A Última Ceia já foi

E os Quarenta Dias já se escoaram e já chegamos ao Tríduo Santo, ao cerne do drama da nossa Redenção. Ressoam nos nossos ouvidos aqueles versos duros, embaraçosos, da alma surpreendida pelo retorno inesperado do seu Senhor: “mas como dar, sem tempo, tanta conta, / eu, que gastei sem conta tanto tempo…?”.

Tanto tempo…! Onde foi parar a Quaresma? Como assim já é Quinta-Feira Santa, já é a Última Ceia? O roxo da Liturgia das últimas semanas não se impregnou o suficiente em nossas almas; esse branco de hoje — que surge, assim, de repente, sem pedir licença, sem nos dar tempo de nos preparar — tem um aspecto assustador. E toda a penitência que deixamos de fazer? E as mortificações que planejamos e ficaram sem se realizar? E as orações todas que os nossos lábios não remeteram a Deus? E a nossa conversão…?

Queremos, ainda, a nossa Quaresma! Mas a Páscoa urge e não nos espera, o Cordeiro tem pressa de ser imolado.

Infelizes de nós, que atravessamos as últimas semanas sem lhes prestar a devida atenção. Os paramentos eram roxos e nós, olhando-os, não os víamos; o Gloria cessava em nossas igrejas e nossos ouvidos, acostumados ao burburinho do mundo, não percebiam aquele silêncio. Enquanto tudo na Quaresma apontava e conduzia para estes dias de hoje, nós continuávamos seguindo com as nossas vidas como se tudo fosse sempre o mesmo. Como se a espera pudesse se estender para sempre, como se a Semana Santa não nos fosse chegar enquanto não nos dignássemos a fazer a nossa Preparação.

Mas ela chega. Ainda ontem gritávamos Hosanna!, ramos na mão, e nem nos apercebíamos de que a lua, silenciosa, crescia. Hoje é a mesma Lua Cheia que iluminou o rosto ensanguentado de Cristo naquela noite de primavera no Horto — e por pouco também isso nos passava batido. Os céus de nossas cidades escondem a Lua Pascal, como as nossas ocupações ocultam a Semana Santa. O Tríduo estava às portas e quase não o notamos. A Última Ceia já foi; o Gólgota já se prepara.

Os porcos, em campo aberto, vivem com a cabeça voltada para o solo — e por isso nunca vêem o céu de onde lhes vêm o sol e a chuva. E nós, piores que eles, chafurdando em meio às distrações da vida, frequentamos as nossas igrejas, assistimos às nossas missas, sem no entanto elevar os olhos ao Calvário e sem ver o Cordeiro que o sobe, cruz sobre os ombros, para morrer em nosso lugar. Já é praticamente Sexta-Feira da Paixão e quase não o percebíamos!

Mas bendito seja Deus pelo Tríduo Santo! Porque a celebração de hoje — enfim, graças a Deus — nos perturba e nos liberta de nosso torpor. Se não pelo sacrário aberto e vazio, se não pelo lava-pés, se não pelo estrépito das matracas, se não pela procissão ao som do Tantum Ergo, se não pelo cantochão que acompanha o monótono desnudamento do altar, se não pela Missa que termina sem ter um fim, se não por nada disso, ao menos por aqueles paramentos brancos, luminosos, terríveis!, que nos dizem que a Quaresma já acabou, que o tempo favorável se encontra encerrado e que é chegada, enfim, a nossa Páscoa. Quem se converteu, se converteu; quem não se converteu, que cuide de derramar, depressa!, as suas melhores lágrimas, suplicando misericórdia. Cristo já nos foi tirado.

E eis que estamos na Capela da Reposição, com a igreja à meia-luz, de joelhos diante de Nosso Senhor Sacramentado. Ficamos um pouco; já em breve voltaremos para nossas casas, tomaremos um banho refrescante e uma boa refeição, conversaremos um pouco com nossas famílias, deitar-nos-emos em lençóis confortáveis para dormir, diz-se, o sono dos justos. Mas o único Justo está sozinho e ferido, sujo, agrilhoado, tem fome, tem sede e não vai dormir esta Noite. E de repente percebemos que se toda a nossa existência pudesse ser consumida em uma eterna vigília de Quinta-Feira Santa aos pés de Cristo encarcerado, ainda assim seria pouco, seria nada, ainda seríamos eternos devedores ingratos da Vítima Pascal que nos mereceu a Salvação.

Tudo o que podemos fazer não vale uma gota do Sangue derramado neste dias santos, no Horto, na casa de Anás, na prisão, no pretório, no Calvário. Só nos resta contemplar esses mistérios. Rogando a Deus que Se digne nos fazer de algum modo participar da Sua Paixão.

Os contrastes da Quinta-Feira Santa

“Será que vai ter Gloria”? Eu me perguntava enquanto o coral entoava o Kyrie da Missa de hoje, Missa da Quinta-Feira Santa celebrada segundo as rubricas de 1962. Era a primeira vez que eu assistia ao Sagrado Tríduo celebrado na Forma Extraordinária do Rito Romano. A Missa do Lava-Pés, a Nova, sei-lo bem, tem Glória sim; o último Glória antes do da Vigília Pascal.

Lembro-me deste Glória em específico por conta da Paróquia da Torre: é apenas após ele que os instrumentos, todos, emudecem, e os cânticos populares serão conduzidos pela voz dos cantores somente — até a Missa de Aleluia. A mudança do barulho para a sobriedade é notória; o contraste chega a ser chocante. Já o disse outras vezes, creio, que a música litúrgica não é lá o ponto forte daquela paróquia querida, onde me crismei e onde fui por anos catequista: mas, de todas as celebrações do ano, as da Semana Santa — mais especificamente as do Tríduo Santo — eram primorosas. Era o Glória que marcava tudo: era a passagem da alegria para a tristeza, dos Ramos para o Tríduo, da Ceia para a Paixão.

Hoje, ao final do Kyrie, o padre imóvel diante do altar, o órgão entoa as notas conhecidas: vai ter Gloria sim. Esboço um sorriso e comento de lado: “faz já uns dois meses…!”. Porque na Missa Tridentina o Hino de Louvor cessa bem antes da Quaresma, já na Septuagesima. Nem me lembro direito de quando fora a última vez que o havia ouvido. E hoje ele foi mais uma vez entoado, como primícias do que há-de vir no Sábado Santo, como o último suspiro de alegria antes do horror da Sexta-Feira Santa. Gloria in Excelsis Deo, enche toda a nave da Igreja, e parece que os anjos estão, de novo, como naquela Noite Feliz de dezembro, anunciando a Redenção que é a mesma coisa que a Encarnação. O que cantaram antes pode ser cantado hoje também e em toda Missa onde o mesmo mistério se celebra: et in terra pax hominibus bonae voluntatis. É o último grito de júbilo! Após, tudo cessa. Após, o silêncio. Após começa a Paixão.

ubicaritas

É uma das Missas de que mais gosto, esta da Quinta-Feira Santa. O Evangelho, com aquele início extraordinário onde Cristo, cum dilexisset suos qui erant in mundo[,] in finem dilexit eos (cf. Jo XIII, 1). Logo após o mandato, com o sacerdote — estola atravessada, à diácono, detalhe que só hoje percebi — lavando os pés aos fiéis. O Santo Sacrifício, pela última vez celebrado antes da gloriosa Vigília Pascal: e quando Cristo é elevado à adoração dos fiéis por sobre a cabeça do sacerdote, em vão se espera o toque da sineta de todas as Missas. Os sinos não mais dobram: Cristo elevado da terra, hoje, não recebe mais que a batida seca e abafada da matraca.

E ao final o Traslado.

O Sacrário aberto, os vasos sobre o altar, o sacerdote devidamente paramentado, de pluvial e umeral, a cruz processional — coberta — e os candelabros, o incenso elevando-se maviosamente pela igreja: passa a procissão pela nave central, e os fiéis vão-lhe atrás. Canta-se o Pange lingua, e é por volta de seis e meia da noite, a Igreja no centro da cidade: as pessoas param à porta para olhar. Os passos lentos da procissão e o canto, ritmado apenas pelo barulho rude da matraca de tempos em tempos, e todos aqueles acólitos de batina e sobrepeliz, e todas aquelas mulheres de véu, e a cena toda adquire contornos fantasiosos — parece vinda de muito longe, saída de muito distante no tempo, e é isso o que atrai tanto o olhar dos transeuntes.

Sim, é uma cena de um outro tempo: de há quase dois milênios atrás, em uma outra noite de lua cheia, quando um Homem ceou com Seus discípulos, e depois se retirou para o monte para rezar, e depois foi entregue por um de Seus amigos, e julgado às pressas, no meio da noite e, preso, passou a noite no cárcere. É este drama que hoje se repete ou, melhor, que na Sagrada Liturgia se faz hoje presente: são os contrastes da Quinta-Feira Santa! A Páscoa ritual celebrada. A Eucaristia instituída. O Horto. A Agonia. O Beijo. As correntes, os bofetões, as escarradas. Os julgamentos. A Prisão. E tudo isso expresso em uma celebração única, que começa com um Gloria e termina com um altar vazio. Um Gloria, explosão de alegria que há dois meses não era ouvido; o sacrário aberto e vazio, tristeza que os nossos templos não comportavam desde o ano passado.

Cristo Sacramentado na sacristia, no pequeno Altar da Reposição onde aguardará a Vigília do Sábado Santo. E o altar principal cerimonialmente desnudado, com as toalhas cuidadosamente dobradas e retiradas, enquanto o coral entoa o divisérunt sibi vestiménta mea. Não há bênção, não há despedida, não há nada; as pessoas levantam-se desordenadamente e apenas pouco a pouco deixam a igreja. Fica no ar um desconforto, uma sensação de que as coisas, por algum motivo, não estão terminadas. E de fato não estão. O Tríduo Santo está apenas iniciado. Diferente de todas as outras, esta Liturgia se prolonga para além do tempo normal da cerimônia e se arrasta por três dias. Somente no Sábado de Aleluia ela estará consumada. Até lá teremos muito o que viver.

Mudanças na Cerimônia do Lava-Pés — o que significam?

Hoje, no site do Vaticano, foram tornados públicos dois documentos: uma carta que o Papa Francisco enviara ao prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no final de dezembro de 2014, onde solicitava uma alteração nas rubricas do Missal Romano referentes à Missa da Quinta-Feira Santa para que estas autorizassem o uso de mulheres na cerimônia do Lava-Pés (e não apenas fiéis do sexo masculino — viri selecti — como se dispunha até então); e o Decretum daquela Congregação determinando a mudança do Rito, datado de seis de janeiro p.p. (em italiano aqui). Uma tradução não-oficial da carta pontifícia pode ser encontrada aqui, e é de onde tiro o seguinte excerto:

[D]esde há já algum tempo que estou a reflectir sobre o Rito do “lava pés”, inserido na Liturgia da Missa in Coena Domini, com a finalidade de aperfeiçoar o modo com que se realiza, para que exprima plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, a sua entrega “até ao fim” para a salvação do mundo, a sua caridade sem fronteiras.

Antevendo as críticas, talvez não seja despiciendo lembrar aquela declaração solene do Concílio de Trento segundo a qual «a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares» (Trento, Sessão XXI, Cap. 2 (931)). Portanto, não há espaço para os já tradicionais rasgar de vestes de um lado e lançar confetes do outro, como se o Papa estivesse dilapidando o patrimônio divino do Cristianismo ou abrindo enfim as portas da Igreja às reivindicações do mundo moderno. Desde que o mundo é mundo que a Igreja pode «mudar (…) o que julgar conveniente» em Seus ritos litúrgicos. O Papa está, portanto, no mais pacífico exercício do seu munus de governar a Igreja. O resto é tentativa desprezível de capitalizar as atitudes papais em benefício da própria agenda político-ideológica. Não merece atenção.

São outras as coisas que aqui merecem uma consideração mais atenta. Primeiro, uma consideração de ordem, digamos, sociológica: da forma como as normas litúrgicas são recebidas no seio das Igrejas Particulares. No interior do caos litúrgico em que nós infelizmente vivemos, a presença de mulheres na celebração de Lava-Pés não se pode chamar de novidade inaudita. Em parte devido à terrível ignorância dos católicos — conticuit populus meus eo quod non habuerit scientiam… –, em parte pelo aberto descontentamento de alguns a respeito da posição da Igreja sobre a diferença entre os sexos, o fato é que a utilização de mulheres entre os viri selecti exigidos pelas rubricas já se havia constituído em um verdadeiro costume contra legem.

A idéia de legalizar o abuso para o coibir não é indene a críticas, principalmente porque ela evoca — mutatis mutandis — certas práticas de política criminal pouco honestas que intentam reduzir os índices de criminalidade por meio da descriminalização dos crimes. No entanto, dela se pode ao menos dizer que é mais honesta e coerente do que a situação anterior, onde o Papa vinha a público lavar os pés de mulheres quando as rubricas expressamente o proibiam. Sendo o Papa a autoridade competente em matéria litúrgica para determinar quais os pés que se podem lavar na Missa In Coena Domini, não fazia o menor sentido que ele, podendo mudar a lei, insistisse na sua violação. Por mais que se trate de um aspecto que alguém pode dizer de somenos importância, a fidelidade é de ser buscada mesmo nas pequenas coisas. Com o Decretum do início deste mês, o Papa Francisco deixa de praticar abusos litúrgicos neste quesito — o que não deixa de provocar um certo alívio.

Uma segunda coisa importante a ser considerada é o motivo pelo qual as rubricas previam que apenas homens fossem escolhidos para o Lava-Pés. A argumentação tradicional ia na linha de que aquela cerimônia estava inserida no contexto da Última Ceia, para a qual Nosso Senhor não convocou senão os Apóstolos — homens todos eles. É o argumento, aliás, usado para vedar às mulheres o acesso ao sacerdócio ministerial: foi Cristo quem expressamente as excluiu deste ministério específico, não obstante as tenha enviado para fazer uma centena de outras coisas importantes (como, por exemplo, serem testemunhas privilegiadas da Ressurreição). À parte quaisquer discordâncias interpretativas que possa haver aqui, o fato histórico inconteste é que, na primeira Quinta-Feira Santa, apenas homens tiveram os seus pés lavados por Nosso Senhor.

Pode-se lamentar o fato de que esta mudança litúrgica, além de negligenciar a exatidão histórica dos fatos que na Semana Santa se celebram, possa enfraquecer o sentido do sacerdócio ministerial. Afinal (já ouço os inimigos da Igreja bradarem…), se até mesmo ao Lava-Pés as mulheres se fazem presentes, por que excluí-las da Ceia que vem logo em seguida? Não seria o caso de se repensar a Ordinatio Sacerdotalis?

Em resposta a este sofisma vem a terceira coisa importante desta mudança litúrgica. Com ela, o Papa Francisco introduziu oficialmente uma clivagem na celebração da Última Ceia, explicitando uma distinção teológica que, conquanto fosse evidente, não tinha ainda — ao menos não neste contexto — expressão litúrgica que lhe correspondesse.

Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. Na primeira delas proclama o mandamento do serviço; na segunda, institui o sacerdócio ministerial. Parece bastante óbvio que os destinatários de ambas as mensagens não são os mesmos: embora apenas os sacerdotes ordenados tenham o poder de oferecer o Santo Sacrifício da Missa, é a todos os cristãos que se estende o mandato do serviço expresso no «também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros». Na mesma Noite, em seus dois momentos distintos, os Apóstolos estão representando parcelas diferentes do povo de Deus. À Mesa, enquanto convivas que recebem o Pão e o Vinho das mãos do Divino Redentor, fazem as vezes dos sacerdotes ordenados; mas enquanto servidos por Cristo que, toalha à cintura, lava-lhes os pés, representam a totalidade dos cristãos. Apenas os sacerdotes têm o poder e o dever de celebrar a Missa; mas o mandatum da Caridade, têm-no todos os católicos — homens e mulheres, velhos e jovens, doentes e sãos, leigos, clérigos e religiosos — e não apenas os sacerdotes ordenados. Sob essa ótica, a separação dos dois momentos antes distingue que confunde os papéis.

Há sem dúvidas a possibilidade de que homens maliciosos empreguem a mudança para tentar rediscutir sentenças definitivas do Magistério da Igreja; cumpre, portanto, desautorizá-los desde já. O Papa pediu que aos fiéis que fossem escolhidos para o Lava-Pés «seja dada uma explicação adequada do significado do próprio rito»; o Decretum que o regulamenta manda também, explicitamente, aos pastores «istruire adeguatamente sia i fedeli prescelti sia gli altri» — instruir adequadamente tanto os fiéis escolhidos quanto os outros. Sejam, portanto, todos devidamente informados. O mandatum caritatis, expresso no Lava-Pés, é coisa distinta do potestas sacerdotalis conferido ao partir do Pão. Tendo o Romano Pontífice distinguido claramente as duas coisas, não seja dada aos lobos a oportunidade de confundir o rebanho do Senhor.

Quinta-Feira Santa

Já começa a Páscoa do Senhor, e nós não conseguimos vigiar com Ele um pouco sequer. Já é a hora das Trevas, e ela nos pega dormindo.

Dormiriam porventura São Pedro e os demais Apóstolos se sequer desconfiassem que aquela seria a última noite em que estariam com Cristo? A última vez em que Ele os chamaria para rezar? A derradeira ida ao Horto das Oliveiras? Decerto que não. Mas as hostes do Inferno avançam nas sombras, quando não são esperadas. O fim chega “como um ladrão”, para usar uma metáfora cara ao próprio Cristo que, não obstante, os Seus discípulos mais próximos não souberam aproveitar.

É noite, e a Lua Cheia já vai alta no Céu. A Madrugada já avança e, na verdade, já é Sexta-Feira, aquela terrível Sexta-Feira da Paixão. Os acontecimentos não param; seguem em frente, ao contrário, desenrolando-se em ritmo vertiginoso. Não nos esperam dormir, não nos deixam descansar. O Mal não descansa. E cada minuto perdido é um instante que não tem volta: eis a agonia de Nosso Senhor no Getsêmani a nos servir de doloroso exemplo dessa verdade! Cristo chamou os Seus, mas eles também O abandonaram, e um anjo teve que descer dos Céus para consolar o Divino Mestre porque os Apóstolos d’Ele dormiam.

E, como eles, nós.

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“Por que é diferente esta noite?” – Quinta-Feira Santa

Por que esta noite é diferente das outras noites? A pergunta foi imortalizada na película do Mel Gibson que nós costumamos assistir nestes dias do ano. Para além de qualquer interesse histórico que a questão possa despertar, penso que sua maior utilidade no dia de hoje é provocar-nos uma reflexão e uma resposta. Estes dias santos exigem que nós tomemos parte nos acontecimentos neles celebrados, como disse certa vez o pregador da Casa Pontifícia.

Por que é diferente esta noite? Qualquer resposta que se pretenda frutuosa precisa incluir em si o fato de que foi nesta noite – a Noite da Quinta-Feira Santa – que teve início a nossa Redenção. Aliás, isto é uma das primeiras coisas que é preciso ter em mente para viver com fruto estes dias: esta noite que estamos vivendo hoje é Aquela Noite Terrível na qual o Salvador foi traído por Judas. Embora não haja rigorosamente representatio da Semana Santa no mesmo sentido em que a Eucaristia contém a Paixão do Senhor (cf. Ecclesia de Eucharistia 11), estes dias devem sim ser vividos “à maneira de um mistério”, como disse o Cantalamessa. Devem ser vividos de um modo místico e, misticamente, esta é a noite na qual o Senhor foi traído. A Noite da Última Ceia. A Noite do Getsêmani. A noite do beijo de Judas.

São estes os eventos onde devemos estar hoje – afinal, são eventos ocorridos por causa de nós. Dizer que Deus faria tudo o que fez para resgatar uma só alma é uma bonita sentença teológica; mas a consciência de que esta única alma poderia ser precisamente a minha é um poderoso elemento de conversão. É somente quando nós aplicamos as verdades de Fé à nossa vida concreta que elas nos são úteis. Em um certo sentido, nós podemos perfeitamente dizer que os eventos dramáticos deste Tríduo Santo gravitam ao redor de nossa existência concreta, da nossa vida particular. Deus é Amor, e a manifestação mais eloqüente desta consoladora verdade é precisamente esta em cujo meio nos encontramos agora.

Quinta-Feira

Chove. Preparamo-nos para a celebração da Ceia do Senhor, logo mais à noite. Não sei se chovia naquela Quinta-Feira de quase 2000 anos atrás; acho até que não. Mas chuva combina com Quinta-Feira Santa, com Cenáculo e Ceia, com Getsêmani e Traição.

Foi uma noite como esta, de quinta-feira e de lua cheia.. Nosso Senhor desejou ardentemente celebrar a Páscoa com os Seus discípulos. E anunciou que um entre eles O iria trair. Como é possível, Senhor, que alguém possua tanta malícia a ponto de Te entregar nas mãos dos Teus inimigos? Como é possível, Senhor, que um dos Teus amigos seja capaz de vender-Te por tão pouco…?

E é olhando pra mim que eu percebo, envergonhado, como tal é possível. Mais que possível: é real. É na minha própria carne que eu percebo este Mysterium Iniquitatis, esta vergonha enorme, esta malícia descomunal! Como Judas, eu também traio a Nosso Senhor.

Que digo…? Mais que Judas! A traição do apóstolo foi uma única vez; quanto a mim, são incontáveis as vezes que decepcionei a Cristo. O preço de Judas foi trinta moedas: quantas vezes não traí a Nosso Senhor por muito menos. Quantas vezes não O traí por puro prazer…! Infeliz de mim. O Getsêmani é aqui. Aqui, Nosso Senhor sofre, por meus pecados; aqui, eu O traio de novo e de novo.

* * *

Termina a celebração, o Sacrário está vazio, o altar está desnudo. Nosso Senhor foi-nos tirado; está preso, e é por culpa nossa. Sofre, e somos nós que O fazemos sofrer.

E impressiona e espanta o tipo de pessoas pelas quais Nosso Senhor quis sofrer e morrer. Pessoas más, mesquinhas, egoístas; pessoas covardes, amargas, rancorosas. Pecadores, como eu. Como pode um Deus sofrer e morrer por alguém como eu? Eu, que O ofendo tanto e tanto…! Eu quem, por vergonhoso que seja confessar, parece que cada Quaresma encontra igual ou pior.

É por mim que sofre o Filho de Deus nesta noite terrível. É por amor a mim – apesar dos meus muitos pecados – que Ele Se deixa prender e maltratar. É por mim que Ele sofre e morre; e eu não posso fazer nada para Lhe retribuir? E eu não posso nem mesmo parar de ofendê-Lo…?

Nosso Senhor foi-nos tirado! É por nossa culpa, por nossos pecados, por nossas faltas, por nossa malícia, por nossa maldade. Por nós Ele foi entregue. Por nós, Ele está preso. Por nós, Ele está prestes a sofrer e morrer.

Quinta-Feira, in Coena Domini

Eu gosto do som das matracas. Lá na paróquia, elas ainda são utilizadas: daqui até o Sábado de Aleluia, mas especialmente hoje, Quinta-Feira Santa. É quando as ouvimos pela primeira vez, em substituição aos sinos [aliás, recomendo – de novo – a leitura deste texto sobre a “morte” da Liturgia]. O som seco, de madeira, em forte contraste com o badalar musical dos sinos que estamos acostumados a ouvir. Há alguma coisa de diferente. O clima é mais grave: Nosso Senhor está prestes a ser traído.

As matracas acompanham a pequena procissão do Santíssimo, enquanto Ele é transladado para o altar da reposição e o altar principal da Igreja é desnudado. O canto dos fiéis acompanha Nosso Senhor em direção ao Horto das Oliveiras, mas o órgão não acompanha o canto: aquele cessou desde o Gloria in Excelsis de hoje, e só voltará a ser tocado no Sábado de Aleluia – lá na paróquia, os instrumentos musicais ainda emudecem duranto o Tríduo Pascal. E o canto dos fiéis “seco”, sem acompanhamento, também revela que existe, hoje, alguma coisa de diferente. Esta noite não é como as outras noites.

Canta-se uma tradicional versão em português do Pange Lingua. “Canta a Igreja o Rei do Mundo / que Se esconde sob os véus; / canta o Sangue tão fecundo / derramado pelos Seus. / E o Mistério tão profundo / de uma Virgem Mãe de Deus”. Omite-se (culpa d’O Domingo que, infelizmente, ainda é usado) uma parte da canção da qual gosto bastante, e eu lamento. Canto-a baixinho, sozinho: “Cristo o Verbo Onipotente / deu-nos nova refeição: / faz-se Carne realmente / o que deixa de ser pão. / Eis que o vinho é Sangue ardente, / vence a fé o gosto e a visão”.

Nosso Senhor acabara de lavar os pés dos discípulos. O sacerdote, hoje, repetira o bimilenar gesto, logo após a homilia. Pode parecer estranho que a Igreja escolha exatamente o dia do lava-pés para celebrar a instituição do Sacerdócio e da Eucaristia, mas a discrepância é somente aparente. Afinal de contas, foi Nosso Senhor que, na Última Ceia, instituiu a Eucaristia e o Sacerdócio – na mesma Última Ceia onde lavou os pés dos discípulos. João Paulo II disse, certa vez, que o Lava-Pés e a Eucaristia eram “duas manifestações de um só mistério de amor confiado aos discípulos”. É um gesto de amor, deste infinito Amor de Deus que se desenha já no primeiro versículo do Evangelho hoje lido: “tendo amado os Seus que estavam no mundo, [Jesus] amou-os até o fim”. Deus ama os homens ao ponto de entregar-Se na Eucaristia por eles. Gosto de imaginar o Lava-Pés como uma espécie de preparação para esta realidade sobrenatural: se os Apóstolos escandalizam-se quando o Mestre lava-lhes os pés, o que não dirão quando Ele lavar-lhes a alma, e não mais com simples água derramada em uma bacia, mas com Seu próprio Sangue derramado na Cruz do Calvário? É preciso, a cada um, quebrar o próprio orgulho, abrir-se à iniciativa salvífica de Deus, aceitar que precisa de ajuda e permitir que Deus venha em seu socorro. Foi preciso aos Apóstolos, é preciso a cada um de nós. Reduzir a cerimônia do Lava-Pés à sua dimensão meramente materialista é não entender nada da riqueza do dia de hoje.

Mas Nosso Senhor agora está no Horto das Oliveiras, e sofre – e nós, à semelhança dos discípulos, não somos capazes de vigiar com Ele uma hora sequer. O drama do Deus que ama “até o fim” a humanidade ainda não está consumado. Acompanhemos Nosso Senhor nesta noite, preparando-nos para o dia de amanhã. Esta noite não é igual às outras. Inicia-se o Tríduo Pascal (aliás, a missa In Coena Domini “termina” sem bênção final). Fiquemos com Nosso Senhor, daqui até o Sábado de Aleluia. Porque, para podermos cantar o Exsultet do Sábado Santo, começamos na Última Ceia, e precisamos passar pelo Horto. E, amanhã, pelo Calvário.

* * *

Ler também: Homilia do Papa Bento XVI na missa in Coena Domini, 01 de abril de 2010.

Cenáculo, Getsêmani, Horto das Oliveiras

Última Ceia. Getsêmani. Traição de Judas. São muitos os acontecimentos que meditamos nesta Quinta-Feira Santa. São todos antecipações da Sexta-Feira Santa, do Calvário: no Cenáculo, antecipação sacramental; no Getsêmani, uma antecipação “volitiva”; e, no beijo de Judas, uma antecipação “simbólica”.

Na Última Ceia, Jesus reúne os Doze Apóstolos – inclusive aquele que O vai trair poucas horas depois – para instituir a Eucaristia, instituir a Santa Missa, antecipar, de modo Sacramental, o Sacrifício do Calvário que seria consumado no dia seguinte. A Ceia não é – como nos é representada muitas vezes – uma festa entre amigos. É um ritual religioso. É um banquete sacrifical. Nosso Senhor sabe-o muito bem. É nesta ocasião que Ele profere as palavras que irão atravessar os séculos e nutrir os filhos da Igreja ao longo de toda a Sua história: ISTO É O MEU CORPO. ESTE É O CÁLICE DO MEU SANGUE.

Corpo e Sangue separados: Nosso Senhor em “estado de vítima”. A separação do Corpo e do Sangue da Vítima imolada, que ocorrerá no dia seguinte quando o Santíssimo Sangue do Salvador escorrer do Santíssimo Corpo pendente do Madeiro da Cruz, já se faz presente na Última Ceia. Nosso Senhor o sabe. Sabe que os Apóstolos – e, depois deles, os cristãos de todos os tempos – precisarão participar do Sacrifício Redentor, do Calvário: pois nem mesmo os Apóstolos estarão lá amanhã, junto à Cruz… Nosso Senhor os ensina como agir. E, após deixar as instruções que serão repetidas pelos séculos e milênios vindouros, retira-se ao Horto das Oliveiras.

Vai sozinho: “Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar” (Mt 26, 36). Como sozinho haveria de subir o Calvário no dia seguinte. Vai rezar. Entristece-se, angustia-se: a natureza humana, vergada sob o peso dos pecados do mundo inteiro, chega quase a vacilar: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (v. 39)! Mas a férrea vontade divina é mais forte do que a fraqueza humana: “Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (id. ibid.). O “sim” dado a Deus por Nosso Senhor supera o “não” primitivo dos nossos primeiros pais: em Jesus, a natureza humana, finalmente, dá a Deus a obediência que Lhe convém.

“Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (v. 42)! E Jesus já começa a saborear o amargo cálice da nossa Redenção, a partir do momento em que o aceita. Diz ao Pai: faça-se a tua vontade. Dobra, portanto, a vontade humana, submete-a à divina. Aceita o Calvário, e já o antecipa neste querer: o solo do Getsêmani – antes mesmo do Gólgota – foi o primeiro a receber o Divino Sangue do Salvador.

“Aquele que me trai está perto daqui” (v. 46). Já se aproxima o Traidor; perto estava Judas porque estava nos arredores do Horto, mas também não estaria ele “perto” por ser um dos Doze? Por ser um Apóstolo, do restrito grupo de confiança de Nosso Senhor? Judas estava perto e, com um beijo, entregou a Deus “nas mãos dos pecadores”.

Um Apóstolo traindo a Nosso Senhor! Devemos nos escandalizar, portanto, se, hoje, Judas tem sucessores? Devemos porventura nos escandalizar ao vermos bispos traindo a Esposa de Cristo? Na Quinta-Feira Santa, sob a luz da lua cheia, Jesus foi traído por um beijo. E este gesto de carinho que, para Ele, era sentença de condenação, vindo de alguém que, com Ele, havia ceado pouco tempo antes e, no entanto, agora fazia o papel do carrasco… não terá sido um sofrimento inimaginável? Jesus é preso. A Traição é já o início do Calvário; ela O antecipa neste beijo que é sentença de morte proferida por alguém que Nosso Senhor veio para salvar – como, amanhã, Jesus vai morrer pelas mãos dos pecadores, em favor destes mesmos pecadores.

No Cenáculo, portanto, e no Getsêmani, e no Horto onde Jesus foi preso, tudo nesta quinta-feira aponta para a Sexta da Paixão. Tudo nela rescinde a morte: propter peccata nostra. Acompanhemos Nosso Senhor na Sua paixão, hoje três vezes antecipada. Unamo-nos a Ele. Que Ele tenha de nós misericórdia.