É interessante que a Quaresma — o tempo da Misericórdia por excelência — comece com uma solene ameaça: “arrependei-vos e crede no Evangelho!”. É com esta exortação direta, bruta, sem rodeios, sem floreios (poder-se-ia até dizer “intolerante”…) que a Igreja inicia este tempo santo; provavelmente um tempo de graça e de perdão como nenhum outro no ano litúrgico.
Este santo brado quaresmal, perceba-se, vai na contramão daquela espiritualidade amorfa dos dias de hoje. O que a Liturgia das Cinzas procura não é o alívio da consciência dos que pecam, não é encontrar justificativas para os maus comportamentos nem listar causas alheias para desculpar as falhas de caráter. Ao contrário, o dia de hoje existe para excitar o arrependimento, este que é o caminho necessário para o perdão. A perda da noção do pecado tem uma consequência mais grave do que a mera reincidência no pecado. Quando se perde a noção do pecado, perde-se também a possibilidade do perdão.
Há uma diferença muito importante entre o pecado que é perdoado e o pecado que não é cometido (ou, dizendo melhor, o pecado que não se percebe cometido). Quem é perdoado muda de vida; quem não peca, ou não percebe que peca, continua indefinidamente do mesmo jeito. O milagre da elevação sobrenatural da natureza humana só se realiza naqueles que se reconhecem pecadores e, caindo em si, prostram-se, em lágrimas, diante da Fonte da Misericórdia. Sim, a fonte de Água Viva jorra eternamente para todos os que passam, mas somente os que têm sede se beneficiam dela.
Há diversas passagens no Novo Testamento que revelam, das mais várias maneiras, esta verdade fundamental: há mais alegria nos Céus por um só pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não precisam de perdão. O Evangelho, em um certo sentido, é antes o reconhecimento do pecado que a exaltação da santidade. O fariseu jejuava e pagava os dízimos, mas foi o publicano quem saiu justificado da presença de Deus.
Não creio que esta passagem se deva interpretar com reducionismos, como se o fariseu fosse simplesmente hipócrita e se apegasse às minudências da Lei em detrimento dos seus mandamentos mais importantes — pagando “o dízimo da hortelã, do endro e do cominho” enquanto desprezava “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade” (cf. Mt 23, 23). Não, que o fariseu da parábola registrada por São Lucas (cf. Lc 18, 10-14), o que rezava de pé no Templo, é outro. Este não era nem ladrão, nem injusto, nem adúltero; é perfeitamente de se crer que, além de jejuar e pagar o dízimo, ele honrasse os seus pais, dissesse a verdade, amasse o seu próximo. A hipocrisia não é o único pecado do mundo e não há nenhum elemento na perícope que autorize tachar de hipócrita aquele homem. Aquilo que Nosso Senhor censura nele é outra coisa: é o orgulho, a soberba.
E o que é a soberba? Santo Tomás ensina que soberba (superbia) é alguém pretender aquilo que está acima de suas possibilidades (Summa, II-IIae, q. 162, a.1, Resp.). A soberba é um desejo desordenado da própria excelência (id. ibid., a.2., Resp.) — inordinatus appetitus propriae excellentiae. Ou seja, a soberba é, exatamente, o fundamento e o ponto de chegada da espiritualidade contemporânea, a que diz que nada é pecado e que as pessoas devem ficar em paz consigo mesmas. A espiritualidade inimiga das culpas, que tudo releva, que invoca fraquezas humanas para afastar responsabilidades individuais, é uma espiritualidade da soberba no rigor técnico da palavra: é enxergar uma excelência que não existe e, aferrando-se a esta quimera, negar às almas o poder transformador da graça divina, fechando-lhes assim as portas do Reino dos Céus.
É, em suma, uma anti-espiritualidade, o naturalismo mais grosseiro, o conformismo mais estéril. É a ideia medíocre de que as pessoas não são capazes de ser melhores, é a noção blasfema de que o pecador impenitente é o melhor que Deus pode fazer de um filho Seu. Os adeptos de tão estranha religião, naturalmente, voltam-se com furor contra aqueles que pregam a importância e a necessidade do arrependimento dos pecados, do propósito de mudar de vida, da penitência. Odeiam a Quaresma e tudo fazem para esvaziá-la do seu sentido.
Contra eles e contra suas doutrinas ressoam as palavras eternas da Santa Igreja: arrependei-vos e crede no Evangelho! Palavras que são ao mesmo tempo uma ameaça terrível, um bálsamo reconfortante, um convite amoroso, uma doce esperança. Nós somos maus — não adianta negá-lo. Mas Deus nos ama. E é tempo de conversão.