“Este São Francisco não existe!” – Papa Francisco

A paz franciscana não é um sentimento “piegas”. Por favor: este São Francisco não existe! E nem é uma espécie de harmonia panteísta com as energias do cosmo… Também isto não é franciscano! Também isto não é franciscano, mas é uma ideia que alguns construíram! A paz de São Francisco é aquela de Cristo, e a encontra quem “toma sobre si o seu jugo”, isso é, o seu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (cfr Gv [Jo] 13,34; 15,12).  E este jugo não se pode levar com arrogância, com presunção, com soberba, mas somente se pode levar com mansidão e humildade de coração.

Dirigimo-nos a ti, Francisco, e te pedimos: ensina-nos a sermos “instrumentos da paz”, da paz que tem a sua origem em Deus, a paz que nos trouxe o Senhor Jesus.

– Papa Francisco
Missa na Praça São Francisco de Assis, em Assis
04/10/2013

As armas na defesa da Verdade

Recebi aqui no blog alguns comentários referentes à forma segundo a qual é lícito ao cristão travar os seus debates em defesa da Verdade. Em particular, foi atacada uma característica que sempre esteve presente na história da Igreja, que é a ironia direcionada contra os inimigos de Deus. Cabe, portanto, perguntar se é lícito ao cristão utilizar-se de ironia para defender a Deus e a Santa Igreja. A questão precisa ser analisada com um pouco de atenção.

Comecemos pelo Catecismo da Igreja Católica; o único momento em que ele fala sobre “ironia” é no parágrafo seguinte:

2481. A jactância ou vanglória constitui um pecado contra a verdade. O mesmo se diga da ironia que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo malévolo, um ou outro aspecto do seu comportamento.

A ironia é, portanto, um pecado contra a Verdade. Mas cabe-nos ainda perguntar: isto se aplica a toda espécie de ironia? Ou ainda: a quê, exatamente, refere-se o catecismo quando coloca a ironia como sendo um pecado contra a Verdade?

Santo Tomás de Aquino também fala sobre a ironia na Suma Teológica (Secunda Secundae, q. 113). Para o Doutor Angélico, no entanto, a ironia é aquela coisa “pela qual alguém finge ser menos do que é na realidade”. E ele distingue a ironia que respeita a Verdade daquela que A falseia; esta última é sempre pecado mas, a primeira, não é pecado em si. Parece-nos, todavia, que ainda não é bem este o sentido da palavra que nós estamos buscando.

Sejamos um pouco mais insistentes e mergulhemos com mais afinco nos escritos do Aquinate. Em outro lugar da Summa, falando sobre a “burla” (Secunda Secundae, q.75) e principalmente sobre a “contumélia” (Secunda Secundae, q. 72), encontramos Santo Tomás falando de algo que se assemelha mais àquilo sobre o qual estamos tratando; esta última, aliás, refere-se justamente às injúrias verbais e, salvo melhor juízo, a “ironia” que nós estamos procurando encaixa-se justamente aqui. Santo Tomás nos ensina que “nos pecados de palavras parece que deve considerar-se, sobretudo, com que intenção se pronunciam as palavras. (…) [S]e alguém pronuncia palavras de insulto ou de contumélia contra outro, mas sem intenção de desonrá-lo, e sim para corrigi-lo ou por outro motivo similar, não profere um insulto ou contumélia formal e diretamente, senão acidental e materialmente. (…) Por isso, isto pode ser algumas vezes pecado venial e outras vezes nem sequer haver pecado” (II-IIae, q.72, a.2).

Isso nos explica melhor o sentido do parágrafo 2481 do Catecismo; a ironia que é pecado contra a Verdade é aquela “que visa depreciar alguém”, que é feita “de modo malévolo”. Se, ao contrário, for usada no meio dos embates apologéticos, com o intuito de defender a Verdade e condenar o erro, para desmascarar os sofismas levantados contra Deus e expôr ao ridículo os inimigos da Santa Igreja, então a ironia pode ser não apenas lícita como também meritória. E, desta boa aplicação da ironia, há abundantes exemplos na História da Igreja.

Uma das passagens bíblicas que melhor ilustra isso encontra-se no Primeiro Livro dos Reis. Elias fez um desafio aos profetas de Baal: tanto um quanto outros colocariam um novilho sobre uma pilha de lenha, e invocariam, estes Baal, aquele o Senhor. O Deus que respondesse seria o verdadeiro Deus. Os sacerdotes de Baal foram os primeiros a fazer a prova. Após gritarem pelo ídolo pagão durante a manhã inteira sem obterem resposta, Elias começou a zombar deles:

Sendo já meio-dia, Elias escarnecia-os, dizendo: Gritai com mais força, pois (seguramente!) ele é deus; mas estará entretido em alguma conversa, ou ocupado, ou em viagem, ou estará dormindo… e isso o acordará. [1Rs 18, 27]

E eles gritaram. “Mas não houve voz, nem resposta, nem sinal algum de atenção” (v. 29). Foi quando Elias preparou um altar, e invocou o nome do Senhor, e então “o fogo do Senhor baixou do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e até mesmo a água da valeta” (v. 38). Elias debochou duramente dos seguidores de Baal, expondo-os ao ridículo diante do povo de Israel; depois disso, clamou ao Senhor e foi escutado.

E os santos que se envolveram em polêmicas foram por muitas vezes ácidos e irônicos. Existe um escrito de São Jerônimo que, na minha opinião, todos os católicos deveriam ler e reler: trata-se do Tratado da Virgindade Perpétua da Santíssima Virgem. Foi uma polêmica que o santo travou com um herege chamado Helvídio, que negava a Virgindade de Maria Santíssima. Já nas primeiras linhas da obra, São Jerônimo deixa claro qual é o seu estilo:

1. Há algum tempo, recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.

Havia ainda a preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a eloquência consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa fé) poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria a espalhar suas opiniões em todos os lugares.

Também temia que, quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma ainda mais ofensiva.

Mas, mesmo que eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que Helvídio – que jamais aprendeu a falar – possa aprender, finalmente, a controlar a sua língua.

Não é um exemplo isolado. De muitos que poderiam ser citados, também Santo Ireneu, quando atacava os gnósticos do seu tempo, não tinha melindres sentimentalistas e lançava-se com ardor à batalha que precisava travar para defender a Sã Doutrina:

Vejamos agora as inconstantes doutrinas deles [dos gnósticos]. São duas ou três, e como falam de forma diferente sobre as mesmas coisas e, servindo-se de nomes iguais, indicam objetos diferentes.

[…]

Outro ilustre mestre deles, dotado de gnose mais sublime e profunda, expõe assim a primeira Tétrada: existe, antes de todas as coisas, um Pró-princípio pró-ininteligível, inexprimível e inominável que chamo Unicidade. Com ele está uma Potência que chamo Unidade. Estas, Unicidade e Unidade, que são uma coisa só, emitiram, sem emitir, um Princípio inteligível, ingênito e invisível, ao qual dou o nome de Mônada. Com esta Mônada está uma Potência da mesma substância, que chamo Um. Estas Potências, isto é, Unicidade e Unidade, Mônada e Um emitiram os restantes Eões.

Ha! he! ah! ah! Valem estas exclamações trágicas diante desta audácia em inventar nomes e aplicá-los despudoradamente a esta mentirosa invenção. Com efeito, quando diz: Existe antes de todas as coisas um Pró-princípio pró-ininteligível que chamo Unicidade e com ele está uma Potência que chamo Unidade, mostra claramente que são ficção todas as palavras que pronunciou e que deu a estas ficções nomes que ninguém antes dele lhes deu. Se não tivesse esta ousadia, segundo ele, ainda hoje a verdade estaria sem nome. Por isso, nada impede que outro qualquer, ao tratar deste assunto, use estes nomes: Existe certo Pró-princípio soberano pró-esvaziado-de-inteligibilidade, pró-esvaziado-de-substância e Potência pró-pró-dotada-de-esfericidade, que chamo Abóbora. Junto com esta Abóbora coexiste uma Potência que chamo Super-vacuidade. A Abóbora e a Super-Vacuidade, sendo um só, emitiram sem emitir um Fruto visível de qualquer lugar, comestível e saboroso, ao qual dou o nome de Pepino. Junto com este Pepino existe uma Potência da mesma substância, que chamo Melão. Estas Potências, isto é, Abóbora e Super-vacuidade, Pepino e Melão emitiram a multidão restante dos Melões delirantes de Valentim. Com efeito, se é necessário ajustar a fala comum à primeira Tétrada e se cada um escolhe os nomes que quer, o que impede usar estes nomes muito mais inteligíveis, usuais e conhecidos de todos?
[Santo Ireneu, Contra as Heresias, Livro I, Parte II, 11,1-11,4]

Ora, se os santos – que nos são propostos pela Igreja como modelos de virtude – souberam atacar virulentamente os inimigos da Igreja, como poderemos sustentar que a ironia seja algo de mau em si? Como pode a ironia ser contra a caridade, se tantas pessoas piedosas e tementes a Deus souberam utilizá-la tão bem? Na verdade, o bom católico não tem o sentimentalismo piegas que parece ser característica dos nossos dias. O verdadeiro católico é um soldado de Cristo, é uma alma corajosa, dotada de fibra e de zelo na defesa da Fé e na exaltação da Igreja de Nosso Senhor. O bom católico sabe – à imitação dos santos – agir com dureza quando estão em jogo coisas importantes. O bom católico, como no lema de São Bento, ora et labora: reza, como na Ladainha de todos os Santos, a fim de que os inimigos da Igreja sejam humilhados (ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris – Te rogamus, audi nos!) e trabalha, com afinco, para que a Verdade triunfe sobre os erros e sejam desmascarados os inimigos de Deus. Inclusive utilizando-se da ironia, se necessário for, ad Majorem Dei Gloriam. Note-se que ninguém está obrigado a ser irônico; mas aqueles que souberem, quiserem e puderem sê-lo, não precisam ficar com escrúpulos de consciência. A ironia não é condenável em si mesma.

Obviamente, é necessário haver parcimônia; claro que a ironia pode por vezes degenerar em deboche grosseiro, em agressão gratuita, e pode se transformar sim em falta de caridade. Além do mais, o tom irônico não dispensa os argumentos, como é óbvio, sob a gravíssima pena de ser contraproducente. Mas – e isso é o mais importante aqui – nem toda ironia é falta de caridade, e é lícito empregá-la na defesa de Nosso Senhor. Que a Virgem Santíssima nos faça católicos de fibra; e que os santos nos ensinem a fugir do “politicamente correto”, sabendo reconhecer o valor e a importância de dedicar-se com zelo ao Bom Combate que todos nós somos chamados a travar.