabe perfeitamente disso.

Em segundo lugar, a doutrina da Igreja a respeito da natalidade encontra-se, por excelência, na citada Humanae Vitae de Paulo VI. E o que já disse o Papa Francisco a respeito do seu predecessor? Em duas ocasiões recentes:

1. No “Encontro das Famílias” praticamente da véspera (sexta, 16 de janeiro): “Num período em que se propunha o problema do crescimento demográfico, [Paulo VI] teve a coragem de defender a abertura à vida na família. (…) Mas ele olhou mais longe: olhou os povos da terra e viu esta ameaça da destruição da família pela falta de filhos. Paulo VI era corajoso, era um bom pastor e avisou as suas ovelhas a propósito dos lobos que chegavam. Que ele, lá do Céu, nos abençoe nesta tarde! O nosso mundo tem necessidade de famílias sãs e fortes para superar estas ameaças. As Filipinas precisam de famílias santas e cheias de amor para proteger a beleza e a verdade da família no plano de Deus e servir de apoio e exemplo para as outras famílias. Toda a ameaça à família é uma ameaça à própria sociedade”.

2. No próprio vôo onde foi feita a declaração “polêmica” dos coelhos (tradução do Fratres, aqui): “O que eu quero dizer sobre Paulo VI é que a verdadeira abertura à vida é condição para o sacramento do matrimônio. Um homem não pode dar o sacramento para a mulher, e a mulher dar para ele, se eles não estão em concordância neste ponto de estarem abertos à vida. […] Mas o que eu queria dizer era que Paulo VI não era muito antiquado, mente fechada. Não, ele era um profeta que com isso nos disse para tomarmos cuidado com o neo-malthusianismo que vem chegando. Era isso o que eu queria dizer”.

Ora, quem é Paulo VI? É o Papa da condenação ao controle de natalidade. O que é “abertura à vida”? É a atitude de um casal receber generosamente os filhos que a Divina Providência julgar por bem lhe confiar. O que é “neo-malthusianismo”? É a doutrina que prega uma superpopulação atual, com a consequente necessidade de reduzirmos as nossas taxas de natalidade. Como é possível, então, que um Papa que louva o campeão da causa católica anti-contracepção, que relembra aos casais que eles devem – sob pena de nulidade matrimonial! – estar dispostos a receber os filhos que Deus lhes enviar, que manda tomar cuidado com a estória de que estamos vivendo em uma superpopulação a nos exigir controle de natalidade – como é possível, em suma, que um homem desses esteja, justo ele!, fazendo coro aos inimigos da Igreja e condescendendo à mentalidade antinatalista que ele próprio, por todos os flancos, se esmera em desconstruir? Que sentido isso faz?

Em terceiro lugar, no seio da própria entrevista concedida no vôo, apenas por duas vezes o Papa Francisco fala em números de filhos:

  • “Conheci uma mulher há alguns meses numa paróquia que estava grávida de sua oitava criança, que tinha tido sete cesárias. Mas ela quer deixar 7 filhos órfãos? Isso é tentar a Deus.”
  • “Eu acho que o número de 3 filhos por família que você mencionou – me faz sofrer – eu acho que é o número que os especialistas dizem ser importante para manter a população “indo”. Três por casal. Quando isso diminuiu, o outro extremo acontece. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que em 2024 não haverá dinheiro para pagar pensionistas por causa da queda na população.”

Ou seja, se existisse algum limite concreto que o Papa estivesse tentando determinar para os católicos – coisa que não há e nem pode haver; mas o imaginemos, para argumentar – tal seria um limite mínimo de três, e não máximo de nada. Ora, isso vai muito longe do que o mundo pagão entende por “responsabilidade” familiar!

Em quarto lugar, por fim, porque há não muito tempo – há menos de um mês – o Papa Francisco dirigiu um discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas. Ora, trata-se de pronunciamento com um objetivo específico e previamente preparado; portanto, a mais mínima honestidade intelectual há de reconhecer ser ele mais fidedigno – para entender o pensamento do Papa a respeito da natalidade católica – do que as sabatinas feitas num voo de retorno após uma viagem de uma semana na Ásia. E, no citado discurso, é possível ler – entre outras coisas – o quanto segue:

  • [O]s filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.
  • A presença das famílias numerosas é uma esperança para a sociedade.
  • Portanto espero, também pensando na baixa taxa de natalidade que desde há tempos se regista na Itália, uma maior atenção da política e dos administradores públicos, a todos os níveis, a fim de dar o apoio previsto a estas famílias. Cada família é célula da sociedade, mas a família numerosa é uma célula mais rica, mais vital, e o Estado tem todo o interesse em investir nela!
  • A este propósito, são João Paulo II escrevia: «As famílias devem crescer na consciência de serem protagonistas da chamada política familiar e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: de outra forma, as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença» (Exort. ap. Familiaris consortio, 44).

Esta é, em suma, a posição de Paulo VI, de S. João Paulo II, de S. Josemaría Escrivá, do Papa Francisco, a respeito do “controle de natalidade”. Esta é a resposta de generosidade que somos chamados a dar ao mundo. Esta é a vida que a Igreja nos chama a viver. E a viveremos, por mais que se levantem contra nós as forças do mundo.

Quanto aos coelhos, que incendiaram a polêmica, há (pelo menos) duas possíveis comparações a respeito deles que é possível fazer. Por um lado, podem simbolizar o sexo irresponsável, animalesco, no cio, fugaz, instintivo: e, neste sentido, é preciso repetir fortemente, com o Papa Francisco, que evidentemente não podemos – ninguém pode! – procriar como coelhos! No entanto, os coelhos também são símbolo universal da fertilidade, de uma prole numerosa, de filhos como rebentos de oliveira ao redor de uma mesa – de uma mesa cheia de crianças. E, neste outro sentido, é preciso ter a coragem de dizer, ousadamente, com os santos, com os Papas, com a Igreja, contra quem quer que seja, che, sì, siamo tutti conigli – somos todos coelhos. Apraza a Deus que o sejamos.

A mídia nunca esteve interessada em transmitir fielmente o pensamento papal

Alguém já disse que a única coisa pior do que uma imprensa hostil ao Papa é uma imprensa que o festeje. Os católicos têm-no percebido ao longo do último pontificado: o Papa Francisco pode dar mostras inequívocas de catolicismo zeloso setenta vezes por dia, que – mesmo assim! – só serão alçadas às manchetes seculares aquelas coisas que forem capazes de incutir, no leitor, uma imagem distorcida da Igreja Católica.

Qualquer mínimo contato com a realidade demonstra isso que estou falando. Hoje mesmo um amigo, não-católico, dizia-me achar que o Papa Francisco estava preparando uma “religião mundial”. Ora, isso não faz nenhum sentido. Não apenas por uma questão de direito (a Igreja Católica, nós o sabemos, é a instituição fundada pelo próprio Cristo para perpetuar a mensagem da Salvação através do tempo, e conta com o auxílio infalível do próprio Deus para desempenhar essa divina missão etc.), mas também por uma questão de fato: o Papa Francisco repete, o tempo todo, que somente Jesus Cristo salva, que somente na Igreja Católica se encontra Jesus Cristo, que é necessário fazer parte da Igreja etc. Provavelmente se pode dizer que ele é o Papa que mais insistentemente tem falado isso nas últimas décadas! À guisa de exemplo, algumas das coisas que anotei aqui no Deus lo Vult! (todas são palavras do próprio Papa Francisco – as referências estão lá):

  1. Março de 2013: «Cristo é o único Salvador do homem todo e de todos os homens. Este anúncio permanece válido hoje como foi no início do Cristianismo».
  2. Abril de 2013: «[S]implesmente é isto que Jesus disse: ‘Eu sou a Porta’, ‘Eu sou o Caminho’ para nos dar a vida. Simplesmente. É uma porta bela, uma porta de amor, é uma porta que não nos engana, não é falsa. Sempre disse a Verdade. Há talvez caminhos mais fáceis, mas são enganosos, não são verdadeiros: são falsos. Somente Jesus é o Caminho».
  3. Setembro de 2013: «[N]ão existe caminho de vida, não existe perdão nem reconciliação fora da mãe Igreja».
  4. Janeiro de 2015: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo».

É de uma eloquência invejável, de uma clareza cristalina: de Bento XVI ou de S. João Paulo II eu não teria uma antologia dessas para apresentar! No entanto, a dar ouvidos à voz do povo, o Papa que vai inventar uma supra-religião amorfa que congrace promiscuamente os mais diferentes credos é… o Papa Francisco! Como é possível tamanha discrepância entre o que o Papa passa os dias dizendo e a percepção que tem dele o não-católico (ou mesmo o católico médio)?

O problema, como eu disse acima, é a mídia. Pior do que falar mal é enaltecer seletivamente. Quando o Papa Francisco repete extra ecclesiam nulla salus de duzentas maneiras distintas, ninguém dá um pio. Quando o Papa fala alguma coisa da qual se possa construir uma interpretação contrária ao Catolicismo, então é esta interpretação que se alardeia aos quatro ventos como se fosse a última declaração infalível de um Pontífice falando ex cathedra. A pior forma de conhecer um Pontificado é o perceber através da mídia anti-católica! É a pior ignorância, porque ela se manifesta travestida de informação fidedigna.

De ontem para hoje, contudo, este relacionamento amoroso fingido (impossível não lembrar os versos de Augusto dos Anjos: cuidado, que «a mão que afaga é a mesma que apedreja»…) entre a imprensa anti-católica e o Papa Francisco parece ter sofrido um duro golpe. Foi no avião que o levava às Filipinas. Referindo-se à liberdade de expressão, o Sumo Pontífice disse que o seu amigo poderia esperar (no vídeo se ouve bem o verbo aspettare) uma bofetada caso falasse mal de sua mãe. No original: «se il dott. Gasbarri, grande amico, mi dice una parolaccia contro la mia mamma, gli arriva un pugno!». Foi o suficiente.

Papa fala bobagem!, disseram daqui; Papa tropeça e diz besteira!, berraram acolá. O Reinaldo, aliás, gravou até um vídeo sobre o assunto. A mesmíssima hipertrofia seletiva que nos acostumamos a ver a mídia fazer nos últimos meses; o mesmo cherry-picking tantas vezes empregado para apresentar ideias estranhas ao Catolicismo como se viessem do Pastor Supremo da Igreja. Dessa vez, contudo, em desfavor da figura do Papa Francisco. Que sirva de lição. Oxalá o imbroglio possa provocar, doravante, uma certa sadia desconfiança da mídia laica, cuja competência para transmitir o pensamento religioso alheio é (para dizer o mínimo) bastante questionável.

O assunto nem merece muito latim. Para mostrar que o Papa – é óbvio! – não estava “justificando” o atentado islâmico, bastaria citá-lo no parágrafo imediatamente anterior à “declaração polêmica”: «non si può uccidere in nome di Dio. Questa è una aberrazione. Uccidere in nome di Dio è un’aberrazione». “Não se pode matar em nome de Deus. Isto é uma aberração. Matar em nome de Deus é uma aberração” – do jeito enfático que lhe é peculiar. Sinceramente, pode haver alguma dúvida?

No entanto – e à semelhança do que é feito com as pregações pontifícias ostensivamente católicas que eu listei mais acima -, quem liga? A mídia nunca esteve interessada em transmitir fielmente o pensamento papal. O seu modus operandi é o de pinçar algumas frases soltas e lhes dar o primeiro sentido estapafúrdio que lhe vier à cabeça: há anos é assim. Se agora isso é feito de maneira a “azedar” as relações midiáticas com o Papa Francisco, louvado seja Deus!, tanto melhor. Tem feito muito mal à Igreja a imprensa que enaltece o Papa. Parece que estávamos precisando, de novo, de uma mídia que o denegrisse.

A terrível e sangrenta polêmica sobre se os animais vão ao Céu

O Diário de Pernambuco publicou recentemente uma matéria sob a manchete «Cães e gatos podem ir ao céu? Frase do Papa Francisco reabre discussão»; lê-la é uma daquelas experiências que nos dão alguma dimensão de o quanto o homem moderno está perdido, sem fazer a mais remota idéia daquilo do que fala.

O nonsense perpassa a reportagem inteira. Logo no subtítulo, é possível se ler que o «[t]ema é controverso na Igreja Católica, com opiniões contrárias e a favor». Ora, isso é um completo disparate: não há e nem pode haver controvérsia alguma com relação a isso, que envolve aspectos tão básicos do Cristianismo  que qualquer conhecimento mínimo seu revela, de maneira cabal e evidente, o quanto a discussão toda é embaraçosamente estapafúrdia e sem lógica.

“Céu”, no sentido estrito, é o estado de amizade definitiva com Deus do qual gozam os Bem-Aventurados. Amizade, na medida que envolve uma relação entre duas pessoas, pressupõe e exige uma natureza racional: dotada de inteligência e vontade, capaz de conhecer o outro e querê-lo. Não tem lógica absolutamente nenhuma perguntar-se, por exemplo, se uma pedra ou uma árvore pode “gozar da amizade de Deus” (!): tais seres não possuem a natureza necessária ao estabelecimento de uma relação interpessoal – e, por conseguinte, nem muito menos podem “ir ao Céu”, que é a realidade relacional por excelência.

Os únicos seres capazes do Céu são, portanto, por definição de «Céu», aqueles que possuam natureza racional: que sejam dotados de inteligência e de vontade. A única possibilidade, assim, de “animais irem ao Céu”, para que essa pergunta fizesse algum sentido, seria se os animais fossem seres espirituais, capazes de estabelecer uma relação pessoal com os seres externos a eles. E, embora haja de fato quem queira atribuir inteligência a – e.g. – golfinhos, o fato totalmente indiscutível é que, no âmbito da filosofia católica, semelhante hipótese não foi jamais aventada. Nenhum santo, Papa ou mesmo teólogo católico afirmou, nunca, que os animais possuíssem alma racional. O tema não é controverso: é ponto pacífico mesmo entre as mais distintas correntes heterodoxas que a História viu surgirem em vinte séculos de Cristianismo. Ninguém, no Oriente ou no Ocidente, na antiguidade ou no mundo contemporâneo, entre os protestantes ou os ortodoxos orientais, ninguém jamais pretendeu que os animais possuíssem alma como a do homem!

Fiz questão de destacar alma racional e como a do homem acima porque (e isso é também ponto pacífico na filosofia católica) todos os seres vivos possuem alma. As pedras, por exemplo, são seres inanimados; mas as plantas possuem alma vegetativa, os animais, sensitiva, e, o homem, intelectiva (também dita racional, ou espiritual). Isso é outra coisa sobre a qual ninguém discute; confira-se a Summa, I-a Pars, q.78. Não é, portanto, verdade que o «Papa João Paulo II causou frisson em 1990 ao dizer que os animais possuíam alma», como afirmou o Diário de Pernambuco: quem disse isso foi Santo Tomás na Idade Média, repetindo o que Aristóteles já dissera na Antiguidade Clássica, e tal jamais provocou “frisson” algum – porque é óbvio!

São, portanto, três coisas bastantes simples, fáceis de entender e sobre as quais não há nem nunca houve controvérsia alguma na Igreja:

  • todos os seres vivos – as plantas e os animais inclusive – possuem “alma”;
  • apenas os seres humanos possuem alma racional;
  • “pecado”, “salvação” e “Céu” são realidades somente aplicáveis aos seres racionais.

A conclusão, evidente, é que não existe sentido nenhum em se perguntar se os cães e gatos podem “ir ao céu”, e nem muito menos em rematar uma matéria nonsense sobre o assunto afirmando que «[o] Papa Francisco está escrevendo uma encíclica sobre questão (sic) ambientais, mas não se sabe se ele vai tocar no assunto». Ora, não há um “assunto” aqui para ser tocado. Ler uma coisa dessas dá vergonha.

E o pior é que haveria espaço para se escrever alguma coisa lógica sobre o tema. Por exemplo, “Paraíso” é uma expressão multívoca, que designa tanto o estado de visão beatífica das almas que morrem na amizade de Deus quanto o próprio mundo material criado que se há de transformar após o Juízo Final: os «novos céus e nova terra» de que fala o Apocalipse. Sobre estes, ensina o Catecismo (cf. até o parágrafo 1060):

1046. Quanto ao cosmos, a Revelação afirma a profunda comunidade de destino entre o mundo material e o homem:

Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus […] com a esperança de que as mesmas criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza […]. Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente, esperando a adopção filial e a libertação do nosso corpo» (Rm 8, 19-23).

1047. Assim, pois, também o universo visível está destinado a ser transformado, «a fim de que o próprio mundo, restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço dos justos», participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado.

Algumas perguntas poderiam ser colocadas aqui: como será esse cosmos «restaurado no seu estado primitivo»? De que maneira se dará essa transformação do «universo visível»? De modo mais específico: o quê, exatamente, haverá nos «novos céus e nova terra»? Árvores? Plantas? Rios e cachoeiras? Animais…?

Note-se que a pergunta sobre se haverá animais após a Ressurreição da Carne é completamente diferente da primeira, se os «cães e gatos podem ir ao céu»! Nesta, eles seriam sujeitos da Redenção, o que é um completo absurdo e nonsense; naquela, pergunta-se qual o papel do mundo visível (incluídos aí os animais, mas também as plantas e o mundo inorgânico) no mundo futuro que Deus tem planejado para os que O amam. E, não, perguntar se ainda haverá praias e montanhas após o Juízo Final não é o mesmo que perguntar se as montanhas e praias “vão ao Céu” quando deixam de existir. Ser incapaz de separar uma coisa da outra não é senão um sinal de que não se sabe (mais) o que é o homem, o que o mundo, o que é o Paraíso – e, mesmo assim, tem-se a pretensão de informar os outros sobre o assunto.