A pandemia e as igrejas fechadas

A Quaresma é um dos tempos mais ricos e mais marcantes da Liturgia da Igreja. A cada ano a Igreja reserva este tempo litúrgico para, primeiro, exercitarmos as virtudes cristãs ao longo das semanas seguintes ao fim do Carnaval; segundo, acompanharmos de maneira mais intensa as últimas horas de Cristo no Sagrado Tríduo Pascal; e, terceiro, celebrarmos jubilosos a Vigília do Sábado Santo, a fim de que cantemos com toda a Igreja a festa da Páscoa, a Ressurreição, que se pode muito bem dizer — parafraseando aquilo que S. João Paulo II disse da Eucaristia — que é a fonte e o ápice do ano litúrgico da Igreja.

Ora, a Quaresma é um tempo de graças espirituais cujo desabrochar depende do comprometimento do católico em buscar viver bem aquele tempo. Os tempos litúrgicos não são como as estações do ano, cujos efeitos se fazem sempre sentir independente do que as pessoas façam. O calor do verão decorre do só fato de estarmos no verão; e mesmo uma pessoa que nem saiba que é verão, ainda assim vai sentir o calor próprio da estação. Mas com a Quaresma não é assim: as graças espirituais abundantes deste tempo — que são os efeitos próprios deste tempo litúrgico — só se fazem sentir àquelas pessoas que, conscientes de estarem atravessando o tempo quaresmal, esforçarem-se para bem vivê-lo. Não basta estar exposto à Quaresma, é preciso viver a Quaresma.

Pois bem. Acontece que a Quaresma se vive, claro, por meio do esforço pessoal — do jejum, da oração e da esmola –, mas também, e principalmente, por meio da vivência eclesiástica: da frequência aos sacramentos e da participação ativa da vida litúrgica. E é uma coisa verdadeiramente deplorável, inaudita em dois mil anos de Cristianismo, ignominiosa, ultrajante, que clama aos céus vingança, é um acinte e um escárnio que os católicos estejam, por conta de um coronavírus, desde a metade da Quaresma privados de assistir as Missas e de receber os Sacramentos.

A atual pandemia da COVID-19 revelou as coisas mais podres, mais mesquinhas, mais mundanas das autoridades eclesiásticas. Como é possível que se tenha pacificamente aceitado fechar as portas dos templos — e isso no mundo todo! — sine die, de maneira radical, abrupta e a absoluta, privando o povo da participação litúrgica e do auxílio dos sacramentos? No meio da Quaresma! Estamos agora em pleno Tríduo Santo e as missas In Coena Domini foram celebradas sem o povo provavelmente pela primeira vez desde que foram codificadas! Amanhã à noite será a Vigília Pascal e os católicos, trancados em suas casas, não irão se congratular pela vitória de Cristo sobre a morte! A Páscoa será celebrada em privado. Como foi possível chegarmos a este ponto?

Nem se diga que iremos nos reunir à distância, valendo-nos dos meios de comunicação, fazendo orações domésticas e comunhão espiritual. Em primeiro lugar, todo católico já faz, ordinariamente, oração doméstica e comunhão espiritual: é claro que já rezamos nas atividades quotidianas — ao dormir e ao despertar, antes das refeições, dos estudos, do trabalho etc. –, já incluímos nos nossos dias espaços para a meditação, para o exame de consciência, para as leituras piedosas, já excitamos o desejo de nos unirmos espiritualmente a Nosso Senhor Sacramentado. Isso não é uma coisa surgida agora e que nos esteja sendo oferecida como sucedâneo da vida eclesial; isso é já parte integrante da vida espiritual católica e que, absolutamente, não supre a necessidade da participação litúrgica.

Em segundo lugar, uma coisa não tem nada a ver com outra: não existe oposição entre a oração particular e as cerimônias eclesiásticas públicas e estas não podem ser substituídas por aquelas, porque a publicidade é da essência do Catolicismo. A Igreja é visível! Faz parte da constituição substantiva da Igreja Católica os Seus elementos materiais, externos, sensíveis, e isto por determinação divina. Igreja é Ekklesia, é assembleia, é conjunto de pessoas reunidas em sua segunda casa — paróquia, paroikía, “casa” (oikia) “ao lado” (par) — para se auxiliarem mutuamente em seu caminho rumo à Pátria definitiva, à Jerusalém terrestre. Não existe uma “igreja espiritual” e nem é possível cogitar de uma eclesialidade composta de templos fechados e famílias isoladas, relacionando-se pelas redes sociais. Mas o que é isso? Passamos anos criticando o “catolicismo de internet” para, agora, começarmos a pregar cerimônias transmitidas pelo Instagram e pelo Youtube?

Finalmente, em terceiro e mais importante lugar, existem os Sacramentos! Os Sacramentos, que são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus, que nos são necessários à vida de graça e, em última análise, à nossa salvação, não podem ser conferidos senão pessoalmente! Bênção papal transmitida pela internet, posto que valiosíssima, não tem o condão de perdoar os pecados como só a confissão auricular pode fazer. A comunhão espiritual realizada diante de uma Missa que se assiste pelas redes sociais, conquanto piedosa e salutar, não produz os efeitos próprios da recepção da Eucaristia — como o aumento da graça santificante e o perdão dos pecados veniais. Com esta loucura de fechamento de igrejas e suspensão dos sacramentos, o que acontece é que as almas estão privadas dos canais ordinários de transmissão da graça de Deus. Ora, a Igreja possui, ao lado do poder-dever de ensinar e do poder-dever de governar, o poder-dever de santificar: o munus sanctificandi. E este múnus se exerce pela celebração da Liturgia, sim (que graças a Deus continua acontecendo, embora em privado), mas se exerce também pela administração dos sacramentos ao povo cristão. E com os católicos trancados em casa, com os sacerdotes isolados, com as cerimônias (somente as mais importantes, decerto) apenas transmitidas pela internet… como anda a administração dos sacramentos? As confissões, as comunhões, as unções dos enfermos…? Por quanto tempo mais as autoridades eclesiásticas vão insistir nesta anomalia diabólica e ultrajante?

É Sexta-Feira Santa e Nosso Senhor foi arrancado à convivência dos Seus discípulos, pelas mãos dos ímpios, para ser crucificado. E, hoje, paradoxalmente, Nosso Senhor Sacramentado também é arrancado às almas fiéis sequiosas por recebê-Lo — arrancado pelas próprias autoridades eclesiásticas que são as legítimas dispensadoras da graça de Deus. Amanhã será a Páscoa da Ressurreição e também não poderemos comer a Carne e beber o Sangue d’Aquele que ressuscitou dos mortos para nos dar a Vida Eterna. Até quando esta insensatez?

Oxalá tivéssemos as mãos vazias

Muitas pessoas têm muitas visões sobre Nosso Senhor: para uns Ele é um taumaturgo, para outros, um sábio divulgador da regra áurea, uns O vêem ainda como um Rei generoso e providente, e ainda outros O querem um defensor das liberdades individuais. Já eu penso que nada resume tão bem o Cristianismo como a Sexta-Feira Santa, e os homens errariam bem menos acerca de Cristo se se acostumassem a encará-Lo como a Liturgia de hoje O apresenta ao mundo.

Porque a história do dia de hoje nos mostra duras verdades. A primeira e mais óbvia delas é a realidade da nossa maldade, entregando à morte um Homem inocente, preferindo, a Ele, um bandido conhecido e condenado. Naquela turba que pediu a Pilatos a Crucifixão de Cristo todos nós estamos vergonhosamente representados, e isso se trata de um dos pontos mais básicos do Catecismo: Cristo morreu por nós. Dito assim, em palavras curtas, em uma sentença já gasta pelos séculos, a frase parece perder muito de sua verdadeira força de expressão, e é por isso que precisamos ler e reler incontáveis vezes as quatro narrativas da Paixão de Cristo, e é por isso que a Igreja precisa repetir, a cada ano, todo o ritual da Semana Santa: quando se diz que Cristo morreu por nós, o que se quer realmente dizer é que cada um de nós pode e aliás deve se reconhecer naqueles judeus que, hoje, exigiram que o Sangue d’Ele fosse derramado.

Não fosse o suficiente, a nossa ira destrutiva não foi dirigida contra um nosso semelhante: foi contra o Deus Todo-Poderoso, o Criador do Céu e da Terra, Aquele de Quem viemos e sem o Qual nada podemos fazer. Trata-se, assim, de verdadeiro instinto auto-destrutivo: querer matar o Criador é o mesmo que desdenhar da própria Criação, e as Trevas que envolveram o mundo enquanto Cristo agonizava na Cruz somente por muito pouco não tragaram definitivamente todo o Universo. Nunca o mundo esteve tão periclitante quanto naquelas horas terríveis em que Nosso Senhor sufocava no alto do madeiro! Nós morríamos enquanto O matávamos. Aceitávamos lançar sob trevas a terra inteira, contanto que O lançássemos à escuridão do Sepulcro. Trata-se de uma inversão perversa da ética humana: a nossa razão nos manda fazer aos outros o bem que gostaríamos que nos fizessem, mas no Gólgota nos regozijávamos em sofrer o mal que nos satisfazia infligir ao Filho de Deus. Dir-se-ia que de bom grado aceitaríamos até padecer na cruz, contanto que pudéssemos também crucificar a Nosso Senhor inocente.

E essa lógica perversa é o retrato da história humana: nós somos, no fundo, uns animais cujo instinto destrutivo supera até mesmo o de autopreservação. “Chorai por vós mesmas”, disse Cristo enquanto subia o Calvário, “porque, se eles fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco?” (Lc 23, 31).

Essa maldade não costuma ser suficientemente compreendida. Não é simplesmente que não valêssemos nada: nós já nada valíamos antes, na época dos Profetas, durante a vida pública de Jesus, até o Domingo de Ramos, vá lá. Com a Paixão de Cristo, no entanto, a nossa situação sofre uma piora inimaginável, porque acrescentamos, ao nada que já somos, a culpa infinita do deicídio. Oxalá estivéssemos de mãos vazias! Hoje elas estão cheias de sangue — e o sangue dos justos clama aos Céus vingança e atrai a ira de Deus.

Mas ao lado da nossa perversidade está o amor incondicional de Deus — amor usque ad mortem, até a Cruz. É um paradoxo notável. É precisamente quando temos mais culpa que somos enfim perdoados. O ato que é o maior dos nossos crimes é também, ele próprio, a fonte da nossa Redenção, e isso é assombroso e, passados vinte séculos, até hoje nos assombra.

E diante da Cruz de Cristo todos os demais aspectos da Sua vida são colocados em sua correta perspectiva. De todos os milagres que Ele se realizou, nenhum se compara a essa prodigiosa transmutação de crime em perdão, de morte em vida. Os ensinamentos que Ele nos transmitiu, somente após resgatados pelo sangue do Cordeiro nos os podemos cumprir. A maior das riquezas que Ele tem para nos dar é a Vida Eterna que nos foi alcançada do alto da Cruz. E tudo o que podíamos ser e fazer até o dia de hoje, tudo é palha e cinza e nada agora que temos a santa liberdade dos filhos de Deus.

A suprema doação da Cruz é prova do amor de Deus por nós; e diante desse amor é impossível não se comover. Quando o véu do Templo rasgou-se ao meio, também alguma coisa precisa se ter rasgado dentro de nós. Quando a lança perfurou o coração de Cristo, também o nosso coração precisa haver sido traspassado. O mal que entrara em nós lá no Éden foi finalmente, após séculos, extirpado. Nosso Senhor morto desce ao sepulcro; e agora também nós podemos, enfim, morrer em paz.

O luto da Sexta-Feira Santa

O preto de hoje talvez seja uma das maiores mudanças da Liturgia pascal antiga em relação à do Novus Ordo. A Celebração da Paixão do Senhor, desde que me entendo por gente, assisto-a com o sacerdote vestido de vermelho: cor do sangue, cor do martírio. Hoje, na Forma Extraordinária do Rito Romano, vi a Paixão ser celebrada com o sacerdote ostentando paramentos pretos — negros como a morte, escuros como a Noite que se fez durante a Crucificação hoje rememorada.

Paramentos negros! A bem da verdade, a estola somente sobre a alva — na função litúrgica de hoje, não propriamente sacramental, o padre não enverga a grande casula negra das missas de Réquiem — é até bastante discreta. Mas não perde em eloquência. A prostração diante do altar vazio com a qual se inicia o rito de hoje é bem expressiva daquele abandono ao qual fiz referência ontem, no fim da Missa in coena Domini: parece que deu tudo errado, parece que acabamos de perder algo que já nos havíamos acostumados a ter sempre conosco, parece que os nossos pecados desta vez foram demais e, por conta deles, a desolação fez-se presente no lugar santo — e o templo, vazio, censura-nos a impiedade.

Mas é durante as Grandes Orações que o negro dos paramentos se faz mais vívido. O padre voltado para o altar, diante de nós, com o pluvial preto, a grande capa escondendo-lhe praticamente todo o brancor da alva. Agora, sim, o luto da cerimônia se faz mais presente, mais pesado, quase como se lhe pudéssemos tocar. Dirigimos as nossas súplicas Àquele que crucificamos: pedimos pelo Papa, pela Igreja, pelos sacerdotes, por nós próprios. E num arroubo missionário que brota do lado do Crucificado, é como se as graças alcançadas no Calvário não se contentassem com a Igreja apenas. O Sangue vertido na Cruz do Gólgota pede mais — e o sacerdote de negro clama ao Deus Altíssimo sucessivamente pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos pagãos. É de Cristo que nasce a Igreja, mas é também da Cruz que Ela se expande para abarcar aqueles que, antes, a Ela não pertenciam: e a cada vez que nós celebramos a Sexta-Feira da Paixão, nós nos lembramos disso e, solenemente, enlutados, pedimos ao Deus elevado no madeiro da Cruz que Se digne atrair a Si o mundo inteiro.

Sem dúvidas o luto é bem apropriado ao dia de hoje. E se trata de uma dupla tristeza: há a falta que nos faz o Cristo, sem dúvidas, que até ontem estava conosco e hoje nos foi retirado; há a dor da Crucificação, evidentemente — ó vós que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor como a minha!, como nos interpela a Pietà. Mas há uma dor ainda maior e mais pungente, uma dor que enlouquece e desespera: há a dor da culpa, e é essa que não suportamos, é essa que somos constantemente tentados a afastar de nossa frente — e é exatamente por isso que devemos sempre acompanhar piedosamente o Tríduo Santo, ano após ano, para ver se daqui para o dia da nossa morte, com a graça de Deus, conseguimos nos emendar.

Tudo isso que estes dias estamos vivenciando, tudo, tudo, o Getsêmani e a traição, a prisão e os julgamentos injustos, a flagelação e as bofetadas, a coroa de espinho e as cusparadas, o caminho do Calvário, as quedas, a transfixação dos pés e dos pulsos, a sede, o vinagre, a asfixia da Cruz, tudo é por culpa nossa, tudo é por culpa minha. E não se trata aqui da culpa difusa que estamos acostumados a dividir com os nossos contemporâneos, por exemplo, a culpa de uma equipe pelo fracasso de um projeto. No geral, um determinado conjunto de pessoas é capaz ainda de alcançar o objetivo a que se propõe mesmo que um de seus membros falte com os seus deveres, e a falha de um só não é de ordinário capaz de frustrar os esforços de todos. Quando fracassa uma empresa de muitos, não é geralmente por conta de um apenas: o malogro de um projeto comum ocorre devido aos erros de vários, e isso de certo dilui a culpa de cada um dos corresponsáveis pela empreitada.

Na Paixão de Cristo, no entanto, não é assim. A Redenção é da humanidade inteira, é verdade, mas ela se aplica toda a cada pecador. Dito de outro modo, não foi um grande conjunto de pecados que fez Cristo sofrer e morrer — um grande conjunto para o qual a minha contribuição é bem modesta e, portanto, bem pequena a minha responsabilidade. Não; Cristo sofreu tudo por cada pecado, e isso de tal modo é verdadeiro que, se fosse eu o único ser humano a pecar na face da terra, a Paixão seria a mesma, e os mesmos seriam os gritos de dor, as mesmas as lágrimas que atravessam os séculos, o mesmo o Sangue que tinge de rubro o madeiro da Cruz. Não foi por uma imensidão genérica de pecados que Cristo morreu, mas pelos meus! Vistas as coisas assim, é até bem pouco o luto que hoje nós manifestamos: nem mesmo no silêncio litúrgico é possível ouvir os gemidos que nos deveriam aflorar do fundo do peito, e a pequena dor que sentimos ao acompanhar a procissão do Senhor Morto é somente um pálido reflexo da compunção que nos deveria vergar o corpo por terra.

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Esta Sexta-Feira Santa é também 25 de Março, é também o dia da Anunciação (*): convergem hoje para o mesmo dia a Encarnação e a Paixão, e o “alegra-Te!” do Anjo à Santíssima Virgem divide espaço com as lágrimas que Ela verteu ao pé da Cruz. Hoje uma Virgem trouxe Deus aos homens; hoje uma Virgem entregou o Seu Filho a Deus. Se o nosso arrependimento não está à altura da multidão dos nossos pecados, olhemos corajosamente para a Virgem Maria, confiemos n’Ela, recorramos a Ela — e Lhe supliquemos que todo este horror não seja em vão.

[(*) Liturgicamente, como as celebrações da Semana Santa têm precedência sobre quaisquer outras festas, a Liturgia da Anunciação é transferida para a segunda-feira depois da Oitava de Páscoa. Este ano, portanto, celebrar-se-á a Festa da Anunciação aos quatro de abril, já em pleno tempo pascal.]

Sexta-Feira Santa

É a Sexta-Feira. Se não quisermos contemplar os julgamentos injustos que sofreu Nosso Senhor; se não suportarmos acompanhar o Seu doloroso caminho até o Calvário; se não formos capazes de nos deter ouvindo aquele grito terrível que anunciou a consumação do Seu Sacrifício, e nem de fixarmos o nosso olhar no Cadáver pendente do madeiro da Cruz; enfim, se nos fosse possível deixar tudo isso de lado, olhar – ainda que de soslaio – para o Senhor Morto já nos seria tremendamente benéfico e já permitiria à nossa alma usufruir dos influxos benéficos da meditação piedosa da Paixão de Cristo. Porque muito do mistério do dia de hoje está condensado no Corpo sem vida de Nosso Senhor, que a Sua Mãe Santíssima recebeu dos braços da Cruz e em cuja honra saem hoje procissões de nossas igrejas, após a Celebração da Paixão do Senhor.

Ó vós que passais, olhai e vede se há dor semelhante! Na imagem do Senhor morto está contida a via crucis e o Gólgota, a injustiça e a culpa, o sofrimento de um Inocente e a dor de uma Mãe. E tudo isso está lá presente precisamente porque não há mais nada: o Amor foi assassinado, o Deus foi expulso da Sua Criação, o Mestre foi silenciado, a Vida jaz no abraço frio da Morte. Tudo está perdido. Somente olhando para Ele morto nós podemos ter uma idéia da dimensão dessa nossa perda. Somente quando Ele não está mais entre nós é que, finalmente, tomamos consciência do quanto d’Ele precisávamos. E estamos novamente diante de uma Viúva chorando a morte do Seu Filho mas, dessa vez, ninguém tem coragem de ordenar-Lhe “levanta-Te!” como Ele costumava fazer. Dessa vez parece que o luto não vai ser interrompido, mas muito pelo contrário: parece que ele não vai deixar de se expandir até abarcar o mundo inteiro.

E o cortejo fúnebre segue pelas ruas da cidade. Os que desfilam com o Senhor Morto têm o Sangue d’Ele escorrendo pelas mãos e derramando-se sobre suas cabeças. E não há sequer um Deus para o Qual eles possam pedir perdão. O Único que os podia perdoar é justamente Este cujo cadáver está sendo levado em procissão. Levam-No, sem saber para onde; choram, sem saber o que fazer.

A maior das tristezas – Sexta-Feira Santa

E o Senhor está morto. A tristeza do dia de hoje transcende a esfera meramente litúrgica e integra o patrimônio cultural do Ocidente: recordo-me, p.ex., daquele decassílabo de conhecida poetisa lusitana que, para falar de tristeza, em contexto totalmente secular, escreve que “parece Sexta-Feira da Paixão”. Tal característica não se impregnou neste dia à toa: foi devido à força da repetição de símbolos católicos ao longo dos séculos. O dia de hoje exala tristeza por todos os lados: no silêncio dos sinos substituídos pelas matracas, nas igrejas nuas com as imagens cobertas e o Sacrário aberto e vazio (parecendo uma igreja protestante, como um amigo comentou magistralmente), nas vias-sacras ou nas representações da Paixão de Cristo que se realizam com particular abundância no dia de hoje.

Mas a tristeza transformada em lugar-comum pode, paradoxalmente, obscurecer o seu sentido mais profundo. É comum que nós nos sintamos tristes por uma espécie de empatia para com aqueles que sofrem. A imagem do Cristo-Sofredor é capaz de provocar tristeza mesmo que sob uma perspectiva exclusivamente natural: não é no entanto por isso que é triste o dia de hoje. A tristeza da Sexta-Feira Santa não é simplesmente um luto pela morte trágica de um inocente: coisas assim infelizmente acontecem com relativa freqüência. A tristeza de hoje é única e irrepetível, e brota (pode-se dizer assim) das entranhas da Criação. É uma tristeza cósmica provocada pela revelação das conseqüências do nosso pecado.

Hoje, antes de morrer um Inocente, desenrola-se um drama em relação ao qual nós temos um inglório protagonismo. Os gritos de “Crucifica-O” que demos na celebração da Paixão não estão lá por acaso: revelam o nosso infelicíssimo papel nos acontecimentos do dia de hoje (e, repito, quem não se colocar pessoalmente entre os algozes de Cristo não é capaz de viver bem a Semana Santa). Hoje nós crucificamos o Filho de Deus. Pensar apenas que morreu um inocente é sem dúvidas trágico, mas é muito pouco. A tristeza do dia de hoje é a que brota da assustadora consciência de que eu matei um inocente. A tristeza de hoje é a do homicida (pior: a do deicida!) que se descobre com as mãos sujas de sangue. Que se sabe pessoalmente responsável pelos dolorosos sofrimentos de Cristo, cujos gritos nós entrevimos nas páginas do Evangelho lidas mais cedo.

E estes gritos atravessaram os séculos e ressoam ainda hoje nos nossos ouvidos, lembrando-nos de que é Sexta-Feira Santa, é Sexta-Feira da Paixão e, hoje, nós crucificamos a Cristo. Quanta dor brota desta aterradora verdade, quanta tristeza emana desta assustadora tomada de consciência! Este é, contudo, o sentido do dia de hoje. O Salvador foi morto por nós, e jaz no túmulo, e estamos desamparados. Se fria é a pedra do túmulo, mas frio é o nosso coração manchado por tão terrível crime. Triste, para sempre triste, é o dia no qual estes fatos aconteceram.

Sexta-Feira, Passio Domini

Na realidade, nada é tão escuro e misterioso como a morte do Filho de Deus, que junto com Deus Pai é a fonte e plenitude da vida. Mas também nada é tão luminoso, porque aqui refulge a glória de Deus, a glória do Amor onipotente e misericordioso.

Card. Camillo Ruini, Via-Sacra no Coliseu, Sexta-Feira Santa 2010.
Décima Segunda estação: Jesus morre na Cruz.

Na Sexta-Feira da Paixão, nós não temos sequer missa. O único ato litúrgico do dia tem lugar às três horas da tarde, hora em que Nosso Senhor morreu. Prolongamento da cerimônia de ontem, que iniciou o Tríduo Sacro, a Celebração da Paixão do Senhor de hoje tem como principal característica o silêncio. Não há palavras capazes de exprimir adequadamente o grande mistério da morte de Deus. Resta-nos uma muda contemplação.

Os instrumentos musicais emudeceram desde ontem, e as matracas ainda tomam o lugar dos sinos alegres. A procissão de entrada, silenciosa, é quase lúgubre; este efeito é ainda mais intensificado pelo altar desnudo, o sacrário aberto e vazio, os crucifixos cobertos com pano. Prostra-se o sacerdote diante do altar, junto com os acólitos, e assim permanece por um breve período. A adoração silenciosa, quase perplexa, é o que resta ao pecador que se encontra diante do amor infinito de Deus, revelado em sua faceta mais radical.

Aqueles que, ontem, aceitaram que o Senhor lavasse os seus pés, precisam hoje aceitar que Ele lave os seus pecados. O paralelo é notável: São Pedro, ontem, disse a Nosso Senhor que Ele não lhe lavaria os pés: hoje, tentou impedir “a coorte e os guardas de serviço dos pontífices e dos fariseus” (Jo XVIII, 3) de levarem Nosso Senhor. E as duas respostas que Cristo deu, ontem e hoje, complementam-se de maneira fantástica: “se eu não tos lavar [os pés], não terás parte comigo”, ontem; e “[n]ão hei de beber eu o cálice que o Pai me deu?”, hoje. É como se dissesse Nosso Senhor: “veja, eu vou sofrer e vou ser crucificado, e vou morrer por ti, e se não o aceitares, não poderás permanecer comigo”.

Foi difícil a São Pedro permitir que Nosso Senhor lhe lavasse os pés; como não deve ter sido difícil aceitar que Ele morresse em seu favor! O silêncio, da celebração de hoje, é pesado também porque é humilhante. É quando o orgulho humano precisa ser quebrado, e é quando precisamos aceitar – porque não ousamos pedir – que o Deus Onipotente faça, por nós, algo que nós próprios muito provavelmente não faríamos por ninguém. Deus sofre por nós, e morre por nós, e o doloroso é que nós não podemos impedi-Lo, porque somos pecadores e precisamos do Seu Sacrifício Redentor. O silêncio é também contrito: a que ponto chegamos? Os nossos pecados são tantos e tão numerosos que conduziram Deus à morte. Fizemos tudo tão errado que o preço do conserto é o Divino Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado na Cruz.

“Senhor, perdoai-me” – é o grito que sobe do fundo do coração do homem que percebe o seu papel no drama que hoje se desenrola. Um duplo papel, aliás, que só faz sentido dentro da lógica do amor radical de Deus pelos seres humanos: nós somos, ao mesmo tempo, causa e fim dos sofrimentos do Filho de Deus. São os meus pecados que pregam Nosso Senhor na Cruz (Senhor, perdoai-me!), e é a morte de Nosso Senhor na Cruz que perdoa os meus pecados (Senhor, obrigado!). Somos, ao mesmo tempo, culpados e beneficiários. Como exprimir esta singular condição? Ajoelhamo-nos na leitura da Paixão de Nosso Senhor, quando Ele inclina a cabeça e rende o espírito – mais do que isso, não podemos fazer.

Mas também desçamos com Nosso Senhor ao túmulo. Preparemo-nos para o Sábado Santo, para o Terceiro Dia que já vem, quando Ele há de romper o Sepulcro e ressurgir, vencedor. Mas, por enquanto, é ausência. O Senhor está morto. Que a Paixão de Cristo possa nos confortar.

A Paixão do Senhor

Hoje, Sexta-Feira da Paixão, nós não temos a Santa Missa – é o único dia do ano em que não a temos. Reunimo-nos, no entanto, para a Celebração Litúrgica da Paixão. A cerimônia é riquíssima e haveria muito o que falar sobre ela, mas gostaria de iniciar com uma pergunta simples: por que não há Missa?

Santo Tomás de Aquino (Summa, IIIa, q. 83, a. 2, ad. 2) explica que a Eucaristia “é figura e imagem da Paixão do Senhor” e, por isso, no dia em que se recorda esta Paixão – “tal e como Ela aconteceu na realidade” – não se consagra a Eucaristia. É como se o Sacrifício Eucarístico desse lugar ao Sacrifício do Calvário – único e mesmo sacrifício, sem dúvidas, mas distintos no modo de oferecer: aquele incruento e, este, cruento. É como se hoje os fiéis se colocassem diante do Calvário não mediante o véu sacramental, mas o véu da lembrança: toda Missa é uma “celebração da Paixão”, mas na Sexta-Feira Santa nós participamos de uma Celebração da Paixão que não é Missa.

Eu, particularmente, gosto de encarar também a liturgia de hoje sob o aspecto do despojamento; é como se a Igreja morresse com o Seu Esposo, de tal maneira que nem mesmo a Santa Missa é celebrada. Mas a morte não tem a última palavra e, mesmo durante esta “morte litúrgica” que a Igreja apresenta hoje aos fiéis, muita coisa é feita: das leituras às Grandes Orações, da adoração da Cruz à procissão do Senhor Morto. Descemos ao túmulo, sim, mas para ressuscitar junto com Cristo. Vivemos de modo mais enfático a Morte do Salvador, mas à luz da Fé e não do desespero. A Igreja – ao contrário do que fizeram os Apóstolos n’Aquela Sexta-Feira – não “abandona” simplesmente o Crucificado. Como a Virgem Santíssima, fica aos pés da Cruz. Sofre, sim – mas aos pés da Cruz, e não longe d’Ela. Talvez isso até Lhe aumente o sofrimento, mas Ela sabe que é necessário, e é isso que Ela pede aos fiéis: que fiquem junto à Cruz. A Virgem Maria não gozou da companhia do Seu Divino Filho na Sexta-Feira da Paixão: ao invés disso, acompanhou-O ao Gólgata. De modo análogo, hoje, os fiéis não têm a consolação da Santa Missa: ao contrário, são convidados ao Calvário.

É, no entanto, no dia em que se celebra a Paixão do Senhor que a Igreja faz as Grandes Orações: pela Igreja, sem dúvidas, mas também pelos que não fazem parte da Igreja: pelos catecúmenos, pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos infiéis, pelos ateus, enfim, por todos. Reza-se, no Calvário, pela conversão de todos. É como se a Igreja Se lembrasse daquelas palavras de Nosso Senhor: “quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 32). E, de joelhos diante do Crucificado, pedisse Àquele que está levantado da terra que – como Ele disse que faria – atraia todos os homens a Si.

Segue a cerimônia com adoração da Santa Cruz, Comunhão, procissão. Cada uma das partes com um simbolismo riquíssimo. O altar permanece desnudado, os fiéis voltam para casa sem a bênção final. O Senhor está morto, e esta é a verdade que deve servir de meditação para os católicos no dia de hoje, é esta a verdade para a qual apontam a Via-Sacra, o jejum, a ausência da Santa Missa, as leituras da Paixão, a adoração da Santa Cruz, a procissão do Senhor Morto, tudo nesta Sexta-Feira Santa. Tudo lembra o Consummatum Est do Gólgota: se este Sacrifício de Amor passa-nos despercebido na Santa Missa quotidiana, na correria do dia-a-dia, a Igreja exige ao menos que hoje ele seja lembrado. Um Deus morreu por nós, foi levantado no Madeiro e, deste Lenho da Cruz, pendeu a salvação do mundo: Venite, Adoremus, é o convite que nos é feito. Atendamos a Ele: que a Salvação nascida da Cruz possa alcançar também a nós, miseráveis pecadores. Senhor, tende piedade de nós.

“Derramai Vosso furor…” (Jr 10, 25)

A atual subserviência do Ocidente começou com um pequeno passo; na década de 60, as Igrejas Ocidentais retiraram de sua liturgia uma oração, “Oremus et pro perfidis Judaeis”; “Oremos pelos pérfidos judeus: que Nosso Deus e Senhor remova o véu que cobre os seus corações, a fim de que eles aceitem a luz de Sua verdade que é Nosso Senhor Jesus Cristo e saiam das trevas em que se encontram”. Isto foi considerando “anti-semita”, embora fosse um eco distante da oração judaica “Shepokh Hamatha”, “Senhor, enviai a Vossa fúria sobre os goyim que não conhecem o Vosso Nome”. Mas os judeus preservaram a sua oração de vingança, enquanto cristãos perdidos e dominados abandonaram sua oração de misericórdia.
[Israel Adam Shamir, Gaza: Of Mice and Men – “Sobre ratos e homens”]

Leio no Fratres in Unum que ainda tem judeu reclamando da oração da Sexta-Feira por sua conversão! E quanto ao Sh’foch chamoscho el ha’Goyim da Pessach judaica? Eu, sinceramente, não me incomodo com ela (até porque são trechos bíblicos, que Deus não há de ouvir em desfavor da Sua Igreja), mas gostaria muitíssimo que os judeus nos deixassem rezar por eles em paz.