Não faltam apenas bons pastores na Igreja: também se precisa de bons súditos

Nestes dias terríveis, nesta hora lancinante, neste momento agônico onde a crise da Igreja parece atingir o paroxismo, é preciso — mais do que nunca! — manter os pés no chão e os olhos voltados para o Alto; é preciso não se precipitar e não se deixar levar pelos instintos da turba, por justos que eles pareçam neste momento; é preciso respirar fundo e tomar a decisão mais racional e mais correta, por mais antipática que ela se apresente agora.

É um momento particularmente difícil e que nos deixa desnorteados! Grandes baluartes do Catolicismo tradicional, em pungente descompostura, vêm a público quais camponeses desesperados, munidos de archotes e forquilhas, cercar a Cidade Eterna em uma noite de lua minguante para pedir — quem o ousaria imaginar jamais? — a cabeça do Cristo-na-Terra. Católicos tradicionais, conservadores, pedindo em público a renúncia do Papa! Seria inacreditável, uma piada de mau gosto, uma burla grotesca, se não fosse a terrível e dolorosa verdade.

E nem estamos falando dos críticos inveterados de tudo o que sucede e procede do Vaticano II. Agora são pessoas equilibradas, apostolados sérios, nomes respeitáveis que fazem coro à denúncia e ao brado do Mons. Viganò pela renúncia do Papa Francisco por conta do escândalo do Card. McCarrick. É o Rorate Caeli que publica um editorial dizendo que “[o Papa] Francisco deve ir”; é o Michael Voris dizendo que o “Papa Francisco deve renunciar”; é o Thomas Peters — compartilhado pelo Scott Hahn! — dizendo que se as acusações de Viganò forem verdadeiras “a única coisa responsável que o Papa pode fazer é renunciar”.

É preciso ter calma. É preciso ter paciência. É preciso sofrer as dores, a vergonha, a infâmia, é preciso entornar corajosamente o cálice até a última gota, até lhe ver o fundo. É preciso, na falta de expressão melhor, resignar-se.

Neste momento de grave crise é preciso ser tradicional, é preciso ser conservador, é preciso ser católico. E a coisa católica, conservadora e tradicional a ser feita certamente não é pedir a renúncia do Soberano Pontífice. Nem mesmo situações extraordinárias autorizam que se lance mão de expedientes revolucionários; não é lícito fazer o mal para que dele advenha um bem. Súditos exigirem nas ruas a renúncia do monarca não é uma atitude conservadora, subordinados clamarem nas praças pela abdicação dos superiores não é uma coisa tradicional, leigos publicarem manifestos para que o Papa renuncie ao Trono de Pedro é coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo.

É preciso dizer “não”. É preciso resistir.

E não se trata de menoscabar as denúncias do Mons. Viganò. Elas são graves e precisam ser levadas a sério por toda a Igreja. Como disse alguém, não é uma disputa intestina entre conservadores e progressistas no seio da Igreja Católica: é a dor provocada a todos por um clero corrompido, um clero por cuja santificação cada membro do Corpo de Cristo é chamado a derramar as suas lágrimas.

Não se trata, insista-se, de desprezar as denúncias do ex-núncio. Ao contrário, é para que elas sejam levadas suficientemente a sério que é preciso separar, no seu testemunho, o que é denúncia e o que é opinião, o que é problema apontado e o que é solução apresentada. A rede de homossexuais que existe no clero é a denúncia, clara e inequívoca, que ou é verdadeira ou é falsa; a demissão de todos os de alguma maneira envolvidos no acobertamento desta rede, isso é uma proposta de solução, que não necessariamente é a única solução possível. Para uma coisa ser verdadeira não é necessário que a outra também o seja; para se dar crédito à denúncia feita pelo Arcebispo, não é necessário adotar a mesma opinião do Arcebispo quanto à resposta que se lhe deve dar.

A íntegra do testemunho de Mons. Viganò pode ser lida aqui. Não acho, sinceramente, que lhe seja possível questionar o conteúdo; acredito que o Arcebispo é sincero e, o seu relato, é substancialmente verdadeiro. Não acho que a defesa do Papa exija desacreditar as palavras do Arcebispo, como parece ser a linha adotada pelo Andrea Tornielli (primeiro aqui e, mais detalhadamente, aqui): com isso se corre o risco de perder de vista a dimensão da corrupção do clero e de deixar de tomar as medidas necessárias à sua purificação.

Porque é evidente que há corruptos entre o clero; é evidente que a Igreja agoniza e precisa de profunda reforma doutrinária e moral. Todo mundo sabe disso; sem dúvidas o Papa Francisco o sabe também.

Estou disposto a aceitar que o Papa Francisco estava certamente informado das acusações contra o Card. McCarrick. Quem, no entanto, será capaz de aquilatar o quanto ele efetivamente lhes dava crédito? Ou se ele acreditava que os pecados do Cardeal pertenciam a um passado do qual Sua Eminência já estava arrependido? Ou se achava que as medidas tomadas contra ele já tinham cumprido o seu caráter ressarcitório, e, afinal de contas, toda pena há de ter o seu fim? Não há, absolutamente!, nenhum liame necessário entre reabilitar um cardeal homossexual e apoiar a agenda gay. Há erros de juízo prático de diversas matizes; nem todos eles têm a mesma dimensão; e nenhum, absolutamente nenhum erro do Romano Pontífice nesta seara autoriza os católicos a saírem às ruas para lhe coagir a renunciar.

Defender o Papa, como eu dizia, não exige desacreditar o Mons. Viganò. É o contrário: é defender a denúncia do Mons. Viganò que exige desacreditar a campanha pública pela saída do Papa Francisco. Tal campanha é moderna e revolucionária, é anti-tradicional, desnecessária e contraproducente. O Papa obviamente não é “infalível” em seus atos de governo (a categoria nem se pode aplicar aqui), mas é soberano. E ser soberano significa, justamente, que ninguém lhe pode exigir que responda pelos eventuais erros que cometa.

O Papa pode perfeitamente renunciar. Mas pode também, e também perfeitamente, não renunciar, e não há poder algum sobre a terra que tenha o direito de lhe exigir a Grã Renúncia. E se os fiéis não podem demandar a renúncia do Papa — como de fato não o podem –, então essa mobilização toda nas redes sociais é fumaça e pirotecnia, e pior, é desperdício de esforços e desvio de rumos.

Que choremos pela Igreja, que Lhe ofereçamos as nossas dores e coloquemos o nosso trabalho à Sua disposição. E que rezemos pelo Papa, rezemos pelo Doce Cristo-na-Terra, peçamos a Deus que o ilumine e que nos ilumine. Que o Espírito Santo nos ajude: que ensine o Papa a ser Pastor, e nos ensine a nós, leigos, a sermos súditos.

“Se estes se calarem, clamarão as pedras!”

Ainda falando sobre o Scott Hahn, a leitura do “Todos os caminhos vão dar a Roma” (DIEL, 5ª Edição, Lisboa, 2005) revelou-me uma coisa interessante e completamente inusitada: a primeira aproximação que o casal Hahn teve da Doutrina Católica foi justamente num dos temas mais controversos e impopulares mesmo entre os que se dizem católicos: o controle de natalidade. Quando ainda eram protestantes, os dois renderam-se à força dos argumentos católicos sobre o assunto! Vale muitíssimo a pena transcrever – embora longas – as passagens mais relevantes desta narrativa:

Scott: Perguntei-lhe [a Kimberly, sua esposa] que coisa era essa tão interessante que tinha descoberto sobre a contracepção. Disse-me que até 1930 a posição de todas as Igrejas Cristãs em relação a este tema tinha sido unânime: a contracepção estava mal em qualquer circunstância.

O meu argumento foi:

– Se calhar demoraram todo esse tempo a libertarem-se dos últimos vestígios do catolicismo.

A Kimberly avançou um pouco mais:

– Mas sabes que razões eles dão para se oporem ao controlo de natalidade? Têm argumentos mais sérios do que possas pensar.

Tive que admitir que não conhecia as suas razões. A Kimberly perguntou-me se estava disposto a ler um livro sobre o tema e deu-me O controlo da natalidade e a aliança matrimonial, de John Kippley (obra que foi posteriormente revista e intitulada O sexo e a aliança matrimonial). Eu era um especialista em teologia da Aliança e pensava que tinha lido todos os livros em que a palavra aliança figurava no título; por isso, descobrir um que não conhecia espicaçou-me a curiosidade.

Vi-o e pensei: Editorial Litúrgica? Este tipo é um católico! Um papista! O que é que anda a fazer a plagiar a noção protestante da aliança? Senti ainda mais curiosidade por ver o que dizia. Sentei-me a ler o livro. Pensei: “Isto não está certo. Não pode ser… O que este tipo diz faz sentido”. Demonstrava que o casamento não é um mero contrato, envolvendo apenas um intercâmbio de bens e serviços. O casamento é sobretudo uma aliança que implica um intercâmbio de pessoas.

O argumento de Kippley era que qualquer aliança tem um acto pelo qual se consuma e se renova; e que o acto sexual dos cônjuges é um acto de aliança. Quando a aliança matrimonial se renova, Deus utiliza-a para dar nova vida. Renovar a aliança matrimonial e usar contraceptivos para evitar uma potencial nova vida seria tanto como receber a Eucaristia para a seguir a cuspir no chão.

Kippley prosseguia dizendo que o acto conjugal demonstra de modo único o poder doador de vida do amor na aliança matrimonial. Todas as outras alianças mostram e transmitem o amor de Deus, mas só na aliança conjugal o amor é tão real e poderoso que comunica a vida.

Quando Deus fez o ser humano, homem e mulher, o primeiro mandamento que lhes deu foi o de serem fecundos e se multiplicarem. Era assim uma imagem de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo, três em um, a família divina. De maneira que quando “os dois se fazem um” na aliança matrimonial, o “um” torna-se tão real que nove meses depois podem ter que lhe dar um nome! O filho encarna a unidade da sua aliança.

Comecei a compreender que sempre que a Kimberly e eu realizávamos o acto conjugal, realizávamos algo sagrado; e que cada vez que frustrávamos o poder de dar vida do amor com a contracepção, fazíamos algo profano (tratar algo sagrado de forma comum profana-o, por definição).

[…]

Foi então que descobri que todos os reformadores – Lutero, Calvino, Zwinglio, Knox, e todos os outros – tinham mantido sobre esta questão a mesma posição que a Igreja Católica. Isso perturbou-me ainda mais. A Igreja Católica era a única Igreja Cristã em todo o mundo que tinha a valentia e a integridade de ensinar esta verdade tão impopular.

[…]

Kimberly: O pequeno grupo [do trabalho do seminário] que teve que se debruçar sobre a contracepção reuniu-se brevemente no primeiro dia ao fundo da sala. Um autonomeado líder observou:

– Não temos que considerar a posição católica, porque só há duas razões pelas quais os católicos se opõem à contracepção: a primeira é que o Papa não se casa, e por isso não tem que viver com as conseqüências; e a segunda é que querem encher o mundo de católicos.

– São essas as razões que apresenta a Igreja Católica? – interrompi – Não acredito.

– Então porque é que não estudas o assunto?

– De acordo.

E assim fiz.

Em primeiro lugar, considerei a natureza de Deus e de que forma nós, como membros do casal, estávamos chamados a ser Sua imagem. Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – criou o homem e a mulher à Sua imagem, e abençoou-os na aliança matrimonial com o mandato de crescerem e se multiplicarem, enchendo a terra e dominando toda a criação para glória de Deus (cf. Gen. 1, 26-28). A imagem à imitação da qual o homem e a mulher foram criados é a unidade das três Pessoas da Trindade que se entregam totalmente umas às outras numa plena autodoação de amor. Deus reafirmou este mandato da criação na Aliança com Noé e sua família, dando-lhes o mesmo mandamento de serem fecundos e se multiplicarem (cf. Gen. 9, 1 ss). Deste modo a existência do pecado não alterou o apelo dirigido aos casais para serem imagem de Deus através da procriação.

São Paulo esclareceu que, no Novo Testamento, o casamento foi elevado à categoria de imagem da relação entre Cristo e a Igreja (nesse momento não fazia a menor ideia que o casamento fosse actualmente um sacramento). E pelo poder de dar vida próprio do amor, Deus capacitava os esposos para reflectirem a imagem de Deus na medida em que a unidade dos dois se convertia em três. A minha questão era a seguinte: O nosso uso do controlo da natalidade – que intencionalmente restringe o poder doador de vida do amor, ao mesmo tempo que se goza a unidade e o prazer que dá o acto conjugal – permite que o meu marido e eu reflictamos a imagem de Deus numa total autodoação de amor?

Em segundo lugar, examinei o que a Escritura diz sobre as crianças. O testemunho da Bíblia era arrasador! Todos os versículos que se referiam às crianças, consideravam-nas sempre e só como uma bênção (Sal. 127, 128). Não havia um só provérbio que advertisse que não valia a pena afrontar as despesas que um filho significa. Não havia qualquer bênção para os esposos que adiassem o mais possível a chegada dos filhos, nem para o casal que estivesse o número correcto de anos sem filhos antes de assumir o encargo que as crianças representam, nem para o casal que planeasse cada concepção. Tudo isto eram ideias que eu tinha aprendido nos meios de comunicação social, na escola pública ou com a vizinhança, mas não tinham nenhum fundamento na Palavra de Deus.

Na Escritura, a fertilidade é apresentada como algo que se deve apreciar e celebrar, não como uma doença que se deve evitar a todo custo. E embora não tivesse encontrado nenhum versículo que falasse negativamente das pessoas com famílias pequenas, à luz de numerosas passagens bíblicas, não havia dúvida de que as famílias grandes pareciam ter recebido de Deus uma graça maior. Era Deus que abria e fechava o ventre, e quando Ele dava a vida isso era sempre considerado como uma bênção. Em última instância, o que Deus desejava dos fiéis era “uma prole piedosa” (Mal. 2, 15). As crianças eram descritas como “flechas nas mãos de um guerreiro…, bendito o homem cuja aljava está cheia” [cf. Sl 126, 4-5]. Quem iria à batalha apenas com duas ou três flechas se pudesse ir com a aljava cheia? A minha questão era a seguinte: o nosso uso do controlo da natalidade reflectia o modo como Deus via as crianças ou o modo como as via o mundo?

Em terceiro lugar punha-se a questão do domínio de Jesus Cristo. Como protestantes evangélicos, o Scott e eu tomávamos muito a sério o domínio de Cristo sobre as nossas vidas. No aspecto monetário pagávamos o dízimo regularmente, sem nos importarmos que os nossos fundos fossem escassos, porque queríamos ser bons administradores do dinheiro que Deus nos tinha confiado. Uma e outra vez vimos como o Senhor supria às nossas necessidades com mais do que nós Lhe tínhamos dado. Em termos de tempo, observávamos o Dia do Senhor, pondo de parte o estudo, que era o nosso trabalho, mesmo que tivéssemos exames à segunda-feira. Muitas vezes o Senhor nos premiou por esse dia de descanso, e sempre tivemos excelentes resultados nos exames que fizemos à segunda-feira. Em termos de talentos, aceitávamos que devíamos estar sempre disponíveis para servir Deus com o nosso apostolado e acrescentávamos com gosto obras de serviço ao trabalho abundante do estudo. Ver vidas abençoadas como resultado desse apostolado fortaleceu enormemente a nossa fé e o nosso casamento.

Mas, e os nossos corpos? A nossa fertilidade? O domínio do Senhor estendia-se até aí? Li então em I Cor 6, 19-20: “… não vos pertenceis. Fostes comprados a grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo”. Talvez fosse uma atitude mais americana do que religiosa pensar na fertilidade como algo que podemos controlar como muito bem nos parecer. E eu perguntava-me: o uso que fazemos do controlo da natalidade, demonstra uma fiel vivência do domínio de Jesus Cristo?

[…]

No fundo, sabia bem com que é que estava a lutar: com a autêntica soberania de Deus. Só Deus conhecia o futuro e qual era o melhor modo de formarmos a nossa família com a prole piedosa que Ele desejava que tivéssemos. Certamente, Ele já tinha dado provas de ser digno de confiança de muitos outros modos. Sabia que podíamos confiar em que nos daria a fé que necessitávamos para lhe confiar este aspecto da nossa vida, e para nos dar a confiança de que esta visão fazia parte do Seu plano para nós, e que verteria o Seu amor em nós, e através de nós, em todas as preciosas almas que nos quisesse confiar. Aliás, conhecia muitos casais no seminário que “planeavam” a chegada das crianças, para descobrirem depois que afinal o calendário de Deus era diferente do deles.

[…]

Kippley fazia a seguinte comparação: tal como acontecia na Roma antiga, em as pessoas participavam num banquete e depois iam vomitar o alimento que acabavam de ingerir (para evitar as conseqüências dos seus actos), o mesmo se passa com os esposos que celebram um banquete no acto conjugal mas se opõem ao poder de dar vida que tem o acto de renovação da sua aliança. Esta acções são contrárias à lei natural e à aliança entre os esposos.

Da perspectiva de Kippley, que era a perspectiva da Igreja Católica, o fim primordial do acto matrimonial era a procriação dos filhos. Quando um casal impede esse fim intencionalmente, actua contra a lei natural. Subverte a renovação da sua própria aliança matrimonial, convertendo numa mentira o compromisso dos esposos de se entregarem totalmente um ao outro.

Agora compreendia por que razão a Igreja Católica se opunha à contracepção. Mas o que dizer dos métodos de planeamento familiar natural? Não eram simplesmente a versão católica do controlo da natalidade?

A Primeira Epístola aos Coríntios (7, 4-5) fala de períodos de tempo nos quais os esposos poderiam abster-se de manter relações sexuais para se dedicarem à oração, reatando depois as suas relações, não deixando a Satanás nenhum resquício por onde entrar no seu casamento. Lendo a Humanae Vitae cheguei a apreciar o equilíbrio da Igreja relativamente à contracepção. Havia uma forma religiosa de se levar a cabo o acto conjugal e de ser prudente em circunstâncias graves, praticando a abstinência durante períodos de mútua fertilidade.

Tal como a comida – em que podia haver temporadas nas quais o jejum fosse útil – de modo similar podia haver períodos nos quais o “jejum” do acto conjugal, por razões meditadas na oração, pudesse ser útil. Contudo, a não ser por milagre, ninguém poderia sobreviver se jejuasse a maior parte do tempo. Igualmente, os métodos naturais de planeamento familiar eram uma receita para momentos difíceis, não uma vitamina quotidiana para a saúde geral.

[op. cit., pp 43-45. 50-56]

Fica, assim, o testemunho do valor da Doutrina Católica, cujos argumentos, de tão claros, conseguiram convencer até mesmo dois protestantes ferrenhamente anti-católicos. Não deixa de ser profundamente irônico que, enquanto existem católicos rejeitando os ensinamentos da Moral da Igreja, dois protestantes tenham se preocupado em defendê-los. Não posso deixar de me lembrar da passagem do Evangelho (Lc 19, 39-40), onde Jesus disse que as pedras falariam se os discípulos se calassem; não consigo deixar de achar que é algo extremamente eloqüente que Deus tenha suscitado protestantes para defenderem a Doutrina Católica quando os católicos se envergonham dela.

Eu vim trazer a Espada

Estou a ler (é uma edição portuguesa) o testemunho da conversão do Scott Hahn e de sua esposa do protestantismo ao catolicismo; o título em português (de Portugal) é “Todos os caminhos vão dar a Roma”, uma tradução sem dúvidas genial do genial título original do livro, que é “Rome, sweet home”. Já tive a oportunidade de dizer aqui recentemente que toda história de conversão é espetacular (aliás, o muçulmano que se converteu ao catolicismo e foi batizado na Vigília Pascal por SS Bento XVI está narrando a sua conversão em ZENIT, e vale a pena a leitura), mas existe um aspecto particularmente doloroso na conversão do Scott Hahn que eu gostaria de mencionar aqui. Trata-se da divisão.

Protestante anti-católico “de carteirinha”, casado com uma protestante, o Scott foi, pouco a pouco, ao ler as Escrituras Sagradas, descobrindo como a Bíblia era, na verdade… católica. E ao ver como a Fé Católica era a única que fazia sentido, e como era deficiente a doutrina protestante, ele não teve outra opção – não sem profundos dramas de consciência, que a narrativa autobiográfica deixa transparecer muito bem – a não ser tornar-se católico. Ao fazê-lo, o seu mundo desabou. Transcrevo duas passagens significativas sobre o tema, uma de sua lavra, outra da de sua esposa (está no Capítulo 6):

Scott: A Vigília Pascal de 1986 foi um momento de verdadeira alegria sobrenatural, unido a uma grande tristeza natural. Recebi o grande slam sacramental: o Baptismo condicional, a Penitência, a Confirmação e a Primeira Comunhão. Regressei ao banco e sentei-me ao lado da minha amargurada esposa [então protestante], que amava com todo o coração. Pus-lhe o braço à volta, e começámos a rezar.

[…]

Kimberly: Diante dos meus próprios olhos, o Scott estava a comprometer-se com uma Igreja que nos separaria de momento, e talvez para sempre. Nunca mais poderíamos receber a comunhão lado a lado, a não ser que um dos dois mudasse de maneira de pensar (e não era difícil imaginar quem teria de ser!). Este grande signo de unidade cristã transformou-se no nosso símbolo de desunião. E a alegria das pessoas era como um punhal no meu coração, porque o que os alegrava era para mim causa de uma dor indescritível.

Ao ler essas emocionantes páginas, não pude deixar de lembrar-me daquela passagem das Escrituras Sagradas: Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa. (Mt 10, 34-36). Particularmente eloqüente é a narrativa da Kimberly, quase uma paráfrase – quiçá involuntária – do texto bíblico: “[e]ste grande signo de unidade cristã transformou-se no nosso símbolo de desunião”.

A verdade dura e crua, incontestável, é que não há comunhão possível entre luz e trevas (cf. 2Cor 6, 14), e não poderão caminhar juntos dois homens se não tiverem chegado previamente a um acordo (cf. Am 3, 3). A verdade é que Cristo veio à terra – palavras d’Ele! – para trazer também a divisão. A união, entre os que crêem, e a irreconciliável separação entre os que crêem e os que não crêem. Isto significa que, se nós quisermos levar a sério a Fé que temos – como, graças a Deus, a família Hahn levava -, não poderemos fazer acordos promíscuos nem fingir que estamos vivendo na mais plena comunhão quando há a radical separação da Fé. Quando ergue-Se, intransponível, a Cruz de Cristo.

Ao mesmo tempo, que belíssimo testemunho de amor a Deus sobre todas as coisas que nos deu o casal Hahn! O marido, em consciência, preferiu separar-se espiritualmente de sua esposa para abraçar a Esposa de Cristo; a esposa preferiu permanecer ao lado do marido, mesmo sentindo-se atraiçoada. Ambos suportando a mais amarga solidão que poderiam sonhar experimentar. Ambos rezando um pelo outro, encontrando em Deus as forças necessárias para atravessar o momento de extrema provação. Eles não fizeram “acordos práticos”; nem o Scott achou que não valia a pena sacrificar tudo o que tinha – e ele sacrificou muito! – para se tornar católico, nem a esposa dele achou que valia a pena “tornar-se católica” só para acompanhar o marido. Deram ambos, com suas vidas, um testemunho vivo da Divisão que Cristo afirmou ter vindo trazer à terra; deram ambos testemunho forte da importância de se amar a Deus sobre todas as coisas.

Abraçar a Fé é sacrificar inúmeras outras coisas, não há dúvidas disso; mas a Divisão que a palavra de Cristo traz é superabundantemente sobrepujada pela União na Grande Família de Deus, na Igreja Católica e Apostólica, à qual todos são chamados. Vale a pena tornar-se católico, mesmo que custe caro; vale a pena sacrificar tudo o que se tem por amor a Deus. Também são palavras de Nosso Senhor no Evangelho: Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna (Mc 10, 29-30). É, portanto, necessário às vezes deixar algumas coisas (e até mesmo algumas pessoas); é necessário que Cristo traga a espada, a divisão. Mas no final vale a pena. Scott e Kimberly Hahn conseguiram, no final, a grande graça de se tornarem uma família verdadeiramente católica; com a graça de Deus, conseguirão “no século vindouro a Vida Eterna”, pois este é o prêmio reservado por Deus àqueles que sabem amá-Lo apesar de todas as coisas, a despeito dos sacrifícios que sejam necessários. Sigamos pois sempre a Cristo, apesar dos sacrifícios, ainda que seja doloroso; pois é promessa d’Aquele que sempre cumpre as Suas promessas termos – já nesta vida! – “cem vezes mais” do que abandonamos e, um dia, a Glória de estarmos com Ele nos Céus.