Ontem eu completei um importante aniversário. Há exato um ano, era um sábado e eu me dirigia, pela manhã, à emergência do Hospital Português, com irritante e persistente dificuldade de respirar… O resto da história vocês já conhecem, mas chega a ser impressionante olhar para trás, agora, e ver o local privilegiado em que me encontro hoje, depois de tudo o que passei.
Um câncer é um câncer e não tem lá muito o que se fazer: é combater a doença em ato, precaver-se contra a recidiva e mudar o estilo de vida. Quanto ao primeiro desses itens, não posso classificar estes últimos doze meses senão como uma vitória completa: no final de maio eu fiz a última sessão de QT, e todos os exames então realizados mostraram uma resposta extraordinária. Após oito ciclos de R-CHOP, os mais minuciosos exames davam «negativo para neoplasia linfoproliferativa em atividade». Os bens temporais – entre os quais a saúde ocupa um lugar proeminente – as mais das vezes não estão sob nosso controle. Com relação a eles, o Senhor dá e o Senhor tira, ensina-nos o livro de Jó, e mesmo do fundo do poço é importante que se bendiga o nome d’Ele. Mas a história continua, e é reconfortante notar que, às vezes, Ele os concede novamente. Sit nomen Domini benedictum.
Um câncer tem toda aquela história de um período de monitoramento, mais ou menos longo, estendendo-se desde a última quimioterapia até (via de regra) cinco anos adiante: é a fase em que me encontro. Faço “manutenção”, como disse da última vez que escrevi sobre o assunto, o que significa que a cada dois meses eu tomo uma dose de medicamentos que objetiva acabar com qualquer resquício de células cancerígenas que porventura ainda existam em meu organismo, impedindo assim o linfoma de se restabelecer. O Rituximab é uma droga de altíssima qualidade: trata-se de anticorpos artificiais, que reagem especificamente contra as células doentes do meu tipo de linfoma, destruindo-as. Alguém perguntou certa feita se era como se fosse uma vacina para imunizar contra o câncer, mas é exatamente o contrário: é como se fosse um sistema imunológico artificial que destrói as células cancerígenas tão-logo apareçam, não dando a elas a chance de se multiplicarem.
Que Deus abençoe os responsáveis por este avanço da medicina! Sem ele, o meu tratamento seria muitíssimo mais complicado; além disso, essa manutenção que faço bimestralmente não me prejudica em nada. Lembro-me dos dias mais complicados da quimioterapia, em que eu ficava tonto, vomitando de madrugada, com o cabelo caindo, com o sistema imunológico baixo… nada disso acontece quando faço a manutenção. Vou à clínica depois do almoço, passo a tarde tomando o soro e, à noite, já inclusive saí de lá direto para a Faculdade, novo e sem maiores complicações. Não tenho nenhum efeito colateral, nada de náuseas, sem comprometer o sistema imunológico, nada, nada. Claro, há o incômodo do tempo passado na clínica, do cateter subcutâneo (que ainda mantenho) etc.; mas, perto das corredeiras bravias que tive que descer, isso é uma marola insignificante. Não dá nem para reclamar.
Ter uma doença como câncer faz você mudar o seu estilo de vida: já falei sobre isso aqui com talvez irritante frequência. Mais algumas poucas palavras, somente, sobre o assunto. Ter se debruçado sobre o abismo e praticamente sentido a vertigem da queda faz você retornar para o chão firme de um modo diferente: é como se as coisas não fossem tão firmes assim e, no fundo, como se a segurança não fosse assim tão importante. Na verdade, o que acontece é que você sabe que o chão pode voltar a se abrir sob os seus pés – e isso, depois de um tempo, tira-lhe o medo de cair. Mais do que a garantia paranóica pela firmeza do solo, você aprende a valorizar a caminhada com mais leveza e desenvoltura. Certamente alguém já falou em carpe Diem, naquele «Carpe Diem» barroco que é um eco daquela exortação de São Paulo de que «agora é o tempo favorável» (cf. IICor 6, 2), e é exatamente isso: o dia corre, e importa que ele seja bem vivido. Não dá para saber o futuro; dá pra saber, contudo, que o presente está aí e precisa ser aproveitado. O resto, como sempre, está nas mãos de Deus – e a experiência do último ano deixa essa impressão ainda marcada com vívida nitidez em minha alma. Que ela não se apague.
Muitos foram os que rezaram (e rezam ainda!) por mim, aos quais não posso senão agradecer do fundo do coração e oferecer-lhes as pequenas contrariedades – agora já tão raras…! – da minha doença em agradecimento pela caridade. Que o bom Deus os recompense com maior generosidade do que eu. Quanto a mim, que Ele não me deixe desperdiçar o “tempo extra” que me concedeu sobre esta terra; que eu saiba, sempre, na doença como na saúde, tudo ordenar para a glória d’Ele, é o que mais sinceramente desejo e o que peço aos que teimam em não se esquecer de mim em suas orações.
Hoje vivo diferente: alimento-me melhor e preocupo-me menos, por exemplo, e é realmente uma coisa extraordinária trocar a dispnéia do derrame pleural pela respiração ofegante dos exercícios físicos necessários para baixar o colesterol. Tudo já voltou ao normal; mas num nível mais alto, como numa espiral ascendente, onde me encontro no mesmo lugar de antes de adoecer, sendo que em um patamar mais elevado. Daqui dá para olhar para trás – para baixo! – e para adiante – para o Alto! – e, com um sorriso nos lábios, dar graças a Deus por este ano que já finda. Obrigado, Senhor! Superaste as minhas expectativas. E sigamos vivendo. Vejamos o que ainda posso fazer por Cristo enquanto estou cá por estas paragens. Vejamos que outras maravilhas Ele ainda tem reservadas para mim.