Os que não acabaram
Vinham os magos, decididos. Quem não se decide a servir a Deus por toda a vida ou a morrer à sua procura não está capacitado para a guerra. Deus ordenava aos israelitas que, à hora de entrarem em combate numa guerra, se anunciasse por meio de um arauto que todos os que estivessem construindo uma casa e ainda não a tivessem acabado, e todos os que tivessem plantado uma vinha e ainda não tivessem colhido os frutos, e todos os casados e todos os medrosos – voltassem para suas casas (Deut 20, 5 e segs; 1 Mac 3, 56 e Jz 7, 3).
– “Padre, que quereis dizer com isso?” Que nem todos estão capacitados para a guerra. Porque dirás: – “Não acabei o que estava fazendo”. Tereis o corpo na guerra e o coração em casa (cf. Mt 6, 21). Esses são os homens sobrecarregados com os ocupações da vida: – “Que farei, que comerei, como sustentarei os meus filhos?” (cf. Mt 6, 25 e 31). Julgais que, preocupando-vos em demasia, conseguireis manter-vos. Infeliz o homem que não se apóia em Deus, mas que vive pensando se choverá muito ou se não choverá!
Dou-te este sinal para que vejas se estás apoiado em Deus: se nas dificuldades te afliges, se nos sofrimentos te encolhes, não estás apoiado em Deus. Na hora da angústia me reconfortastes (Sl 4, 2), diz Davi. – “Não posso Eu sustentar-te sem a chuva?”, diz-te o Senhor. Aquele que se apóia em Deus não se deixa abater nem pelos sofrimentos, nem pelas angústias, nem pela morte, nem pelo inferno. Quem não se apóia n’Ele, quanto medo sente, como anda preocupado!
Disse Jesus Cristo: Não vos preocupeis pela vossa vida, nem pelo vosso corpo, nem pelo que vestireis (Mt 6, 25-31). Estais tão cheios de preocupações com o muito comer e beber que, se a palavra de Deus entrar nos vossos corações, um minuto depois será sufocada! (cf. Mt 13, 22) Trabalhai e ganhai o suficiente para comer, que Deus assim o quer, mas essas preocupações e angústias desmedidas são sinal de que não estais apoiados em Deus. Quem se encontra nesse estado não irá para a guerra.
Os sensuais e os medrosos
Em segundo lugar, os casados, que aqui quer dizer os sensuais. Diz o Sábio: Qualquer palavra sábia, ouvida por um homem sensato, será louvada por ele e dela se aproveitará. Que a ouça um luxurioso, e lhe parecerá desagradável e a arremessará para trás das costas (Ecli 21, 18). Não há pecado que mais entorpeça a alma do que este. Jovem lascivo, olha que dentro em pouco essa tua carne será alimento para os vermes e se transformará em cinzas. Podes retirar-te: não irás para a guerra.
Em terceiro lugar, estão os medrosos, os que se preocupam com o que se pode dizer deles. Observamos a esposa: – “Tens dez saias e a tua irmã apenas uma; tens seis mantilhas e a tua irmã apenas uma, com a qual vai à missa. Isso não é fraternidade; não pareces acreditar que Jesus Cristo está no pobre. Vende essa saia, contenta-te com uma ou duas, e com as outras compra para a tua irmã”. – “Mas que dirão os outros de mim? Compreendo que o que me mandas é bom, mas queres que eu pareça a empregada das outras? Se as minhas amigas fizessem o mesmo, eu também o faria”.
Ó louca! Como vives, com o mundo ou com Deus? Depois, ireis a Deus, dizendo: – “Paga-me”. E o Senhor te dirá: – “Os serviços que me prestastes, Eu vo-los pagarei, mas os que andastes prestando ao meu inimigo, como quereis que vo-los pague?”
É difícil encontrar quem ande só. E se é para ir só, então é melhor ir por onde foi Jesus Cristo. Não pelas pompas, jóias ou brocados, embora por aí sigam muitos reis. Não ousarás ir de mãos dadas com Jesus Cristo por onde Ele foi? É impossível que quem abriu uma conta com o mundo tenha outra aberta com Deus. Ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6, 24 e Lc 16, 13). Quem é amigo deste mundo por isso mesmo tornou-se inimigo de Deus. O medroso diz: – “Dirão que sou um hipócrita!” Deves procurar a Deus com decisão, aconteça o que acontecer. Cortem-me a cabeça, que nem assim o abandonarei.
Disse Jesus Cristo: O que vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados (Mt 10, 27). É com essa condição que Deus te dá a conhecer a verdade: que digas em público o que te disseram em segredo. Gostaríeis de ser como aqueles de quem fala São Paulo que retêm a verdade na injustiça? (Rom 1, 18). Quem tem a verdade e não a professa nem se comporta de acordo com ela está prendendo a verdade na injustiça. Onde está o rei dos judeus? Nós já o conhecemos. Devemos professar esta verdade custe o que custar. Vede como é o mundo: os reis magos vêm de longe à procura do Salvador, e os que estão na terra d’Ele nem se dão conta da sua presença.
A inquietação de Herodes
O rei Herodes turbou-se, e toda Jerusalém com ele (Mt 2, 3). Que o rei se inquietasse não era muito, mas toda a cidade?
Por aqui vedes como é necessário que haja um bom rei na cidade e uma boa cabeça que reine. Se o bispo é mau, mau o magistrado, mau o pároco e mau o pregador, dificilmente haverá um bom povo. Esta é a intenção pela qual deveríeis rezar a Deus e é dela que mais vos esqueceis. “Senhor, dai-nos bons governantes; Senhor, dai-nos bons dirigentes. Que os reis Vos temam; dai-nos bons sacerdotes e pregadores”.
Toda a cidade turbou-se com o rei. Diz o rei: – “Então quereis outro rei além de mim?” E diz o criado: – “Que quereis que eu faça? O meu patrão ordena que eu o acompanhe nas suas noitadas”. E pensa o sacerdote: “Se eu disser a Fulano que tem uma amante, se lhe disser que não comunga, encher-me-á de pancadas”. Ora, para quem quereis a honra, se não é para Jesus Cristo? Não vale a pena morrer pela honra de Deus? É uma grande honra morrer pela honra de tão grande príncipe!
Herodes perturbou-se, começou a tremer e, convocando todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer esse rei. Disseram-lhe: Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta. Disse Herodes aos magos: Ide e informai-vos bem acerca do menino, e, quando o encontrardes, comunicai-me, a fim de que também eu vá adorá-lo (cf. Mt 2, 4-8); na verdade, para matá-lo.
Os reis partem e ele fica. Não vedes como está bem representado aqui o mau pregador? Prega onde se pode encontrar a Deus e depois fica onde está. O bom pregador e o bom confessor devem ir à frente. Ninguém deve dizer uma palavra boa sem que primeiro a tenha posto em prática. Lê-se na vida dos Santos Padres que, estando moribundo um daqueles santos anciãos, se aproximaram dele alguns religiosos e lhe pediram: – “Padre, deixai-nos algo que fique aqui conosco”. Respondeu-lhes ele: – “Sempre acreditei mais no parecer alheio do que no meu, e nunca tive a presunção de ensinar coisa alguma que antes não tivesse posto em prática. Este é o testamento que vos deixo”.
São João de Ávila,
“O Mistério do Natal”
pp. 60-64
Ed. Quadrante, 2ª Edição
São Paulo – 1998