Eu me recordo da primeira vez que ouvi a palavra “retórica”. Eu tinha por volta de quinze anos e estava lendo Dom Casmurro. Em um certo momento do livro, Bentinho vai descrever os “olhos de ressaca” de Capitu (aliás, a expressão evocava-me então olhos inchados e olheiras profundas de quem passou a noite tomando um porre) e faz então a célebre súplica: «Retórica dos namorados! Dai-me uma compreensão exata do que foram para mim aqueles olhos de Capitu!». A despeito das aspas, cito de memória: não fui procurar no livro a citação literal. Mas o vocativo inicial é exatamente este, tenho certeza. E eu não fazia a menor idéia do que era retórica…
Fiz a digressão porque me lembrei hoje da passagem machadiana, na qual fica evidente a reconhecida incapacidade do protagonista de descrever a contento os olhos da mulher amada – razão pela qual ele pede auxílio à “Retórica dos Namorados”, assim mesmo, personificada. E me lembrei da passagem porque li a mais recente coluna d’O Domingo [esta, que vai ao lado] e me senti um pouco como Bentinho: ele, incapaz de descrever os olhos de Capitu e, eu, incapaz de expressar o propósito do artigo do pe. Libanio no semanário católico. E senti um ímpeto de gritar: “Retórica dos excomungados! Dai-me uma compreensão do que foram aquelas palavras do pe. Libanio!”. Porque, se é talvez necessário enamorar-se para entender o fascínio que provocam os olhos de ressaca de Capitu, talvez seja também necessário colocar-se sob a ótica de quem não tem Fé para que façam algum sentido as palavras do jesuíta na coluna de ontem d’O Domingo.
Porque, sinceramente, o texto me parece mal escrito, sem coesão, sem encadeamento de idéias, sem deixar claro a quê ele se propõe. Começa o jesuíta invocando uma outra “via sem Deus” [?], que “não apela à ciência, mas à mera sabedoria e experiência humanas, feitas à margem de toda tradição religiosa e de fé”. O conceito vem assim mesmo, jogado, sem dizer se isso é uma constatação, um programa a ser buscado, a expressão da própria opinião ou o que seja. Além disso, o conceito é totalmente nonsense simplesmente porque a “sabedoria e experiência humanas” estão necessariamente imbuídas de “tradição religiosa e de fé”, na absoluta totalidade dos povos e das culturas existentes. Simplesmente não existe sabedoria ou experiência humanas que tenham sido construídas “à margem” (!) de “toda” (!!) “tradição religiosa ou de fé”. Por completa impossibilidade de existência do objeto descrito no início do texto, o parágrafo não tem o menor sentido prático.
Também é impossível saber onde se encaixam, nisto, as referências ao Carpe Diem. Não fica claro por qual misterioso motivo a tal “via sem Deus” deveria se preocupar somente com o presente. Aliás, colocando as coisas sob a correta perspectiva católica, o verdadeiro carpe diem encontra-se exatamente no chamado à conversão do Evangelho: é hoje o dia que tu tens para te converteres, é hoje o tempo favorável, e portanto tu deves hoje buscar o Senhor, enquanto Ele está perto. O verdadeiro Carpe Diem se encontra na clássima imagem do santo esmagando um corvo – cras, cras – enquanto ostenta uma cruz na qual está escrito hodie. Acusar o Cristianismo de ser uma religião “do passado” é não fazer a menor idéia do que seja o Cristianismo, é não ter nunca lido uma página sequer do Evangelho, é nunca ter passado cinco minutos observando uma imagem de Santo Expedito.
Seguem-se as loas a um presente vislumbrado de uma maneira hedonista: “então nos resta somente o presente conhecido, no qual escolhemos o que nos traz felicidade”. E, embora esta visão de mundo seja contraposta a um vislumbre de absoluto – “Existem valores que não inventamos. Estão aí diante de nós: amor, beleza, justiça, convivência” -, em momento algum ela é rechaçada com a veemência que deve. Muito pelo contrário. O que o pe. Libânio parece querer fazer é sacramentar esta opção pela vida apenas no tempo presente, é legitimar o “caminho da sabedoria humana sem Deus” (título do artigo). Retórica dos desesperados, dai-me compreender os insondáveis propósitos do velho jesuíta! A conclusão do artigo parece absurda para estar presente em um semanário católico, mas está lá com todas as letras. Transcrevo:
Não se trata de nenhum “presentismo” desregrado, nem de balbúrdia existencial, mas de honestidade humana que nos traz a felicidade. Não faz falta nenhuma transcendência além da história. A civilização ocidental, ao longo do século, está a preparar tal caminho. Cabe-nos trilhá-lo.
E c’est fini. No final, não dá para saber se tal “caminho” foi inventado pelo pe. Libânio ou se ele o está tomando emprestado de outros, e – neste último caso – em momento algum aparece o menor juízo de valor do jesuíta sobre uma filosofia de vida tão estranha à Doutrina Católica. Por completa ausência de aspas indicando citações ou de qualquer exposição textual de refutações às idéias apresentadas ao longo do texto, não resta ao leitor da coluna senão considerar que, para o pe. Libanio, a transcendencia não faz mesmo falta nenhuma, que esta é a marcha inexorável da civilização diante da qual a única atitude que podemos ter é… a de acompanhá-la. Retórica dos “civilizados”, dai-me captar a lógica de certos colunistas “católicos”! Porque certos artigos estão para muito além de minha vã compreensão.
Como pode um jesuíta – logo um jesuíta! – conclamar os católicos a trilharem os caminhos ateus de uma civilização esquecida do Altíssimo? Como pode um filho de Santo Inácio capitular diante dos tolos do mundo moderno que dizem que Deus não existe e – pior ainda! – pretender que esta sua atitude covarde seja a única coisa que resta a ser feita? Como podem idéias desta jaez serem veiculadas impunemente em um folheto de ampla circulação de uma conhecida editora católica?
Parece que a Editora Paulus não está satisfeita. Mas ela não está satisfeita – pasmem! – é com os protestos descontentes dos católicos que, perplexos, ousaram cobrar explicações sobre este artigo ateu d’O Domingo. No Twitter, um amigo meu (o @tht) foi bloqueado pela @EditoraPaulus por conta das denúncias inconvenientes que teve a pachorra de fazer:
A Editora Paulus, responsável pel’O Domingo, carrega o nome do grande Apóstolo São Paulo. Exatamente o Apóstolo dos Gentios, o guerreiro da Fé responsável por levar a mensagem do Evangelho aos povos pagãos! Nos dias de hoje, São Paulo parece estar muito mal representado. O Apóstolo arrastou os povos pagãos para os pés de Nosso Senhor. É revoltante ver que, no século XXI, a Editora Paulus parece querer convencer os católicos a trilharem os caminhos da “civilização” para a qual não faz falta nenhuma Transcendência.