Passei uma semana inteira sumido. Fui forçado. Domingo último, 19 de janeiro, escrevia aqui que iniciaria a segunda quimio no dia seguinte; na segunda-feira saí de casa pela manhã, e somente ontem (sábado) à noite consegui pôr de novo os pés no lar que parece ser tão mais doce quanto mais tempo passamos afastados dele.
Os culpados foram os meus pulmões, que por alguma estranha razão não pareciam estar muito dispostos a me ajudar na minha nobre peleja contra a insidiosa enfermidade linfoproliferativa que ora me acomete. Haviam enchido de novo, como eu dissera, e na quarta-feira (15 de janeiro) eu passei por uma segunda toracocentese. Respirei melhor, mas foi por pouco tempo. Já no sábado à noite, acordando de madrugada com a sensação de estar afogando, reconheci os sintomas: Deus, estão voltando a encher. Mas continuei forçando a respiração e com a fisioterapia, que era o que dava pra ser feito afinal de contas.
Na segunda cedo, antes da QT, um raio-x matinal me revela o que eu já antevia: os pulmões estavam todos tomados de novo, ainda piores do que antes de eu os drenar há menos de uma semana! Desanimei, confesso. Mas pus a chapa debaixo do braço e me dirigi à clínica. Tinha que fazer a quimioterapia já, uma vez que a simples drenagem claramente não estava dando vencimento.
Na clínica, conseguiram-me a gentileza de um apartamento: minha sessão ia ser longa. Puncionaram-me o CTI que eu implantara na sexta: a quimioterapia em si foi de uma enorme tranquilidade. Sem náuseas, sem vômitos, sem dores, nada: as horas passavam e o meu único incômodo era a tontura provocada pelo Zofran do início.
Mas a minha respiração piorava a olhos vistos. Eu não conseguia mais sequer me recostar na cama médica, não importa o quão alta a cabeceira estivesse: a posição completamente vertical era a única que me concedia um mínimo de conforto respiratório.
Lá pelas quatro da tarde, termino os químicos. Penso em voltar pra casa, tentar descansar e avaliar a necessidade de ir ao hospital. O caminho entre a clínica e o carro estacionado na frente dela me faz mudar de idéia: “para o hospital, imediatamente”. Era impossível, qualquer mínimo esforço me fazia ofegar de maneira incontrolável – e Deus sabe como é difícil e angustiante ofegar quando o seu pulmão não expande! Cheguei à emergência e sentei-me numa cadeira de rodas, para não querer sair dela nunca mais enquanto não me aliviassem os pulmões.
Os médicos são prestativos – inclusive a garota da emergência é a mesma que me atendeu naquele longínquo dia de dezembro, quando (inocente…) cheguei no hospital com queixas respiratórias achando que ia ganhar um antibiótico e almoçar em casa, antes de tudo começar… Ela me reconhece. Está com melhor aparência do que da primeira vez: se antes a expressão dela era a de quem estava diante de um moribundo, agora me olhava como a um convalescente promissor. Acalmo-me um pouco.
Ligam-me para os meus médicos. Minha pneumologista diz que ninguém mexe nos meus pulmões, e meu cirurgião torácico promete passar na manhã seguinte (então era de noite) para avaliar o meu caso. Eu, que estava a ponto de parar qualquer sujeito com uma furadeira que encontrasse no caminho para que refizesse os furos ainda mal-cicatrizados das minhas costas, protesto com tanta veemência quanto a minha dispnéia me permite: para isso, é preciso que eu sobreviva até amanhã!
Para encurtar a história: põem-me um pequeno cateter de oxigênio, internam-me num apartamento, fazem-me uma nebulização, chamam a médica de intercorrência e, já perto de meia-noite, decidem me levar para uma unidade semi-intensiva. Lá me apresentam, meio receosos, a solução que encontraram para mim: uma máscara de VNI, “Ventilação Não-Invasiva”, a máscara do Jason, como a chamei assim que a vi, ou do Homem da Máscara de Ferro, só que de plástico.
Dizem que os pacientes reclamam muito dela. Eu a amei. Foi alívio à primeira vista: após um dia inteiro forçando a minha respiração, aquela máquina respirava por mim. Após horas com baixa saturação de oxigênio, aquela máscara satisfazia as minhas necessidades respiratórias. Após dias com os pulmões curtos na caixa torácica, eles enfim pareciam um pouco mais amplos dentro do peito. Recostei na cama e adormeci, como há muito estava desejando e não conseguia. Máscara do Jason, você me salvou.
Isso foi na segunda à noite. A partir de então, foram três sessões por dia – manhã, tarde e noite – com a benedetta, pelo menos uma hora a cada vez. Os fisioterapeutas não acreditavam em como eu ficava feliz quando eles vinham com a máscara. Eles provavelmente não são capazes de entender a natureza de minha relação com ela. Ama mais quem mais foi perdoado, como diz o Evangelho, e mutatis mutandis dá mais valor às invenções humanas quem mais lhes obteve os benefícios. Aquela máscara me fizera respirar, e isso era uma dívida insanável. Que Deus abençoe copiosamente o idealizador de tão incompreendida geringonça.
Assim se passou uma semana inteira. E, para minha alegria, o derrame dos meus pulmões baixaram somente à força de VNI, diuréticos e repouso: não precisei fazer nenhuma drenagem. É uma grande e promissora vitória, provavelmente a mais promissora desde que eu comecei o meu tratamento: pela primeira vez eu voltava a respirar sem ter que drenar cirurgicamente o líquido da pleura e, quando o meu derrame pleural esteve pior, ele foi revertido “naturalmente”, com o passar do tempo e o reequilíbrio do organismo, como se esperava para este segundo ciclo de QT. Se toquei o fundo de alguns abismos deprimentes esta semana, também me elevei deles aos píncaros esperançosos do (em vislumbre ao menos) tratamento bem-sucedido. Bendito seja Deus, que me acompanhou às profundezas; louvado seja Ele, que delas me permitiu voltar.
É incrível como as doenças – um amigo mo dizia hoje – têm o condão de abrir os nossos olhos ao valor das coisas banais, que ficam escondidas sob a trivialidade do quotidiano. Acho que nunca antes na vida eu percebera o quanto respirar é maravilhoso. E hoje isso se repete a cada dia, quando percebo o prazer de uma noite dormida na própria cama, de um braço que não está mais dolorido, de um corte já cicatrizado, de um apetite livre dos tentáculos de uma náusea repentina… não dá pra dizer que esta estrada na qual me colocou a Divina Providência seja desejável. Mas também é impossível negar que ela me tenha ensinado coisas valiosas. E, por estas últimas, é também impossível não ser grato.
Hoje estou em casa, sem queixas maiores que as decorrentes da semana de imobilidade passada numa Unidade de Cuidados Especiais. Não sinto nada da quimio de segunda-feira. Já respiro de maneira excelente, se não ainda com o vigor da plena saúde, ao menos de modo incomparavelmente melhor do que há uma semana, quando escrevi aqui da última vez. Nos próximos dias farei alguns exames de controle, para comparar com os que foram feitos antes do tratamento e aferir-lhe a eficácia. Ainda há muito caminho pela frente, mas por mais este solavanco eu atravessei: obrigado, Senhor. E eis-me aqui! Vamos em frente. Aonde fores. Aonde quiseres me levar.