A despeito de tudo o que já falamos sobre o Carnaval, permanece o fato incontestável de que a festa concreta é uma ocasião de pecado para inúmeras pessoas; para além de quaisquer floreios de retórica que possam ser usados para compôr a elegia do período, o dado factual é que, no nosso Brasil do século XXI, Deus Nosso Senhor é ofendido durante estes quatro dias de um modo particularmente intenso. Isto posto, não seria melhor dedicar o Carnaval para rezar em desagravo? Não é uma exigência da caridade o sacrifício da alegria – ainda que a lícita! – para reparar (um mínimo que seja!) as ofensas feitas ao Todo-Poderoso durante este período?
Nem falamos sobre o dever de não pecar no Carnaval, pois este é óbvio. Como já dito e repetido, ninguém tem autorização para pecar ou para colocar-se desnecessariamente em ocasião de pecado, nem no Carnaval e nem em nenhuma época do ano. Mas nos referimos, aqui, àquela alegria lícita à qual todo mundo pode se permitir, àquela justa recreação que, em si, não tem nada de pecado. Não seria uma coisa boa abster-se desta alegria – lícita, repitamos, porque dos prazeres ilícitos todo mundo está obrigado a fugir – em desagravo pelos pecados cometidos no Carnaval?
Uma coisa boa sem dúvidas é. Não há quem o negue: é claro que é uma coisa boa passar o Carnaval, p.ex., em um retiro de oração ou em constantes visitas a Nosso Senhor no Sacrário. É claro que é uma coisa muito boa até mesmo ficar em casa, recolhido e em silêncio, quando se poderia estar confraternizando com amigos – e oferecer isto pela conversão dos pecadores. O que nós negamos é que isto seja uma coisa obrigatória para todo aquele que pretende ser cristão verdadeiro.
Entre as “frases dos santos” que as pessoas gostam de citar para demonizar o Carnaval está uma passagem de uma santa cujo nome eu não me recordo agora. A santa, diz-se, passava o Carnaval inteiro em oração diante de Nosso Senhor Sacramentado para implorar o perdão de Deus pelos pecados cometidos durante estes dias. Sim, a passagem é muito forte e é muito bonita. Sim, é verdadeiramente admirável que a mulher tenha se colocado de joelhos diante do Sacrário para rezar ao Altíssimo em desagravo. Eu sem dúvidas concordo que tal atitude é extremamente meritória e muito agrada a Nosso Senhor.
A questão, contudo, é que as pessoas são diferentes e cada uma tem um (chamemo-lo assim) “carisma específico”. É sem dúvidas uma coisa muito boa, muito santa e muito agradável a Deus, por exemplo, dar todos os seus bens aos pobres e fazer-se frade mendicante, levando uma vida de penúria e de entrega completa ao anúncio do Evangelho. É uma coisa belíssima! Quem, no entanto, ousará dizer que todo mundo está obrigado a vender todos os seus bens e levar uma vida de mendicância para poder salvar a própria alma?! Quem ousará dizer que isto é uma exigência do Evangelho da qual ninguém se pode furtar?
Vem-me à memória a passagem dos Atos dos Apóstolos, quando São Lucas fala sobre os primeiros discípulos que não tinham posses, sendo todas as coisas comuns entre eles. E a passagem, imediatamente subseqüente, de Ananias que mentiu a respeito do preço da venda de um campo: veio entregar aos Apóstolos menos do que efetivamente tinha obtido na venda. São Pedro fulminou: acaso tu não poderias ter mantido o teu campo para ti? Acaso estavas obrigado a vendê-lo?
A mesma passagem, mutatis mutandis, meio que ressoa nos meus ouvidos sempre que eu vejo alguém falar sobre a santa que passava os seus dias de Carnaval rezando em desagravo pelos pecados cometidos nesta época. Provavelmente ela era uma religiosa contemplativa; no entanto, as pessoas que gostam de citar a vida dela para condenar o Carnaval não fazem (e nem defendem que se faça) nem 10% daquilo que uma monja reclusa faz (ou fazia na época dela)! Por qual misterioso motivo a única parte da hagiografia de Santa Santa Teresa dos Andes (ou qualquer outra) que é apresentada como um imperativo categórico cristão consiste, precisamente, na adoração em desagravo durante os dias de Carnaval?
Houve quem dissesse que os cristãos têm, sim, o dever de colocarem em comum os seus bens, abolindo o direito à propriedade privada: trata-se exatamente da Teologia da Libertação. Aquilo que era mérito passa a ser uma inaceitável imposição que, aliás, de tão diabólica anula até mesmo o mérito que havia na pobreza voluntária. Vejo algo de muito parecido no discurso que eleva a penitência praticada no Carnaval ao patamar de exigência da vida cristã. Aquilo que era belo – belíssimo! – transforma-se em uma reles exigência à qual todos estão obrigados: aquilo que era um gesto extraordinário de amor a Deus transforma-se em uma obrigação corriqueira. A imposição da virtude não pode ser jamais virtuosa. Só há mérito em Ananias depositar o valor da venda do seu campo aos pés dos Apóstolos se considerarmos que ele pode perfeitamente dispôr do campo como melhor lhe aprouver – inclusive o mantendo. Só é admirável que os santos tenham passado os seus carnavais em penitência se for lícito aos cristãos brincarem-no de modo sadio.
Podem dizer que é melhor rezar, que a penitência em desagravo agrada mais a Deus, que o sacrifício durante os dias do Carnaval pode dar muitos frutos – tudo isto é verdadeiro. Concordo até mesmo facilmente que é mais meritório passar o Carnaval de joelhos dobrados diante da Santíssima Eucaristia do que atravessá-lo entre passos lentos de frevo atrás dos blocos líricos. Mas, digam o que disserem os igualitaristas dos nossos dias, nem todo mundo é chamado ao mesmo grau de santidade e nem todo mérito é igualmente e por princípio acessível a todo mundo. Quem puder passar o Carnaval rezando em desagravo, faça-o: faz muitíssimo bem! Mas que ninguém se obrigue (ou seja obrigado) a isso. E quem estiver de cilício durante estes dias, lembre-se de oferecê-lo um pouco também pelos outros que estamos de fantasia: não por conta do rosto pintado ou da camisa colorida, mas por nossos outros inumeráveis pecados. Pois, por debaixo da fantasia ou do cilício, a verdade é que pecadores todos somos e todos precisamos de orações.