Inception

[ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS!]

Haviam me dito que “A Origem” (Inception, 2010) era um bom filme. Se esta opinião está equivocada, é por excesso de parcimônia nos elogios: o filme não é apenas “bom”, é uma verdadeira obra-prima. Assisti-o agora há pouco, e o recomendo enfaticamente: uma história inovadora, uma trama muito bem urdida, excelentes atuações, cenas de violência dentro do limite, completamente livre de cenas de sexo. Este último ponto merece destaque, por ser raridade na Sétima Arte. Inception prova, definitivamente, que um filme não precisa conter cenas apelativas para ser um incontestável sucesso de bilheteria. Quero tecer alguns comentários sobre o filme, mas aos que pretendem ainda ir ao cinema recomendo que o assistam antes de lerem estas minhas linhas: conhecer previamente a história vai estragar bastante a sensação – deliciosa! – de descobri-la pouco a pouco na sala escura do cinema.

Ouvi dizer que o filme é “muito cabeça” e exige “muita atenção” – besteira. O filme é relativamente simples. Somente possui um bom roteiro que naturalmente não pode ser acompanhado com a mesma displicência com a qual se assiste The Expendables; mas o desenrolar da trama percebe-se muito mais facilmente do que, por exemplo, em “Amnésia” (que, aliás, é do mesmo diretor). As cenas que só fazem sentido no final do filme ou são detalhes (que, imagino, devem fazer valer bastante a pena uma segunda ida ao cinema…) ou estão muito bem nítidas na memória, a despeito das quase duas horas e meia do filme – que, diga-se, nem se percebe passarem.

A história: existem uns sujeitos que conseguem entrar nos sonhos das outras pessoas. Isso pode ser feito com dois objetivos: extrair informação, que é de longe o mais comum, ou incutir uma idéia na mente da vítima – fazer uma inception, uma inserção, um “implante” (que talvez fosse uma tradução melhor para o nome do filme) de um pensamento que, quando acordada, a pessoa adopte como seu e com base no qual passe a agir. Há quem diga que inceptions são impossíveis, mas Cobb (DiCaprio) diz que é possível e aceita fazer um serviço desses em troca de ter a sua ficha limpa com a polícia americana.

O serviço para o qual Cobb é contratado não tem nada de simples: trata-se de fazer um inception em Robert Fischer, um jovem herdeiro de uma (praticamente) hegemônica companhia de eletricidade, para convencê-lo a dividir o império do pai e, assim, possibilitar que a empresa concorrente – que contrata Cobb – continue existindo. Esta idéia, para ser aceita, precisa naturalmente ser apresentada como uma boa idéia (“vou chutar o pau da barraca e acabar com a minha herança” não funcionaria), precisa que o alvo aceite-a como sua, própria (trata-se, assim, muito mais de insinuar alguma coisa que depois desenvolva-se naturalmente do que enxertar algo facilmente reconhecível como exógeno), e precisa ser feita no profundo do subsconsciente: para isso, Cobb e sua equipe abusam da técnica de “sonhos dentro dos sonhos”. Funciona assim: “entrar no sonho” leva até um nível do subconsciente da vítima; mas se, dentro do sonho, põe-se o sujeito para dormir e entra-se no “sonho do sonho”, atinge-se um nível de inconsciente mais profundo e, para os objetivos de Cobb, mais interessantes. O plano original é a adentrar “três níveis” no subconsciente de Fischer e, “lá embaixo”, incutir a idéia que desabroche, “lá em cima”, na decisão de se desfazer do império que o pai construiu.

Várias coisas encantam no filme. Primeiro, a “ambientação” é muito bem feita. Há os caras – “arquitetos” – que “desenham” o cenário do sonho onde fulano vai ser colocado. Quando o alvo é posto dentro do sonho, o seu subconsciente “povoa” o cenário criado: as pessoas que estão no sonho são projeções da sua mente, etc. Em particular, caso haja no cenário um “cofre” ou coisa parecida, a mente do sujeito, instintivamente, “joga” lá dentro aquilo que quer manter como segredo (tornando fácil a extração de informações para os invasores de sonhos – cria-se o cenário com o cofre, quando o sujeito sonha o seu subconsciente põe no cofre o segredo, e então basta arrombar o cofre e obter o segredo). Nos sonhos, o tempo passa mais devagar do que fora deles, e isso funciona recursivamente: se 1 minuto na “vida real” corresponde a 20 minutos dentro do sonho, vai corresponder a 400 minutos no “sonho dentro do sonho” – e assim por diante. No sonho, repercutem as sensações do que está acontecendo com o sujeito que dorme: se ele estiver molhado, p.ex., vai estar chovendo no sonho. A quantidade de detalhes impressiona.

Mas o filme tem “camadas”, como se costuma dizer hoje em dia – ou, melhor dizendo, sonhos dentro de sonhos, tramas dentro de tramas. Há toda essa história dos invasores de sonhos. Dentro disso, há os interesses políticos da companhia que quer convencer o Fischer a desfazer-se do império do pai, serviço que Cobb topa. Dentro deste serviço, há a motivação de Cobb que é poder voltar para os Estados Unidos e se encontrar com os filhos. E, dentro disso, no mais profundo das tramas, há o drama interior do protagonista de se desvencilhar das lembranças de sua mulher morta e da culpa que ele sente por a ter levado a cometer suicídio.

[Provavelmente vai aparecer quem diga que, ainda mais profundo do que isso, há a discussão sobre até que ponto a realidade é realmente real, mas este blá-blá-blá totalmente clichê e de valor filosófico nulo é indigno do filme. Volto a este ponto no final do texto.]

Encanta também a trama. O protagonista precisa se libertar da culpa que sente com relação à morte da esposa. Quer voltar para os filhos, e encontra esta possibilidade no serviço para o qual foi contratado. Antes de convencer um jovem bem-sucedido a lançar às favas o império que o pai a duras penas construiu, o que Cobb e sua equipe terminam fazendo é reconciliar um filho com o seu pai. E o protagonista, perdido nos seus sonhos e pensamentos, recebe da jovem arquiteta a ajuda necessária para vencer o seu próprio passado e ser finalmente capaz de viver o seu futuro. Notem: todas as motivações – e as atitudes – são positivas! A única coisa mesquinha que existe no filme – o desejo de “quebrar”, desonestamente, uma empresa bem-sucedida – é também apresentada de maneira positiva (“é importante para o mundo que esta empresa não detenha o monopólio da distribuição de energia”) e – principalmente – é alcançada por um meio extremamente positivo, provocando uma reconciliação familiar. No filme, não há vilões; há os dramas pessoais de almas sofridas que, por si sós, já são responsáveis pela virtual totalidade dos males que existem no mundo.

E, por fim, também encantam as sutilezas. A forma que Cobb usa para implantar em sua esposa a idéia de que a realidade é uma ilusão é simplesmente genial. O que Fischer encontra no cofre do pai lá no terceiro nível de sonhos – o catavento da foto de quando era criança – é emocionante. O que Cobb diz para a projeção (feita por seu subconsciente) da sua mulher, ao final do filme, é um elogio feminino para o qual eu não encontro paralelos no cinema recente: “não passas de uma sombra pálida da mulher que eu amei. És o melhor que eu consegui fazer e, no entanto, não és boa o bastante”.

As pessoas – a realidade! – ultrapassam infinitamente as imagens que temos delas, por mais honestos que sejamos, por mais que nos esforcemos! Não existe bobagem de ceticismo ou de dúvida idiota – estilo Matrix – sobre se o que julgamos ser a realidade é de fato real. No extremo oposto disso, o filme é um tremendo louvor à realidade, por dura que ela seja. É isto que o filme, ao final das contas, nos ensina. Por mais que possamos ser deuses e ter um mundo só nosso no “limbo” dos sonhos profundos, a realidade vale mais – muito mais – do que isso. É sempre necessário aceitá-la. Sempre vale a pena voltar.