Sobre a suposta discrepância entre os Evangelhos com respeito à genealogia de Nosso Senhor
Uma vez que a genealogia de Cristo nos é dada de diferentes maneiras por Mateus e Lucas, supondo-se em geral que estejam em desacordo em suas afirmações; e uma vez que todo crente, pelo desejo de conhecer a verdade, tem sido levado a empreender alguma investigação para explicar as passagens, podemos também acrescentar o relato que nos chegou. Referimo-nos à história sobre essas passagens com respeito à harmonia da genealogia dos Evangelhos que nos foi transmitida por Africano numa epístola a Aristides. Depois de ter refutado as opiniões dos outros, considerando-as forçadas e fictícias, apresenta o relato, por ele mesmo certificado, com as seguintes palavras: “Era costumeiro em Israel calcular os nomes das gerações, ou de acordo com a natureza ou de acordo com a lei: de acordo com a natureza, pela sucessão de filhos legítimos; de acordo com a lei, quando outro criava filhos em nome de um irmão que houvesse morrido sem deixar filhos. Pois uma vez que a esperança de uma ressurreição ainda não fora claramente dada, imitavam a promessa que se cumpriria por um tipo de ressurreição mortal, com vistas a perpetuar o nome da pessoa que morrera. Portanto, alguns dos que estão inseridos nesse quadro genealógico sucedem-se uns aos outros na ordem natural de pai e filho; alguns, repetindo, nasceram de outros, tendo sido atribuídos a outro pai por nome, tendo sido registrados tanto os pais reais quanto os atribuídos. Assim também, os Evangelhos não fizeram declarações falsas, quer calculando pela ordem da natureza, quer de acordo com a lei. Visto que as famílias descendentes de Salomão e de Natã foram de tal maneira misturadas por substituições em lugar dos que haviam morrido sem filhos, de acordo com casamentos e perpetuação de descendência, as mesmas pessoas são devidamente consideradas em um aspecto pertencente a uma delas e em outro aspecto à outra. Assim é que ambos os relatos são verdadeiros, ou seja, dos que foram considerados pais, e dos que realmente foram pais, e chegam a José com considerável complexidade, é verdade, mas com grande precisão. Para que isso, contudo, possa tornar-se evidente, vou estabelecer as séries das gerações. Calculando (na genealogia de Mateus) as gerações desde Davi, passando por Salomão, descobre-se que o terceiro de trás para frente é Matã, que gerou Jacó, pai de José. Mas calculando, como Lucas, desde Natã, o filho de Davi, descobrir-se-á que o terceiro é Melqui, cujo filho era Eli, o pai de José. Sendo José, portanto, nosso objeto proposto, vamos mostrar como aconteceu de cada um ser registrado como seu pai: Jacó, conforme se deduz de Salomão, e Eli, de Natã; também, como aconteceu de esses dois, Jacó e Eli, serem irmãos; e, além disso, como se comprova que os pais dele, Matã e Melqui, sendo de famílias diferentes, são avôs de José.
Matã e Melqui, tendo se casado em sucessão com a mesma mulher, tiveram filhos irmãos pela mesma mãe, pois a lei não proibia a uma mulher que tivesse perdido o marido, quer por divórcio, quer pela morte dele, casar-se de novo. Matã, portanto, que remonta sua linhagem a Salomão, primeiro teve Jacó, por meio de Esta, pois é esse o seu nome conforme transmitido pela tradição. Com a morte de Matã, Melqui, que remonta sua descendência a Natã, casou-se com ela, pois era da mesma tribo, ainda que de outra família, e, conforme se disse, teve o filho Eli. Assim, portanto, vamos encontrar duas famílias diferentes, Jacó e Eli, irmãos pela mesma mãe. Um desses, Jacó, pela morte do irmão, casou-se com a viúva, tornou-se pai de um terceiro, ou seja, José, seu filho tanto pela natureza como por atribuição. Assim, está escrito: Jacó gerou José. Mas de acordo com a lei, era filho de Eli, pois Jacó sendo seu irmão, deu-lhe descendência. Desse modo, a genealogia traçada também por intermédio dele não será considerada imprecisa, sendo, de acordo com Mateus, dada da seguinte maneira: “mas Jacó gerou a José”. Mas Lucas, por outro lado, afirma: “que era o filho, conforme se supunha [pois isso também ele acrescenta], o filho de José, o filho de Eli, o filho de Melqui”. Visto que não era possível expressar a genealogia legal de modo mais distinto, ele omite por completo a expressão “ele gerou”, numa genealogia como essa, até o fim; tendo chegado a Adão, “que era filho de Deus”, resolve toda a série referindo-se a Deus. Isso também não é impossível de provar nem conjectura vã. Pois os parentes de Nosso Senhor, de acordo com a carne, seja para apresentar as próprias origens ilustres, seja para simplesmente mostrar o fato, mas de qualquer maneira apegados estritamente à verdade, também transmitiram os seguintes relatos: Salteadores da Iduméia, em ataque a Asquelom, cidade da Palestina, levaram Antípatro cativo junto com outras pessoas, do templo de Apolo, construído perto das muralhas. Ele era filho de um Herodes, ministro do templo. O sacerdote, entretanto, não foi capaz de pagar o resgate pelo filho. Antípatro foi instruído nas práticas dos idumeus e, mais tarde, amparado por Hircano, o sumo sacerdote da Judéia. Ele foi subseqüentemente enviado por Hircano numa embaixada a Pompeu e, tendo restaurado a ele o reino, que tinha sido invadido por Aristóbulo, o irmão deste último, teve a sorte de ser nomeado procurador da Palestina. Antípatro, porém, tendo sido traiçoeiramente morto pelos que invejavam sua sorte, foi sucedido pelo filho Herodes que foi mais tarde nomeado rei dos judeus, por decreto do senado sob Antônio e Augusto. Seus filhos foram Herodes e os outros tetrarcas. Esses relatos dos judeus também coincidem com os dos gregos. Mas, como as genealogias dos hebreus tinham sido regularmente mantidas nos arquivos até então, e também as que se referiam aos antigos prosélitos, como por exemplo, o amonita Aquior e a moabita Rute, e aos que se misturaram aos israelitas na saída do Egito, e como a linhagem dos israelitas nada tinha de vantajoso para a linhagem de Herodes, ele foi incitado pela consciência de sua descendência desprezível e destinou todos os registros das famílias deles às chamas, pensando que ele mesmo poderia parecer de nobre origem, pelo fato de ninguém mais ser capaz de traçar sua linhagem pelos registros públicos, ligando-o aos patriarcas ou aos prosélitos e àqueles estrangeiros chamados georae. Uns poucos, porém, dos cuidadosos, quer pela lembrança dos nomes, quer por terem em seu poder de alguma outra maneira, por meio de cópias, registros particulares próprios, gloriavam-se na idéia de preservar a memória de sua nobre descendência. Entre esses estavam as pessoas acima mencionadas, chamadas desposyni por conta de sua afinidade com a família de nosso Salvador. Os que saíram de Nazaré e Koshba, vilas da Judéia, para outras partes do mundo, explicaram que a mencionada genealogia retirada do livro de registros diários era tão fidedigna quanto possível. Desse modo, quer o seja quer não, como eu ou qualquer juiz imparcial diria, certamente ninguém poderia descobrir explicação mais óbvia. E isso, então, deve bastar nesse assunto, pois, ainda que não seja sustentado por testemunhos, nada temos a apresentar que seja melhor ou mais coerente com a verdade. O evangelho, em seu todo, declara a verdade”. Ao final da mesma epístola, esse escritor (Africano), acrescenta o seguinte: “Matã, cuja descendência remonta a Salomão, gerou a Jacó, com a morte de Matã, Melqui, cuja linhagem vem de Natã, ao se casar com a viúva daquele, teve Eli. Assim, Eli e Jacó eram irmãos pela mesma mãe. Morrendo Eli sem filhos, Jacó lhe deu descendência, sendo José pertencente a si de acordo com a natureza, mas a Eli de acordo com a lei. Desse modo, José era filho de ambos”. Até aqui, Africano. Uma vez assim traçada a linhagem de José, há, ao mesmo tempo, possíveis indícios de que Maria também era da mesma tribo, já que, pela lei mosaica, não se permitiam casamentos entre tribos diferentes. Pois a ordem era casar-se com um do mesmo povo e da mesma família, de modo que a herança não fosse transferida de uma tribo para outra. E isso deve bastar no presente ponto.
Eusébio de Cesaréia, “História Eclesiástica”
Livro I, Capítulo VII
CPAD – 1ª Edição
Rio de Janeiro, 1999
pp. 31-34
P.S.: O livro está disponível no scribd.
P.P.S.: A explicação de Africano está imprecisa, porque São Lucas diz-nos que o terceiro a partir de Nosso Senhor é Matthat (cf. Lc 3, 24), e não Melchi (este é o quinto). Uma nota de rodapé no livro do scribd diz simplesmente “nesta passagem Africanus comete um erro”. O mais provável é que, por Melchi, Africano esteja se referindo a Matthat todas as vezes que nomeia aquele. De todo modo, o objetivo do historiador é explicar o motivo da suposta discrepância, e não “retraçar” a genealogia de todos os ascendentes de Nosso Senhor até Adão – um erro de cópia de um nome não compromete a explicação.