É conhecido o antigo adágio latino: si vis pacem, para bellum. Se queres a paz, prepara-te para a guerra. A aparente contradição que o conselho encerra resolve-se facilmente quando percebemos que, nele, os dois termos antagônicos não estão no mesmo plano de desejabilidade.
A paz é o fim, i.e., aquela coisa que se quer por si mesma; a guerra, o meio, que se usa para, mediante ele, alcançar uma outra coisa – esta sim verdadeiramente almejada. O fim é o que eu quero; o meio, é o que decido usar para alcançar o que eu quero. Então o que diz o antigo ditado, na verdade, é simplesmente que, se você quer a paz, precisa estar preparado para lutar por ela. Esta é uma posição bastante realista e necessária, da qual – mormente no meio da vaniloquência paz-e-amor dos dias que correm – não se deve jamais olvidar.
Porque, ao contrário do que muitos nos querem fazer acreditar, a paz não é mera ausência de conflitos. Quem o repetiu recentemente foi o Papa Francisco, no primeiro Angelus deste ano: «A paz não é apenas ausência de guerra». Isso vale para o plano exterior dos povos e nações como vale para o plano intelectual das ideias e concepções de mundo. Neste, aliás, a verdade da tese pode ser percebida até com maior clareza: concórdia não é simplesmente ninguém discutir.
É perfeitamente possível – encontramos isso todos os dias – que as pessoas não discutam mas, mesmo assim, discordem profundamente entre si. Imaginam por vezes que o consenso é construído quando as pessoas não externam o seu dissenso. Ledo engano, contudo: a concórdia, cujo étimo latino vem de co (junto) e corda (corações), só se atinge quando há uma coincidência de desejos – quando os diversos corações estão juntos em torno de uma aspiração comum. Duas pessoas não concordam sobre um dado assunto simplesmente por não o discutirem: elas só concordam se tiverem, a respeito dele, a mesma posição. Para se obter a paz é necessário por vezes lutar; para atingir a concórdia, é muitas vezes necessário discutir.
Na mesma ocasião, o Papa disse ainda que os homens «falam muito sobre a luz, mas com frequência preferem a tranquilidade enganadora das trevas». E ainda que nós, que falamos muito a respeito de paz, muitas vezes «escolhemos o silêncio cúmplice». E isso se aplica com perfeição ao que estamos aqui falando: quer «tranquilidade» mais «enganadora» do que aquela que brota da quietude pública, porque as pessoas têm medo de dizer o que realmente pensam e querem? Quer «silêncio» mais «cúmplice» do que aquele que deixa determinada concepção de mundo – muitas vezes daninha – prevalecer na sociedade, porque tem medo de a confrontar? E chamam isso de paz porque não se ouvem as polêmicas, porque as pessoas não discutem, porque os ânimos não se acirram; mas no seu íntimo os homens querem coisas cada vez mais diferentes, estão cada vez mais separados entre si, enxergam o outro cada vez mais como um estranho – porque eles não se mostram como verdadeiramente são. Ora, isso não é paz!
O problema não é somente teórico. Para ficar somente em um exemplo, o Papa Bento XVI, há alguns anos, em uma Universidade alemã, proferiu um discurso sobre Fé e razão onde citou o «diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Paleólogo teve com um persa erudito sobre cristianismo e islão e sobre a verdade de ambos». E disse:
No sétimo colóquio (διάλεξις – controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador aborda o tema da jihād, da guerra santa. O imperador sabia seguramente que, na sura 2, 256, lê-se: «Nenhuma coacção nas coisas de fé». Esta é provavelmente uma das suras do período inicial – segundo uma parte dos peritos – quando o próprio Maomé se encontrava ainda sem poder e ameaçado. Naturalmente, sobre a guerra santa, o imperador conhecia também as disposições que se foram desenvolvendo posteriormente e se fixaram no Alcorão. Sem se deter em pormenores como a diferença de tratamento entre os que possuem o «Livro» e os «incrédulos», ele, de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: «Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava». O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão ríspido, passa a explicar minuciosamente os motivos pelos quais não é razoável a difusão da fé mediante a violência. Esta está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele: «Deus não se compraz com o sangue; não agir segundo a razão – «σὺν λόγω» – é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, e não da violência nem da ameaça… Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa…».
As manchetes da época consideraram inaceitável que um Papa dissesse que o Islã é uma religião violenta. Alguns líderes islâmicos chegaram a exigir desculpas de Bento XVI. De nada adiantou o Papa, consternado, afirmar publicamente que se tratava apenas «de uma citação de um texto medieval, que não expressa[va] de modo algum» o seu «pensamento pessoal»; a mídia, implacável, sentenciou que o Papa não pedira desculpas e, portanto, os muçulmanos manteriam os protestos.
Isso tudo aconteceu em 2006. Não me lembro de outra polêmica análoga que se tenha passado de lá para cá; poder-se-ia, então, dizer que, aos olhos do mundo, os muçulmanos e o Ocidente estavam nas mais perfeitas paz e concórdia. Esta era, no entanto, a «tranquilidade enganadora das trevas»! Há poucas semanas, o mundo inteiro assistiu, perplexo, à chacina provocada em Paris. E agora todos já voltam a falar em Islã e violência; e já há, novamente, os que querem retornar ao «silêncio cúmplice» que tem perpetuado os desentendimentos dos últimos séculos e agravado os das últimas décadas. Porque a concordância do mundo – onde cada um é instado à atitude solipsista de encerrar as suas próprias convicções no seu mundo interior – não é e nem pode ser verdadeira concórdia entre os homens. Sufocar a discussão aos gritos de “respeito!”, “respeito!” simplesmente não resolve o problema, como a experiência recente tem mostrado.
«Cada homem e cada povo têm fome e sede de paz», disse o Papa Francisco no já referido discurso: a estratégia de esconder as discórdias, portanto, não pode jamais lograr êxito, posto que não consegue responder verdadeiramente a este anseio natural do homem por paz. Para alcançá-la é por vezes preciso estar disposto à guerra, diziam-nos os antigos; do mesmo modo, para construir a concórdia e a harmonia, é geralmente necessário estar aberto à discussão – e, nisso, parece que temos falhado miseravelmente.