[Publico um texto que foi enviado por email para a lista Tradição Católica e Contra-Revolução, sobre o Papa Libério. É uma tradução – “meio de fundo de quintal”, como disse a tradutora – de um livro de Patrick Madrid, “Pope Fiction”; tem a sua importância porque joga algumas luzes sobre um período tenebroso da história da Igreja – a crise ariana – com o qual muitas vezes a situação dos nossos dias é (mal) comparada. Leitura interessante e vivamente recomendada; a mensagem original está aqui, sobre a qual fiz apenas umas ligeiras correções tipográficas e de formatação.
O objetivo do artigo é fazer apologética anti-protestantismo, defendendo a infalibilidade papal dos ataques dos hereges seguidores de Lutero. No entanto, presta-se muito bem a uma outra apologética, contra alguns supostos “tradicionalistas” que se esmeram em encontrar, na História da Igreja, alguma (inexistente) situação que possa ser análoga àquela que eles imaginam que a Igreja atravessa hoje; na verdade, em se dando crédito às informações de Patrick Madrid, não há comparação possível – neste aspecto da “perseguição” dos Papas aos “guardiões da Fé” – entre a crise moderna e a crise ariana.]
Papa Libério
Em “Pope Fiction” de Patrick Madrid
“Os católicos afirmam que o papa é infalível em questão de fé e moral, mesmo assim, o Papa Liberio (352-366) assinou o credo ariano, e portanto apoiando o ponto de vista herético a respeito de Cristo. Obviamente, então, a infalibilidade papal é uma falácia.”
O Papa Libério é o primeiro dos três papas “hereges” favoritos, usados por anti-católicos com o objetivo de argumentar contra a infalibilidade papal (os outros dois são Vigilio e Honorio). Supostamente, este pontífice não só manteve uma visão errônea a respeito de Cristo, mas na verdade, apoiou o erro subscrevendo um credo herético. Se isto for verdadeiro, como podem os católicos afirmar a infalibilidade papal?
O século quatro foi um período muito difícil para a Igreja Católica. Apesar de todas as esperanças dos católicos ortodoxos, o concílio de Niceia não pôs fim ao movimento Ariano. Pelo contrário, o bonde ariano ganhou velocidade e um monte de passageiros novos. Especialmente quando o imperador “Constantius” tomou para si a tarefa de propagar o Arianismo por todo o império. Os seus esforços colocaram o imperador em conflito direto com Atanásio, o bispo de Alexandria e um ferrenho defensor da ortodoxia. Constantius foi capaz de conquistar um forte apoio eclesial contra Atanásio. Para infelicidade de seus planos malignos, ele não conseguiu persuadir o Papa Libério, o “altamente importante” bispo de Roma. O tamanho do esforço que ele fez para influenciar Libério é evidência forte da importância óbvia que o papa tinha, mesmo na Igreja antiga.
O Papa Libério, como Atanásio, manteve firmemente o credo do Concílio de Niceia. Isto, para ele, era o teste final da ortodoxia. Não só ele concordava com o grande bispo de Alexandria a este respeito, mas também mostrou seu apoio endossando uma carta assinada por setenta e cinco bispos egípcios que apoiavam Atanásio. Da mesma forma, o Papa Libério rejeitou uma carta enviada pelo imperador e vários bispos hereges que insistiam que ele condenasse Atanásio. A última gota para Constantius foi a rejeição do Papa Libério de um enorme suborno (e também da concomitante ordem do imperador ariano de que o Papa “entrasse na linha”).
Constantius, num ataque de ira, mandou prender Libério e levá-lo para Milão a fim de ser apresentado diante dele em 357 d.C.. O imperador tentou todos os meios de pressão para forçar Libério a submeter-se à sua vontade e a condenar Atanásio, mas o bispo de Roma resistiu. Finalmente, sem nenhum sucesso, Constantius baniu Libério para o exílio em Trácia (Bulgária, Turquia, Grecia).
Até aqui, a maioria dos estudiosos concordam sobre os acontecimentos básicos. Porém é aqui que surgem as verdadeiras questões. Depois de dois anos de prisão, exílio e intimidação, Libério foi solto e pôde voltar para a Sé em Roma. Por que ele foi repentinamente libertado? Ele cedeu finalmente e assinou o credo herético, condenando Atanásio? Ou o imperador percebeu a futilidade de mantê-lo preso? Existe evidência para as duas coisas.
Um número de contemporâneos da época, Sto Atanásio um deles, afirmaram que Libério de fato cedeu e assinou o credo falho. Mas não podemos nos esquecer que estava sob extrema coerção, mentalmente e fisicamente, e estava sendo ameaçado de tortura e de ser executado caso não assinasse. Só por esta razão, o Papa Libério não pode ser considerado totalmente responsável por ter cedido. É verdade, ele poderia ter sido mais corajoso e mais forte, mas é fácil falar quando não se está em situação semelhante. Não podemos nos esquecer a importante dimensão humana deste caso. Muitas pessoas se imaginam sendo resolutamente corajosas diante da tortura ou da morte caso sua fé cristã seja desafiada. Mas quando chega a hora, o comportamento real pode ser bem diferente daquele que se esperava ter. E quando forçados a fazer algo errado através de coerção e ameaças de violência ou morte, a pessoa não é culpada do ato como teria sido se tivesse toda liberdade. Não é diferente
com o Papa Libério.
Enquanto Atanásio manteve firmemente a posição de que Libério tinha cedido e revertido sua opinião, ele (Atanásio) não estava em condições de conhecer todos os fatos. Ele estava escondido naquela época e não tinha à sua disposição as melhores informações a respeito do assunto (John Chapman, O.S.B. – Enciclopedia Catolica) . Da mesma forma, S. Jerônimo acreditava que Libério cedeu sob pressão, embora sua posição era baseada numa série de cartas que são hoje consideradas falsas. O próprio ariano, “Philostorgius”, se uniu à S. Jerônimo. O historiador antigo Sozomen afirmou que Libério assinou vários credos, mas nenhum deles era explicitamente herético; no pior dos casos, eles eram ambíguos em sua Cristologia.
Um historiador da Igreja (John Chapman, O.S.B. – Enciclopedia Catolica) explica as razões para acreditar na inocência de Libério com relação a esta acusação:
“Pode parecer que quando Sto. Hilario escreveu seu livro ‘Adversus Constantium’ em 360, pouco antes do seu retorno do exílio no Oriente, ele acreditava que Libério tinha tropeçado e renegado Sto Atanásio (i.e., a posição ortodoxa); mas suas palavras não são bem claras. Quando ele escreveu ‘Adversus Valentem et Ursacium’ depois do seu regresso, ele demostrou que a carta ‘Studens Paci’ era uma falsificação, anexando a ela algumas cartas nobres do Papa. Agora isto parece provar que os Luciferianos estavam usando a ‘Studens Paci’ contra Rimini (concílio), para poder mostrar que o Papa, que agora na opinião deles, era indulgente demais para com os bispos afastados, era ele próprio culpado de uma traição ainda pior contra a causa católica antes do seu exílio. Na opinião deles, tamanha queda iria “des-papa-lo” e invalidar todos os seus atos subsequentes. Que Sto Hilario tenha tido tanto trabalho para provar que ‘Studens Paci’ era forjada torna evidente que ele não acreditava que Libério tinha caído depois do exílio; caso contrário seus esforços teriam sido inúteis. Conseqüentemente, Sto. Hilario se torna uma testemunha forte a favor da inocência de Libério. Se Sto. Atanásio acreditava na queda de Libério, isto aconteceu quando ele estava às escondidas, e imediatamente após o suposto acontecimento; aparentemente ele foi enganado momentaneamente pelos rumores espalhados pelos arianos.”
Embora seja possível que o Papa Libério tenha fraquejado sob a pressão de Constantius, não podemos ignorar esta forte evidência de que ele não o fez. Tanto St. Sulpicio Severo (403 d.C.) como o Papa Sto Anastácio (401 d.C.) mantêm que Libério permaneceu firme, se recusando a ceder (John Chapman, O.S.B. – Enciclopedia Catolica). Esta afirmação é reforçada pelo caráter do seu retorno à Roma depois do exílio; ele recebeu uma acolhida de herói quando entrou na cidade. De fato, o regresso de Libério foi um de triunfo. Se ele tivesse fraquejado e assinado o credo ariano, certamente ele não teria sido tratado desta maneira.
Novamente, uma análise cuidadosa dos detalhes históricos está longe da crença comum de que o Papa Libério tenha falhado:
“Os fortes argumentos para a inocência de Libério são ‘a priori’. Se ele tivesse realmente cedido à pressão do imperador durante seu exílio, o imperador teria publicado sua vitória por todos os cantos; não existiria a possibilidade de nenhuma dúvida; teria sido mais notório do que a vitória sobre Hosius. Mas se ele foi libertado porque os romanos exigiram a sua volta, porque sua deposição tinha sido demasiado anti-canônica, porque sua resistência tinha sido heróica, e porque Felix não tinha sido reconhecido como papa, então podemos ter certeza de que ele seria suspeito de ter feito alguma promessa ao imperador; os arianos e os felicianos também, e logo os luciferianos, não teriam nenhuma dificuldade em espalhar o relato de sua queda e receber crédito por isso. É difícil ver como Hilário no exílio e Atanásio no esconderijo pudessem não acreditar tal estória, quando ouviram que Libério teria retornado, embora os outros bispos exilados ainda não tivessem liberados. E mais, o decreto do papa depois de Rimini, de que os bispos afastados não poderiam ser restabelecidos a menos que mostrasssem sua sinceridade através de vitalidade contra os arianos, teria sido risível, se ele próprio tivesse caído antes, e não tivesse publicamente feito penitência pelo seu pecado. Mesmo assim, podemos estar certos de que ele não fez nenhuma confissão pública sobre ter falhado, nenhuma renúncia, nenhuma reparação.” (John Chapman, O.S.B. – Enciclopedia Catolica)
Se o imperador Constantius tivesse vencido essa briga de “quem pode mais” com o pontífice romano, por que ele não a divulgou? Pode-se imaginar como ele teria explorado tal golpe. A capacidade de soltar aos quatro ventos que o papa tinha cedido às suas exigências ter sido uma propaganda de enorme valor para o imperador. Afinal, a finalidade dele tentar forçar o Papa Libério a assinar o credo herético era para que ele pudesse usá-lo como exemplo a ser seguido por outros bispos ortodoxos. Seu objetivo era precisamente explorar a influência e prestígio do papa.
Se o papa Libério acabou assinando o credo, certamente Constantius teria bradado aos quatro ventos. Mas o imperador foi silencioso. Nem ele, nem seus acessores mencionaram algo sobre isso. Embora seja verdade de que este argumento esteja baseado no silêncio, não se pode negar que este fato histórico particular torna mais difícil imaginar que o papa Libério tenha de fato fraquejado.
Por fim, quando Constantius morreu, o arianismo perdeu o seu maior defensor. A ortodoxia voltou à tona, assumindo sua posição prévia. O papa Libério atacou os bispos arianos por sua heresia, e exigiu arrependimento total da parte deles antes que pudesse retornar à comunhão com a Igreja. De fato, eles foram tratados como colaboradores do inimigo e traidores de Cristo. Como poderia Libério ter agido de tal forma se ele mesmo tivesse assinado o credo ariano? Alguém sem dúvida teria mostrado a hipocrisia de tal ato. Não houve, porém, tal clamor.
Assim vemos que existem argumentos para ambos os lados da questão, com peso na crença de que o papa Libério não se dobrou diante da pressão feita por Constantius. Mas mesmo se ele tivesse, isso não afetaria a infalibilidade papal. Supondo que o pior cenário seja verdadeiro, papa Libério somente assinou um credo herético depois de dois anos de perseguição, exílio e coerção nas mãos do imperador. A tal assinatura não se deu por sua livre e espontânea vontade. Por esta razão, a infalibilidade papal não é um problema, pois infalibilidade requer que o papa esteja exercendo-a de livre vontade – à parte de qualquer pressão externa. E isto claramente não foi o caso se, de fato, Libério tenha assinado o documento. Obviamente, então, a infalibilidade papal não estava em risco.