[OFF] Eu, com câncer (X): Eu já cheguei até aqui

A maior parte dos meus leitores já sabe que eu tive a honra de passar o último Tríduo Santo em tratamento de Quimioterapia. Na tarde da Quinta-Feira eu estava na clínica hematológica, de onde saí ao cair da noite; pude, assim, passar os últimos dias da Semana Santa sob os efeitos da medicação contra o câncer.

A melhor Quaresma da minha vida – iniciada com uma QT no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, encerrada com outra QT na Quinta-Feira Santa… – chegava assim ao seu término. Tenho medo de não a ter aproveitado tanto quanto poderia; que Deus tenha misericórdia das minhas muitas limitações e fraquezas. Mas sou ao mesmo tempo grato e confiante pelo tempo que me foi concedido. Não é sempre que nos vêm ventos favoráveis à santificação e a penitência; quando eles nos vêm, é preciso pois aproveitá-los.

Será que os aproveitei bem…? É difícil se furtar ao exame de consciência. Tenho aquele problema (sobre o qual já devo ter falado aqui) de, às vezes, não saber ao certo se estou sendo muito rigoroso ou muito condescendente comigo mesmo. Há decerto muito espaço entre o escrúpulo e a lassidão; mas, em se tratando da nossa vida espiritual, às vezes parece que esse espaço é mínimo e muito difícil de nele se equilibrar! Ó almas que se dilaceram entre o reclamar muito e o aceitar demais, eu vos entendo. Isso não é um problema exclusivamente espiritual. Apenas adquire contornos mais vívidos quando é encarado sob o prisma da nossa salvação ou danação eterna.

Quais as notícias que tenho para dar? Em dezembro, a minha hematologista prescreveu-me um tratamento composto de seis ciclos de quimioterapia (R-CHOP). E na quinta-feira passada eu tomei a sexta dose. Cheguei até aqui; graças ao bom Deus, eu cheguei até aqui. E cheguei muito bem: não tive nenhuma doença oportunista ao longo desses quatro meses em que estou em tratamento, a minha imunidade somente uma vez baixou para níveis preocupantes, o meu hemograma sempre esteve bom, a minha alimentação, idem, meus rins mantiveram-se funcionando. O maior contratempo foi mesmo a trombose que sigo tratando. Já é tempo de se perguntar: e agora?

E agora… vamos precisar ver. Na próxima semana farei outra tomografia com contraste do tórax e do abdômen. A partir dela verei a minha ascite, o meu derrame pleural e os meus linfonodos; se isso ainda existe e em que medida. Com base nisso é que será refeito o meu prognóstico e serão determinados os próximos passos.

Quais as possibilidades? Na mais otimista, não tenho mais nada. Sim, é possível. Se isso acontecer, entro na fase de manutenção (com não sei quantas doses de Rituximab para prevenir a recidiva), e depois é só monitorar pelos próximos anos. E aí, com um pouco de sorte, eu termino a segunda graduação em 2020 com a mesma expectativa de vida que possuía quando me formei pela primeira vez. É o que todos esperamos.

Mas pode ser, ao contrário, que ainda haja alguma coisa. Aí tudo se complica e tudo depende. Então eu posso tomar mais dois ciclos de QT (completando oito, ao invés dos seis originalmente previstos). Ou posso iniciar um outro ciclo de quimioterapia, com seis ou oito ciclos (ou outro número qualquer, sei lá). Posso tomar o mesmo R-CHOP ou iniciar outro protocolo. Ou qualquer outra coisa. Tudo isso é também possível.

O que será, sabe-o Deus. De qualquer modo, eu já cheguei até aqui. O futuro ainda é incerto; mas qual o futuro que se pode dizer “certo” nessa vida? Volto a agradecer a todos os que me acompanham e perguntam notícias, que me dedicam as suas orações e a sua torcida, a todos enfim os que estão caminhando comigo nesses últimos meses com muito mais dedicação e amor do que eu mereço: e peço que fiquem comigo ainda mais um pouco! Keep praying, que ainda preciso de orações. Foram alcançadas, sem dúvidas, vitórias espetaculares nessa minha luta; recebi, indiscutivelmente, graças extraordinárias durante esse tempo. Mas, agora como há quatro meses, ainda sou um pecador miserável que suplica a caridade de todos vocês.

Cheguei aqui: Deo Gratias! Vamos em frente. Os próximos passos, não sei ainda quais serão. Mas sei que quero caminhá-los como aprouver ao Bom Deus. De fronte erguida, como tenho feito até aqui. Aliás, melhor do que tenho feito até aqui. Sim, é o que quero. É o mínimo que posso fazer.

[OFF] Eu, com câncer (IX): as últimas boas notícias

Tive na última quinta-feira uma agradável visita à minha pneumologista. Fazia quase um mês que eu não batia nenhum raio-x do pulmão e, portanto, que eu não acompanhava clinicamente a evolução do meu querido derrame pleural. Já estava em tempo de fazer um check-up.

É incrível a capacidade humana de adaptação: a gente se acostuma. Tenho um cateter subcutâneo no tórax, do lado direito, que me impede, por exemplo, de deitar de bruços. Desde há muito apenas durmo de papo para cima ou no máximo de lado, e sinceramente não me faz mais falta. Poder dormir já é motivo suficiente para se dar graças a Deus. O resto é luxo.

Tinha que fazer uma análise mais clínica dos meus pulmões, eu dizia. Do ponto de vista dos sintomas, eu não tinha do que me queixar já há algumas semanas. Não respiro como atleta e ainda não posso voltar a fazer atividades físicas, mas é claro que eu percebia conseguir encher os pulmões e respirar fundo, e – principalmente – percebia que não estava mais sufocando. Não precisei mais voltar às pressas e dispnéico à emergência do hospital. Se me era difícil dizer se estava de fato melhorando, eu tinha pelo menos a certeza de que, piorando, não estava.

Abandonara já há alguns dias o travesseiro elevado, já contei aqui. Dormia na horizontal. Com o passar dos dias, a posição não se me foi tornando incômoda, como soía acontecer no início do tratamento… em suma, fui a uma consulta na semana passada, no décimo-quinto dia do ciclo de QT, e não tinha queixas a fazer à doutora. Ela pediu a radiografia. E ficou muito feliz quando viu o resultado.

O líquido pleural acumulado reduzira significativamente. Ela pôs lado-a-lado a imagem atual com uma que eu tirara numa das vezes em que cheguei pior no hospital, e o contraste entre ambas era impressionante. Viam-se enfim pulmões, pulmões límpidos, cheios, senhores do seu espaço. Após olhar para a radiografia e me auscultar, sentenciou: para ela, clinicamente, não havia mais derrame do lado direito, somente à esquerda. E mesmo o da esquerda estava muito menor do que eu já tivera em qualquer um dos lados.

Foi decerto uma alegria. Os médicos, já contei aqui, haviam dito unanimemente, ainda em dezembro, que o meu derrame pleural era decorrente do linfoma, por conta dos gânglios aumentados da região do mediastino, e que neste caso ele cederia rapidamente à medicação quimioterápica. Nada aconteceu nos primeiros ciclos. Já no terceiro o derrame parara de piorar, eu percebera, mas foi necessário aguardar a quarta aplicação de QT para que se pudesse observar uma verdadeira melhora. Mas graças a Deus ela chegou.

Ainda conversamos um pouco. Minha médica contou-me de um seu paciente, um rapaz, André de cujo sobrenome esqueci, com o qual ela estava preocupada. André tem alguma doença pulmonar, tuberculose ou pneumonia, e estava simultaneamente com uma disfunção hepática que a preocupara. Ele tinha demorado para lhe levar os exames, o que agravara sua situação. Eu entendo André; se eu não tivesse ficado internado em dezembro, provavelmente não faria os exames todos com o denodo que os meus médicos me devotaram durante o tempo que passei no hospital. A gente não quer estar doente, e tende a não acreditar que está doente; é comum fazer pouco caso da própria saúde…

Sandra – é o nome da minha pneumologista – pediu orações pelo André, pedido que eu refaço aqui aos que me lêem e acompanham minha caminhada. Ficar doente é ter os olhos abertos a uma realidade que antes ignorávamos; quando a gente passa a freqüentar muito hospitais, percebemos que há mais doentes no mundo do que gostaríamos. Que a Santíssima Virgem, Aquela que é Salus Infirmorum, não cesse jamais de olhar por nós.

Domingo último, o meu hemograma revelou que a minha imunidade enfim baixara. Ele atravessou incólume o terceiro ciclo de QT, e resistiu bravamente até quase aos umbrais do quinto; mas terminou cedendo. Três mil e poucos leucócitos, um pouco abaixo do limite inferior de 3500 que se costuma tomar por referência. Comecei a tomar o Granulokine; amanhã tomo a terceira e última dose, e no dia seguinte refaço os exames. A julgar pela minha experiência anterior com a droga, na quinta-feira a contagem de glóbulos brancos estará exuberante.

E precisa estar. Quinta-feira é a minha quinta QT. Só faltam mais duas; o sistema imunológico precisa suportar ainda mais um pouco. Já cheguei até aqui, e repito o que sempre digo às pessoas com quem me encontro: keep praying! Continuai rezando! Afinal, o que seria de nós – falou-me dia desses uma amiga a quem eu contava da importância das orações que eu recebia – se não tivéssemos quem por nós rezasse? Eu não passo de um pecador miserável e ingrato. A minha sorte é que a caridade alheia – a vossa caridade! – vem suprir as lacunas das minhas misérias e fraquezas. Que o bom Deus vos recompense abundantemente; não cesso de o dizer, porque a minha dívida para convosco só aumenta a cada dia.

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Quinto ciclo! Mais um pouco de quimioterápicos, mais uma dose de náuseas e dores de cabeça, mais uma rodada de remédios amargos, de punções e curativos, de tontura e fraqueza… mais um pouco de fel a sorver até o fim. Que eu entorne o cálice com o rosto sereno, Senhor: por um pouco menos de amargura no mundo. E em breve o mel nunca terá sido tão doce aos meus lábios experimentados no amargo. E em breve, muito em breve, o mundo será de uma beleza arrebatadora. E o sorriso meio escondido que se desenha em meus lábios hoje já anuncia o que está pra chegar. Em breve!

[OFF] Eu, com câncer (VII): Ultrapassando a metade do caminho

Faz quase um mês do meu último off-topic sobre meu linfoma. Dizem que as notícias ruins chegam a galope solto, e há uma certa verdade na sabedoria popular: estas últimas semanas foram as que eu passei de maneira mais tranquila. A falta de notícias aqui no Deus lo Vult! era reflexo da relativa calmaria na qual me encontrava nesses dias.

Fiz meu terceiro ciclo de QT no dia 10 de fevereiro; na véspera tivera alta do hospital para tomar Clexane em casa, uma vez que meu INR ainda não estava estabilizado e eu precisava fazer a quimio na clínica (que não era no hospital). Os dias seguintes foram um misto de tensão e de agradáveis surpresas.

Eu já percebera que os dias imediatamente após as sessões de quimioterapia eram os melhores. Não sei se por conta dos corticóides que eu sigo tomando por uma semana ou se por conta do efeito das próprias drogas recém-injetadas no corpo, o fato é que os incômodos próprios da QT – os enjôos, as indisposições, as dores de cabeça – são leves e duram pouco. Com dois ou três dias eu já me sinto novo e revigorado.

Em contrapartida, o período entre quimios é o mais tenso. Nos dois primeiros ciclos, era exatamente aí – lá pelo décimo, décimo-quinto dia em diante – que o bem-estar começava a ceder espaço às crises. Principalmente a dispnéia, a temida e angustiante dispnéia provocada pelo enchimento dos pulmões. Eu nunca soube ao certo se eles esvaziavam para depois voltar a encher ou se eu adquiria alguma capacidade de respirar melhor mesmo com poucos pulmões nos primeiros dias pós-quimio, capacidade que era paulatinamente perdida com o avançar dos dias. Não sei a explicação. Sei que, sempre, infalivelmente, eu me sentia bem logo depois de um ciclo de QT e mal imediatamente antes do ciclo seguinte. E era este o meu temor.

Graças a Deus, os meus temores se mostraram infundados. Ontem tomei a quarta dose da QT; o período entre ela e a anterior foi até um pouco estendido por conta do Carnaval no meio do caminho; e, no entanto, em nenhum momento ao longo das últimas semanas a minha respiração me incomodou como até então vinha fazendo, a ponto de me exigir internamentos de urgência com uso de ventilação não-invasiva para que eu fugisse ao sufocamento.

Passei as últimas quatro semanas em casa, o que é um feito inédito desde que pus pela primeira vez os pés no hospital em meados de dezembro. Na última segunda-feira de fevereiro voltei à minha querida pneumologista para uma avaliação; o raio-x mostrou os pulmões cheios ainda até a metade, mas melhores do que a última chapa que eu possuía no meu histórico. De lá para cá eles certamente não pioraram; não cheguei a respirar pior do que naquela semana anterior ao Carnaval. E já lá eu ainda respirava.

Confessei-lhe (à minha médica) que eu morria de medo de que o derrame pleural aumentasse de novo, que eu ficava em casa o tempo inteiro repetindo os exercícios de fisioterapia (respirar em dois/três tempos e soltar, forçando a tosse ou não, prendendo a respiração ou não, etc.) que eu decorara enquanto estive internado. Ela ficou muito animada com os resultados, e mais ainda eu: o fato é que pela primeira vez eu não voltava a sufocar sozinho com o passar do tempo. E, como eu disse ainda antes do terceiro ciclo, com a respiração do jeito que estava eu suportava os meses que me separavam do fim do tratamento.

Passei em casa as últimas semanas, sem precisar voltar ao hospital, dormindo a cada noite com medo de acordar de madrugada sonhando afogar-me – mas sendo a cada dia surpreendido pela manhã a me despertar suavemente. Tive um único “susto” que me motivou uma ida à emergência do hospital: foi um pescoço dolorido, que imaginei ser [outr]a trombose, mas o vascular do plantão rapidamente me tranquilizou e me disse que era certamente algo muscular, para o qual me receitou analgésicos (que eu não tomei), e que melhorou por completo quando voltei a dormir na horizontal, abrindo mão do travesseiro em forma de triângulo no qual estava dormindo desde há muito tempo para ajudar a minha respiração. Sim, pus de lado até o decúbito elevado e, mesmo assim, consigo respirar à noite tranquilamente. É extraordinário.

Minha pneumologista autorizou-me a voltar aos poucos ao trabalho, coisa que fiz na semana passada e que me fez muito bem. Rever as pessoas, conversar, movimentar-me com mais freqüência (disse a alguém que uma única ida da minha sala ao banheiro me fazia caminhar mais do que um dia inteiro que eu passasse trancado no apartamento)… tudo isso ajudou bastante na minha convalescença, tenho certeza. Se ao final do dia eu às vezes estava cansado e um pouco ofegante, após descansar eu me sentia respirando até melhor. Não sou um atleta, mas consigo de novo levar uma vida relativamente normal. Louvado seja Deus.

Não sei se as minhas cruzes estão se tornando menores ou se estou simplesmente me habituando melhor a elas; sei que escrevo essas linhas melhor do que escrevi algumas passadas. Já se passou mais da metade do tratamento inicialmente definido; já fiz quatro dos seis ciclos que compunham o prognóstico inicial. Agradeço a Deus por me ter sustentado até aqui; sustentar-me-á, tenho certeza, os passos que ainda faltam. Não sei ao certo quais serão, mas sei que os quero, da forma como Deus os tiver reservado para mim. E neste caminho volto a agradecer e a continuar pedindo as orações dos amigos, tantas, que estão sendo de tamanha importância para mim ao longo dessa fase da minha vida. Não me canso de repetir isso, porque é verdade. Não existe nenhuma outra coisa que possa explicar a enorme distância entre a minha relativa serenidade diante desta situação e a vergonhosa pequenez das minhas virtudes particulares.

Concluí ontem o quarto ciclo de QT, como já disse; ultrapassei já a metade do caminho. Espero que até então ele tenha servido à glória de Deus e à minha santificação particular; rezo para que daqui em diante os meus dias possam santificar-me e glorificar a Deus ainda mais. Porque o que pior poderia ficar de tudo isso seria o desperdício do tempo favorável, o sofrimento vazio, as cruzes jogadas foras. Se é para demorar-se um pouco em prantos neste Vale de Lágrimas, que isso ao menos seja proveitoso para os nossos companheiros de infortúnio. Outra coisa eu nunca quis, e não vai ser agora que passarei a querer.

Only two more to go. Vamos em frente. Com a graça de Deus, vamos em frente. De cabeça erguida, e com um sorriso nos lábios. Tenho mais do que mereço. Na verdade, sempre estive melhor do que eu merecia. Obrigado, Senhor.

[OFF] Eu, com câncer (VI): o apoio dos amigos

As Escrituras Sagradas dizem que quem tem um amigo fiel, encontrou um tesouro. Como comentei algures, a expressão é exata: trata-se de um tesouro encontrado, não de uma coisa que você conquiste ou mereça. Um amigo é uma graça no sentido mais literal da palavra: um presente que lhe é concedido, uma dádiva que você recebe, um favor que lhe é feito e pelo qual você não pode senão sentir-se grato.

Eu não mereço os amigos que eu tenho e nem tenho palavras para expressar a minha gratidão pelo que eles fizeram e continuam fazendo por mim. A foto abaixo foi tirada no hospital, sábado último, em uma visita inesperada e emocionante que recebi.

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Como disse um deles, “cada um raspou o que podia entre o que a esposa/noiva/namorada deixou e a atividade profissional permitia”. Cabelo, barba e bigode. Simplesmente se juntaram na casa de um deles, rabiscaram frases de apoio num fundo de papelão e deram fim aos seus cabelos e demais pelos faciais. Com o gesto de amizade, abriram mão de mais cabelos do que a quimioterapia me tirou. Registraram tudo, claro. Depois eu pude ver as fotos, algumas das quais (as que encontrei no Facebook) vão abaixo. Vejam que coisa extraordinária. Eu não fazia a menor idéia de nada disso.

Volto a dizer que não tenho palavras para expressar o quanto fiquei tocado pelo gesto de carinho e consideração. Vejo algumas pessoas comentarem sobre o quanto estão aprendendo comigo ao acompanhar essa minha saga ou como é admirável a minha postura diante do câncer e coisas afins. Honestamente, não me vejo fazendo nada a não ser a minha obrigação. Tenho até medo de estar – Deus me livre! – desperdiçando este tempo favorável que o Bom Deus me concedeu para a minha santificação e para o bem de toda a Igreja, e este é um tema recorrente em minhas orações.

Nada há de heróico em mim ou em minhas atitudes. Os que vêem as postagens do Deus lo Vult! ou as atualizações de status do Facebook, na verdade, estão vendo somente uma parte da história; como canta a Florbela, “as lágrimas que choro, branca e calma, / ninguém as vê brotar de dentro d’alma! / Ninguém as vê cair dentro de mim!”. Ou, como diz o Erasmo Carlos, naqueles versos pelos quais sempre tive tanta afeição: “sempre me dizem, quando fico sério: / ‘ele é um homem e entende tudo’. / Por dentro, com a alma atarantada, / sou uma criança, não entendo nada”.

Sim, na verdade eu não passo de um jovem mimado e cheio de direitos como tantos que existem por aí. Possivelmente até pior do que muitos que existem por aí. É claro que eu não tenho condição alguma de enfrentar uma doença grave como um câncer e nem muitíssimo menos de ser exemplo para ninguém nessa situação. Mas existe um testemunho que eu posso oferecer:

O valor dos amigos. Se algumas vezes eu pareço estar de pé, é porque sou sustentado por um exército; se vez por outra pareço elevar-me alto, é porque para o alto sou lançado por uma multidão. Se algo merece ser conhecido nessa história toda, é a importância das orações de intercessão. Caso um dia alguém duvide da eficácia das orações, que ponha os olhos sobre essas linhas e dê um pouco de crédito a quem é um testemunho vivo dos frutos que rezando se podem arrancar a Deus. E caso alguém se admire com alguma coisa que encontrar por aqui, que saiba serem suas orações diretamente responsáveis por minhas atitudes diante da minha doença. A todos os que me acompanham: que Deus lhes recompense! Só Ele sabe o bem que vocês me têm feito.

Eu não mereço os amigos que tenho, como eu disse acima. E tenho certeza de que apenas sou o que sou por conta deles; porque eles não desistem de mim, a despeito de minhas muitas fraquezas, e porque têm a caridade de pedir a Deus em meu favor, mesmo quando eu próprio disso me esqueço. Já disse que tenho uma dívida de gratidão impagável (e que só faz aumentar…) para com as pessoas que vêm rezando por mim desde dezembro, não somente os que rasparam a cabeça em solidariedade a mim como também a multidão invisível e desconhecida de pessoas que por acaso ouvem a minha história e se dignam oferecer uma Ave-Maria em favor de um enfermo desconhecido. Se existe alguma força em mim, é essa. Se existe alguma lição a ser aprendida aqui, é a do valor da oração do próximo. Deus não deixa de superar as nossas expectativas.

Meus queridos amigos, ex imo cordemuito obrigado! Continuem rezando. Escrevo já de casa. Terminei hoje a terceira sessão de quimioterapia, e estou radiante. Meio caminho andado. A vida é sempre surpreendente. As coisas pioram apenas para poder melhorar. Graças a Deus eu já vivi um pouco, e já aprendi a antever o desabrochar da primavera nas folhas secas que o outono lança ao chão.

[OFF] Eu, com câncer (V): contratempos e imprevistos

Faz mais de uma semana que não escrevo nada. Há uma razão: faz mais de uma semana que estou internado no hospital, contra todos os prognósticos que eu tinha para esses dias. Dante já dissera com muita propriedade «ché saetta previsa vien più lenta» (Paradiso XVII) e, em contrapartida, as flechadas que nos chegam de supetão, pelas costas, são as piores. Mas a vida é feita de batalhas e lutar significa sobreviver às saraivadas que nos chegam de todos os lados, é claro. Se fosse de outra maneira, não poderíamos pretender estar lutando a sério.

No dia 26 de janeiro último, domingo, de alta recebida na noite da véspera, eu escrevi um relato aqui no Deus lo Vult! sobre a semana que passara. No dia 27 de janeiro, segunda-feira, pela manhã, eu voltava pra emergência do hospital. Meu braço direito doía bastante e estava inchado. O cirurgião vascular da emergência cardiológica nem precisou do exame para diagnosticar: “é uma trombose venosa profunda”. O ultrassom confirmou em seguida. Precisei me internar mais uma vez.

Inacreditável: uma trombose! Não tinha – ao menos não diretamente – a ver com o câncer ou com a quimioterapia, não tinha a ver com os meus problemas respiratórios que me haviam deixado quase uma semana no hospital, não tinha a ver com nada. Simplesmente acontece: meu corpo não reagiu bem ao port-a-cath que eu implantara para a QT. Um corpo estranho no organismo, mais o próprio câncer, mais tratamento quimioterápico… eram três fatores de risco, me disse o médico. Acontece.

Anticoagulantes de emergência – TVP causa embolia pulmonar, eu sei – e internamento para estragar a capacidade do meu sangue de coagular a contento. Há uma índice que mede essas coisas: INR, International Normalized Ratio, cujo valor padrão é – como o próprio nome diz – 1. O meu precisa ficar entre 2 e 3 para que seja seguro me deixar somente à base dos anticoagulantes orais: antes disso, uma injeçãozinha na barriga a cada 12 horas. Antes disso, cuidados hospitalares. Antes disso, fico ainda um pouco por aqui.

Aproveitei a estadia no hospital para verificar os pulmões. Cheios ambos, o direito mais do que o esquerdo. O raio-x, aliás, estava muito parecido com o que tirei no dia em que fiz a segunda sessão de quimioterapia. Estremeço. Não sei dizer se eles voltaram a encher ou se simplesmente não diminuíram: não bati uma radiografia torácica na alta da semana passada e, portanto, não sei dizer exatamente em quais condições meus pulmões saíram do hospital. De uma forma ou de outra, parece-me indiscutível que este derrame pleural não está melhorando, ou só o está fazendo a conta-gotas.

Volto à máscara do Jason: meus pneumologistas estão aproveitando a minha estadia no hospital para tentar fazer o derrame ceder à força de fisioterapia respiratória. A julgar pelas três ou quatro chapas de raio-x que bati em seqüência da semana passada pra cá, não está resolvendo: mas pelo menos o derrame também não está aumentando, e isso talvez já seja motivo mais do que suficiente para que eu dê graças a Deus. Ainda respiro; não tão bem como em situações normais, mas muito melhor do que na semana em que subi às pressas para a Semi-Intensiva. Ainda respiro, e daqui a pouco – menos de uma semana – eu vou receber quimioterapia de novo…

[Um parêntese. Aqui as coisas começam a ficar complicadas. Era esperado que esse derrame começasse a ceder já no primeiro ciclo de QT, no máximo no segundo; estamos a seis dias do terceiro, e ele continua tão forte que a minha pneumologista não hesitou em descrevê-lo como um «derrame pleural bilateral recidivante e não responsivo a QT» num laudo médico em que pede mais fisioterapia.

Meu cirurgião torácico acha que meu caso é cirúrgico: uma decorticação (ou coisa assim) resolveria em definitivo este problema. Acontece que a tal decorticação consiste – grosso modo – em arrancar [um pedaço d]a pleura e, aderindo o pulmão diretamente à parede torácica, destruir a cavidade pleural, impedindo assim (de uma vez por todas, óbvio) o acúmulo de líquido nela. Soa-me mais ou menos como arrancar um dedo fora e depois dizer, com ares de eureka, que com isso ele definitivamente vai deixar de doer.

Não fiquei muito animado com a cirurgia. Sou cioso da minha pleura: por alguma razão Deus há-de a ter colocado lá. Gostaria sinceramente de preservá-la, e por isso estou apostando na fisioterapia respiratória e no combate à doença de base, ainda que isso seja lento e ainda que me obrigue a respirar mal a maior parte do tempo.]

Ontem fiz uma tomografia de controle, para comparar com a que realizei antes de iniciar o tratamento. Não tenho acesso às imagens (e nem sei se saberia interpretá-las), mas pela internet consigo olhar os laudos; a julgar pelas descrições, as coisas parecem ter melhorado. Preciso esperar ainda – é claro – o parecer médico, mas esses resultados preliminares são já animadores. Deo Gratias, e obrigado a todos os que estiveram e ainda estão rezando por mim.

Já estou há mais de uma semana aqui no hospital. O meu braço trombosado melhorou substancialmente: dói muito menos, e já está quase tão fino quanto o outro. A contagem de glóbulos brancos (esqueci de dizer: cheguei aqui com eles quase zerados, tive que ser colocado em isolamento reverso nos primeiros dias) está de novo em níveis normais. O derrame pleural está sob controle. Devo ter alta nos próximos dias.

Quase escrevo “espero não ter que voltar de novo”… Mas aprendi que essa vida de paciente é uma caixinha de surpresas, nem sempre agradáveis. É muito difícil fazer planos mesmo a curto prazo! Só uma coisa não pode faltar: que Deus me conceda sempre a fortaleza necessária para viver esses dias o melhor possível. Como mais de uma pessoa já me disse, é tempo da oração do Horto das Oliveiras. Preciso de humildade para repetir o si possibile est, transeat a me calix iste; e preciso da coragem para acrescentar, sempre, o verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu.

[OFF] Eu, com câncer (III): The road so far…

– Essa tua barba vai cair. Mas depois nasce de novo.

Assim me disse a dra. Rosa, com um sorriso, naquela – parece já tão distante! – noite em que prescreveu minha quimioterapia. A primeira parte da “profecia” já se cumpriu à risca: minha barba e meu cabelo caem aos tufos, enquanto durmo, ao banho, quando lhes passo a mão. Fico feliz de voltar a ser imberbe: o simbolismo do rejuvenescimento é óbvio demais para não ser percebido…

O cabelo que nasce depois, dizem, é um cabelo todo novo; pode inclusive nascer diferente do que era antes, se estava já branco volta a nascer preto, se era liso pode nascer encaracolado, etc. Eu, no entanto, de calvície já avançada antes dos trinta, fico já animado com a mera possibilidade de que ao final do tratamento ele nasça simpliciter. Quem sabe um cabelo novo não vem, anos depois, estabelecer-se no lugar que lhe cabe, sobre a careca antiga? E não consigo deixar de conter um sorriso: quem sabe, ainda, eu não ganho de volta os cachos de anjo que eu tinha quando criança, quando o futuro não cabia num lance de vista e se tinha a vida toda pela frente…?

Amanhã (segunda-feira, 20 de janeiro) é minha segunda sessão de QT. Este primeiro ciclo guardou as suas intercorrências para o final; só na última semana a minha imunidade baixou, os meus cabelos começaram a cair, meus pulmões voltaram a encher.

A minha contagem de leucócitos caiu para 3.310 somente na última segunda-feira. Antes se manteve em queda, mas dentro dos valores de referência. Sinal amarelo: usar máscaras com mais freqüência, reduzir o número de visitas, essas coisas. Mas não tive nada. Trata-se de um número num exame de sangue, que se eu não o tivesse visto nenhum outro sintoma perceptível me avisaria da minha imunodeficiência.

Já quanto aos meus pulmões, estes, sim, eu percebi. A minha respiração cada vez mais curta não deixava margens para dúvidas: eles estavam enchendo de novo. Terror. A quimioterapia, disseram-me, deveria secar os linfonodos do mediastino cuja compressão era responsável pelo acúmulo de líquido linfático na pleura que tanto me incomodava. Não estava funcionando. Eu estava disposto a simplesmente esperar que funcionasse; no entanto, uma angustiante falta de ar no domingo passado (após o “esforço” de caminhar em terreno plano os pouco mais de cinqüenta metros que separam a minha casa da paróquia, que fica no mesmo quarteirão) me convenceram a ir ao hospital.

Lá o raio-x foi implacável: «seios costofrênicos com derrame pleural». Seja lá o que isso for. Mas olho a chapa, e entendo perfeitamente: a ameaçadora mancha branca sobe, dos dois lados, deixando-me menos da metade de cada um dos pulmões. O que significa que eles só se expandem até metade da caixa torácica, quando muito. Discutem entre si pneumologista, hematologista, cirurgião torácico: é melhor drenar antes da quimio, concluem.

Faço a punção, de novo. Dessa vez, dos dois lados. 1,9 l do lado direito, 1,3 l do esquerdo: mais de três litros ao todo, sem contar o (muito!) que ainda foi deixado nas bases. Respiro aliviado, literalmente. Os resultados dos exames confirmam que se trata do mesmíssimo caso da vez anterior. É normal, ainda é cedo: no segundo ciclo da QT é que os efeitos devem começar a ser perceptíveis. Deus, tomara que sim. A barba já começou a cair. A contagem de leucócitos já diminuiu. Já está na hora dos linfonodos começarem a atrofiar.

Implantei um port-a-cath na última sexta-feira. Fica do lado direito do meu peito, logo abaixo da clavícula, sob a pele, e é menos horrendo do que imaginara. Fica um “calombo”, como se fosse um pequeno osso fora do lugar, nada muito grotesco. A micro-cirurgia foi simples e não tive com ela maiores problemas; só as dores normais do pós-operatório, de quando passa a anestesia. Duraram pouco. Ontem já não doía quase nada, hoje já praticamente não dói. Mantenho ainda os curativos até amanhã, e os pontos ficam pelo menos até a próxima sexta-feira. Depois, só o “calombo” e a cicatriz. Ao menos preservo as veias periféricas do braço; ao menos, como todo mundo me disse, as sessões de quimioterapia serão agora mais fáceis e mais seguras.

Do último post para cá eu recebi um sem-número de recomendações sobre como cuidar da minha saúde. Agradeço de coração por todas elas. Li-as todas. Pesquisei sobre todas e, se todas não adotei, foi porque não considero sensato fazer mudanças radicais no meu estilo de vida agora, justamente no meio de um câncer e de um tratamento quimioterápico, sem nem ao menos consultar uma nutricionista. Tenho procurado melhorar a minha alimentação, sem contudo fazer extravagâncias que não são do meu feitio. Hoje como com mais freqüência (lancho entre as refeições), como mais frutas, bebo mais água. Prefiro mel natural ao açúcar (do qual nunca fui muito fã, a propósito), e introduzi gengibre e um probiótico (Kefir) na minha alimentação diária. Estou me dando bem com isso: meu apetite funciona, meu intestino, idem, minhas funções excretoras parecem estar em ordem.

Não tenho ainda autorização e nem condições para fazer exercícios, o que tem me incomodado um pouco. Por enquanto, apenas a fisioterapia respiratória com o Respiron e o esforço de andar da sala ao quarto algumas vezes ao dia, só para fugir do temível “repouso absoluto” que provoca tromboses em quem faz viagens longas de avião. Tenho sobrevivido bem. Como diz a clássica passagem das Escrituras, até aqui tem me ajudado o Senhor. E sei que Ele não há de me faltar.

Amanhã é a minha segunda sessão de quimioterapia. A partir de amanhã, as coisas vão melhorar mais: é mais um passo, another brick in the wall, uma hora a menos da noite escura que não pode durar para sempre. Uma hora a menos…! O arrebol já vem. Há aquela história dos três pedreiros trabalhando juntos, o primeiro dos quais disse estar cimentando um tijolo, o segundo, levantando uma parede e, o terceiro, construindo uma catedral. Eu poderia dizer que amanhã estarei tomando Rituximab ou me tratando de um linfoma. Mas, agora, vou preferir dizer que amanhã estarei fazendo crescer de novo um pouco dos caracóis dos meus cabelos infantis.

[OFF] Eu, com câncer (II): retrospectiva e primeiro ciclo de Quimio

Antes de mais nada, preciso dizer que tenho uma dívida de justiça e de caridade para com todas as pessoas que, nos últimos dias, me enviaram mensagens de ânimo e me asseguraram as suas tão valiosas orações. Foram emails e comentários no blog, mensagens de Facebook e de celular, telefonemas e visitas, tantas coisas, tantas, que estou certíssimo de que, no tocante à generosidade dos que me estimam, eu estou muitíssimo mais bem servido do que mereço. Obrigado, do fundo do coração, a todos e a cada um de vocês. Tenham a certeza de que uma parte dos incômodos dessa etapa da minha vida está e continuará sendo oferecida em retribuição aos que tão generosamente correram em meu favor assim que souberam dos meus infortúnios. Que o Bom Deus, que é rico em misericórdia, possa recompensar-lhes esta (tão grande!) caridade com toda a munificência da qual só Ele é capaz.

Alguém me pediu para que fizesse uma pequena retrospectiva do que me levou ao diagnóstico da doença. Quando cheguei na emergência do hospital, no último dia 14 de dezembro, eu tinha quatro sintomas mas somente uma queixa: dificuldade respiratória, acúmulo de líquido abdominal (ascite), perda de peso e aumento dos gânglios linfáticos (perceptíveis na região das axilas, virilhas, etc.).

A minha única queixa era a dificuldade respiratória. Todos os outros “sintomas” me pareciam explicáveis: eu estava já há alguns meses fazendo exercícios diários e intensivos para perda de peso, nunca tive barriga de tanquinho (e sempre ouvira dizer que gordura abdominal (a minha, praticamente congênita) era a mais complicada de se perder mesmo) e os gânglios, inchados mas completamente indolores, até que eram perceptíveis se procurados, mas nunca me passou pela cabeça esquadrinhar meu corpo à caça deles. Quando o médico começa a anamnese você passa a responder “sim, sim, é mesmo”; antes disso, você simplesmente não imagina. Como já disseram com muita propriedade, câncer é doença “dos outros”. E temos a irritante mania de não nos darmos conta de que, para os outros, “os outros” somos nós.

Uma coisa puxou a outra e o resto da história vocês já sabem: a dispnéia era causada por um derrame pleural bilateral, os derrames concomitantes em diversas partes do corpo (dois lados da pleura, cavidade abdominal, etc.) apontavam para um problema sistêmico, os gânglios hipertrofiados faziam suspeitar de linfoma e a biópsia o confirmou. Depois foi mais uma semana para análise do tipo específico do câncer e, só então, o tratamento pôde ser definido e iniciado. Problemas burocráticos impediram a quimioterapia de iniciar no sábado (como eu disse que seria), então a iniciei no dia seguinte, 29 de dezembro, Domingo, festa da Sagrada Família e meu aniversário de 15 meses de casamento.

chemo

É desagradável, mas suportável. Até eu, “mole como um prato de papa” como já me defini a respeito de procedimentos médicos, munido com as orações dos amigos pelas quais já agradeci acima, pude atravessá-la com relativa tranquilidade. Um pouco febril, assomado por ondas violentas de náuseas, tontura permanente, dor de cabeça constante, uma crise de calafrios: é o que lembro daquelas horas de domingo. Passaram. Se aquele coquetel de drogas fizer pelo menos tanto mal à doença quanto parece fazer ao resto do corpo são, creio que ela está sendo muito bem combatida. E o melhor de tudo é o fantástico efeito do dia seguinte, em tudo análogo àquela anedótica sensação de ter ampliado o espaço doméstico após se livrar da vaca que se passou uma semana criando na sala do apartamento: diante das lembranças das horas da QT, na segunda eu me sentia a pessoa mais bem-disposta do mundo.

Hoje escrevo já de casa, pela primeira vez em casa desde o dia 14 de dezembro. Faz muito tempo, e é interessante como isso nos ensina a valorizar as coisas simples da vida: respirar ar puro depois de semanas de ar condicionado e sentir um pouco de sol no rosto após quinze dias apenas o vislumbrando pelas persianas das janelas, por exemplo. É tudo clichê, eu sei, mas parece que a gente não consegue introjetar direito enquanto esse tipo de coisa não acontece com a gente.

Neste último dia de ano, tenho muito a agradecer. Por estranho que talvez pareça a alguns, agradecer inclusive (e talvez até principalmente) por estas cruzes que me foram enviadas, pelas enfermidades e por todos os atropelos dos últimos dias. É nos sofrimentos que nos sentimos mais amados por Deus, quando nos percebemos com uma capacidade de enfrentá-los que nos é estranha e não pode vir de nós: quando ao (perdão, Senhor!) desespero do primeiro contato com o diagnóstico segue-se, sem razão aparente, a serenidade para os necessários duros passos seguintes. É óbvio que ninguém gosta de sofrimentos; mas o que peço a Deus, antes de que simplesmente me livre deles, é que me conceda o valor de enfrentá-los de pé, de fronte erguida, com galhardia, pela glória d’Ele. É esta a oração cristã, é esta a minha oração, é nisto que peço a Deus que tenha a misericórdia de me sustentar daqui em diante.

As doenças graves têm o salutar efeito de aproximar as pessoas. Falei nos últimos dias com pessoas queridas com as quais há muito tempo não falava; parece que precisamos nos deparar com a consciência da fragilidade da vida para nos libertarmos da síndrome do “Sinal Fechado”. Sou muito grato por isso também.

Por fim, agradeço por estar onde estou agora: com um diagnóstico que, embora desagradável, está longe de ser o pior possível, e com o tratamento já iniciado – ONLY FIVE MORE TO GO! – ainda no final deste ano. Cuidar mais da própria saúde deixou de ser uma utópica resolução de ano novo para se transformar já em ação concreta antes mesmo do Reveillon. O câncer perdeu a sua oportunidade de livre proliferação e, agora, já está sendo combatido. O pior já passou: agora, o caminho pode até ser árduo, mas é para cima.

E é para lá que vamos.

[OFF] Eu, com câncer (I): diagnóstico e início de tratamento

Após quinze dias de internamento compulsório, duas tomografias, uma biópsia, uma drenagem pleural e um sem-número de exames menores de acho que todos os fluidos do meu corpo, tenho enfim um diagnóstico. Louvado seja Deus.

Possuo um linfoma folicular, de características que não entendo muito bem. Se assim aprouver ao bom Deus, passarei, começando amanhã pela manhã (28/12, festa dos Santos Inocentes e de Santa Catarina Volpicelli), por seis ciclos de quimioterapia, um a cada 21 dias, entremeados por uns corticóides e outros químicos de uso diário que serão meus fiéis companheiros pelas próximas semanas.

Não posso garantir muita coisa. Nunca fiz quimio antes, sinceramente não sei dizer o efeito que essas drogas todas terão no meu organismo. Pretendo registrar aqui alguma coisa do tratamento, como off-topic, mais ou menos como estou agora iniciando esses registros. Se tudo correr bem, dentro de muito pouco tempo – alguns dias – eu posso voltar aos trabalhos normais do Deus lo Vult!, mas procurarei soltar regulares textos sobre o meu estado de saúde e sobre a minha relação com esta doença.

Descobrir-se com câncer antes dos trinta não é a experiência mais agradável do mundo. Ficar trancafiado num quarto de hospital, tampouco: brincava por esses dias que nunca na minha vida ficara tanto tempo num mesmo lugar. Mas a presença dos familiares e dos amigos tem tornado os dias menos difíceis. Que digo: tem tornado os dias quase iguais aos de “lá de fora”! Não dá pra contar a quantidade de visitas, telefonemas, mensagens e congêneres que recebi ao longo dessas duas semanas. Não estive sozinho por um instante sequer. A todos, o meu muito obrigado: isso é muito importante para mim.

Sei que já estão rezando por mim e por minha família. Abuso um pouco ainda da caridade de vocês e peço que rezem ainda mais um pouco: para que eu saiba encontrar a vontade de Deus em meio às tribulações que Ele me permite atravessar. Para que eu consiga manter os olhos fitos n’Ele, mesmo com o olhar embaçado pelas lágrimas deste Vale onde o Altíssimo hoje não me quer deixar esquecer que sou degredado. Lembro-me, em particular, daquele bonito Cántico de S. Juan da Cruz:

Buscando mis amores, 
yré por esos montes y riberas; 
ni cogeré las flores, 
ni temeré las fieras, 
y passaré los fuertes y fronteras.

E é isso. Sem se encantar com as flores do vale, e sem se assustar com as feras do mundo. Desprezar umas e outras, com os olhos fixos n’Aquele que realmente interessa, e assim seguir em frente, ultrapassando os obstáculos que porventura encontre no meu caminho. É isso que importa. As adversidades dessa vida não são maiores do que o amor d’Aquele sem cujo consentimento nem um fio de cabelo sequer cai de nossas cabeças. Essa verdade é óbvia demais para que a permitamos ser obscurecida às primeiras dificuldades.

Uma Ave-Maria por um blogueiro pecador, é o que peço aos que por aqui passarem. É exatamente do que preciso. O resto está nas mãos de Deus. O resto, a Virgem Santíssima proverá. Não há dúvidas disso.