A violência de Recife

Recife é uma cidade violenta. De acordo com o último estudo que eu vi sobre o assunto, no início do ano passado, é a capital mais violenta do país. Lembrei-me disso porque recebi um email hoje que citava alguns dos últimos assassinatos ocorridos na capital pernambucana, e alertava as pessoas para que repensassem os planos de visitarem (ou morarem em) Recife. Eis um trecho:

Amigos e Amigas,
aproxima-se o período de férias, época de viagens, de turismo.  Preocupados com a segurança e a vida de vocês, peço-lhes encarecidamente que não venham passear e muito menos morar em Pernambuco, sobretudo no Recife. Aqui  não existe mais segurança, é uma terra sem lei, onde os marginais condenam pessoas, sobretudo da classe média,  à morte e ficam impunes.
Aqui os bandidos são vistos como vítimas. Aqui não existe solidariedade com os cidadãos assassinados e muito menos com as famílias enlutadas! Aqui a pena de morte existe, mas contra nós da classe média, que pagamos impostos,  pessoas decentes, honestas e trabalhadoras.

O alarmismo não é infundado; os dados mostram. Existe uma equipe de jornalismo que se dedica a “contar” as pessoas assassinadas no Estado. Acabei de acessar e, este ano, estamos com 4042; 29, neste mês de dezembro (isso mesmo, nestes últimos quatro dias). Havia um projeto análogo no Rio de Janeiro, mas acho que foi desativado.

Não sou expert em criminalidade no Brasil e só estive no Rio de Janeiro poucas vezes, a passeio; mas acredito que a principal diferença entre a Veneza Brasileira e a Cidade Maravilhosa é que, lá, há muitos assassinatos relacionados à guerra do tráfico. Aqui, também os há, mas a proporção é bem menor. Aqui morrem pessoas de bem que não têm nada a ver com a criminalidade. Aqui, suspira-se aliviado quando “não acontece nada” em um assalto.

Lembro-me da última vez em que fui assaltado, no início do ano, e da terrível frustração que senti. Caminhava, junto com um amigo, em direção à parada de ônibus, no domingo à noite; o carro parou um pouco à nossa frente, na avenida deserta, e abriu a porta traseira. Vi o assalto segundos antes de sofrê-lo, e não havia nada que pudesse fazer. Desceu o meliante apontando-nos um revólver, levou-nos carteiras e celulares, entrou no carro e foi-se embora. Fomos à delegacia prestar queixa e – horror e vergonha! – o policial que nos atendeu censurou-nos por estarmos andando de noite por aí (!!). Disse-nos ainda que ele próprio “não era doido” de andar em Recife de noite, e que gostava de sair mas estava “sempre em casa às seis horas da noite” (!!!).

Quando a única assistência que um policial pode prestar às vítimas da violência é aconselhá-las a ficarem em casa, e diz que ele próprio não tem coragem de sair às ruas, estamos no fundo do poço. É principalmente por isso, na minha modesta opinião de cidadão recifense, que a cidade está mergulhada no caos: porque as autoridades são pusilânimes, e não cumprem com o seu dever, e não coram de vergonha ao dizê-lo. A Veneza Brasileira afunda por causa da covardia institucionalizada e vista como virtude. Acostumado com estes fatos, eu fico sinceramente feliz quando leio uma notícia de que um assaltante foi morto porque a vítima (ou algum transeunte) reagiu a bala: afinal, deparo-me com alguém que – ao contrário do policial que me atendeu – ainda tem senso de responsabilidade. Mostra-me que ainda há esperança de escaparmos ao naufrágio.

Gado de matadouro

O Brasil é um país violento. Em praticamente qualquer lugar, sair de casa é estar com a terrível sombra da criminalidade pairando sobre nossas cabeças, qual ave de rapina procurando a sua presa. Ninguém parece fazer nada para solucionar o problema. Contudo, repetem-nos o tempo inteiro, como se fosse um novo mandamento dos tempos modernos: não reagirás.

O discurso é impressionantemente uniforme. “Em hipótese alguma tente reagir”, diz a VEJA. “Jamais reaja”, diz o site “Tudo sobre Segurança”. “[O] cidadão comum (…) não deve reagir à voz de assalto do criminoso”, diz uma reportagem d’O Globo. “A principal dica é nunca reagir”, tem até num site português!

Contudo, há quase duas semanas, uma garota sofreu uma tentativa de estupro aqui em Recife. Não seguiu o discurso das autoridades públicas. “Ele disse que ia me estuprar e depois me matar. Como ele ia me matar de todo jeito, o meu raciocínio foi que eu poderia até morrer, mas não iria deixar ele me estuprar. Foi aí que decidi. Reagi e comecei a brigar com ele”. E está viva, e bem, graças a Deus.

Incomoda-me que ninguém procure resolver o problema, e que tentem convencer todas as pessoas a serem gado de matadouro. A impressão passada é a de que as autoridades julgam ser possível até conviver com a criminalidade, mas jamais com uma vítima fatal da sua negligência. Como se a política de “minimizar os danos” servisse tão-somente para impedir as pessoas de verem com clareza e incompetência da segurança pública nacional.