Um grande e divino bordado

Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. No entanto, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males da natureza – que aparecem como ligados aos limites próprios das criaturas –, e sobretudo à questão do mal moral. Donde vem o mal? «Quaerebam unde malum et non erat exitus – Procurava a origem do mal e não encontrava solução», diz Santo Agostinho. A sua própria busca dolorosa só encontrará saída na conversão ao Deus vivo. Porque «o mistério da iniquidade» (2 Ts 2, 7) só se esclarece à luz do «mistério da piedade» (1 Tm 3, 16). A revelação do amor divino em Cristo manifestou, ao mesmo tempo, a extensão do mal e a superabundância da graça. Devemos, portanto, abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor.
[Catecismo da Igreja Católica, §385]

O problema do mal é – reconheçamo-lo francamente – um dos mais espinhosos, se não o mais espinhoso, de toda a existência humana. Porque o sofrimento faz parte do mundo no qual vivemos, e nós só a muito custo – e só às vezes! – conseguimos enxergar algum sentido nele.

Há imagens diversas que podem ser usadas para explicá-lo. A frase de Santo Agostinho (não sei a referência) é das mais clássicas: Deus não permitiria o mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior. E esta frase tem o seu ainda mais clássico exemplo na Crucificação, nos sofrimentos do Calvário, no lenho da Cruz do qual pendeu a salvação do mundo: do sofrimento do Seu Filho, Deus fez Redenção. De um grande mal, Deus fez um bem inimaginável. A partir de então, todo sofrimento pode ser redentor:  “todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo” (Salvifici Doloris, 19).

No entanto, mesmo de posse desta verdade, continuamos muitas vezes – arriscar-me-ia a dizer as mais das vezes – sem ver exatamente como o nosso sofrimento concreto (ou o sofrimento das pessoas que nos são caras) entra(m) na economia da salvação. Há outra imagem da qual gosto (que não faz parte da Tradição da Igreja, até onde me conste): a do menino e o bordado. A mãe sentada na poltrona, o garoto no chão aos seus pés, a mãe bordando. “Mãe, o que são estes fios?” – pergunta o garoto. “Espera, que já te mostro” – responde a mãe. “Mas, mãe, está tudo bagunçado, os fiapos estão soltos, as cores misturadas; o que a senhora está fazendo?” – insiste o garoto. E a mãe insiste para que ele espere. Quando termina, a mãe suspende o menino nos braços e, pondo-o no colo, mostra o bordado visto de cima, onde as figuras desenhadas aparecem com nitidez e beleza, dando sentido ao emaranhado de fios que o garoto via do chão. E assim a nossa vida: o bordado de nossas dores só pode ser visto com clareza de outra perspectiva, “de cima”, do Céu, a partir dos braços do Altíssimo.

Mas não é fácil. Claro que não é fácil, porque não há limpidez no problema do mal, só há claro-escuro. Impacientamo-nos com facilidade, murmuramos com excessiva freqüência, às vezes desesperamo-nos. “O mal não é lógico” – disse certa vez o Papa Bento XVI. “Só Deus e o bem são lógicos, são luz. O mal permanece misterioso. Apresentámo-lo com grandes imagens, como faz o capítulo 3 do Génesis, com aquela visão das duas árvores, da serpente, do homem pecador. Uma grande imagem que nos faz adivinhar, mas não pode explicar quanto é em si mesmo ilógico. Podemos adivinhar, não explicar; nem sequer o podemos contar como um facto ao lado do outro, porque é uma realidade mais profunda. Permanece um mistério de escuridão, de trevas”.

“Mas” – prossegue o Papa –  “acrescenta-se imediatamente um mistério de luz. O mal vem de uma fonte subordinada. Deus com a sua luz é mais forte. E por isso o mal pode ser superado”. É uma paráfrase do parágrafo do Catecismo em epígrafe: devemos “abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor”. A única resposta ao problema do mal é sobrenatural, só nos é dada pela Fé. Sem ela, o homem fica perdido na ilogicidade do mal. E mais: se, mesmo com a Fé, é-nos fácil ceder à revolta e ao desespero, quanto mais sem ela!

Por fim, conclui o Papa dizendo que “o homem não é só curável, [como] de facto está curado. Deus introduziu a cura. Entrou pessoalmente na história. Opôs à fonte permanente do mal uma fonte de bem puro. Cristo crucificado e ressuscitado, novo Adão, opõe ao rio impuro do mal um rio de luz. E este rio está presente na história:  vejamos os santos, os grandes santos mas também os santos humildes, os simples fiéis. Vemos que o rio de luz que provém de Cristo está presente, é forte”. É a nossa esperança, à qual devemos nos aferrar com firmeza, confiando nas promessas d’Aquele que é a Verdade, ainda que não vejamos com clareza, e tenhamos que seguir tateando. Se temos que sofrer, que seja junto à Cruz de Cristo; se temos que conviver com a dor, que seja em união ao Homem das Dores. Não é possível que sejam inúteis os sofrimentos do mundo – isso repugna à razão. Não quero que sejam inúteis. Quero um grande e divino bordado – ainda que eu só o veja quando meu corpo for lançado à terra -, onde sejam louvadas as grandezas do Altíssimo. Domine, exaudi nos!

Comentando notícias empoeiradas

No meio das centenas de mensagens não lidas da minha caixa de emails, encontrei algumas que vale a pena comentar ainda que seja en passant, que já viraram embrulho de peixe mas bem que merecem ser conhecidas:

– Por ocasião da excomunhão dos médicos abortistas de Recife, a sra. Danuza Leão escreveu um texto [15 de março de 2009] sobre a Igreja Católica e o sofrimento. E faz uma triste constatação: “[o]s sacrifícios, tão cultuados entre os católicos (…), eram um grande sinal de amor a Deus”.

Eram…? E não são mais? Na cabeça da articulista, não. Igreja para ela, agora, “só em excursão turística – e assim mesmo só algumas”. O artigo é bem clichê com um monte de acusações nonsense – “ao considerar quase tudo que dá prazer um pecado, não dá para perceber o quanto as mentes católicas são doentes?”, “ai dos que são felizes, dão risadas e gostam da vida”, “[q]uem faz uma jura dessas [jurar amor ‘até que a morte nos separe’] é hipócrita, porque até as crianças do jardim-de-infância sabem que a vida não é assim”, “[s]e o Vaticano se desfizesse de metade de seus tesouros, é bem possível que não houvesse mais fome no mundo”, mas serve para que se constate, com tristeza, como o mundo perdeu o sentido salvífico da dor.

– Saiu n’O Globo [23 de março de 2009] um artigo de um leitor explicando por que a Igreja não é culpada pela proliferação da AIDS. São tempos estranhos, em que a acusação serve como prova cabal de culpa e o acusado precisa se justificar para provar que é inocente. Mas o sr. Yasha Gallazzi escreveu muito bem.

Torna-se, assim, mais simples atacar a pessoa do Papa e desmerecer seus argumentos, em vez de nos debruçarmos sobre o que ele falou. Ao lembrar que a distribuição maciça de camisinhas não foi suficiente para aplacar a disseminação da Aids, Bento XVI não disse nenhuma mentira, nem errou em sua análise. O que fez foi lembrar que o sexo casual e descompromissado é, sim, uma vertente do sexo irresponsável. A camisinha se torna uma espécie de algoz de sua suposta virtude, pois estimula – e isso é inegável – o sexo ligeiro e sem compromisso.

– Uma mulher matou marido, irmã e sobrinhas porque “não queria ver a família sofrer” [16 de abril de 2009]. Muito nobre? Inadmissível? De uma forma ou de outra, são argumentos análogos àqueles utilizados para a defesa do aborto eugênico ou da eutanásia. Às vezes é preciso levar as aplicações dos princípios às últimas conseqüências para que a bobagem resplandeça em toda a sua clareza. Infelizmente, tem gente que nem mesmo assim consegue ver…

– Aplicação concreta do que foi dito acima: Justiça de Goiás autoriza aborto eugênico [09 de abril de 2009]. “Infelizmente, é certa a morte do produto da concepção da requerente, não havendo procedimento médico capaz de corrigir a deficiência do órgão vital”, escreveu o juiz. O que tem [tinha?] a criança? “Síndrome de Kantrell [Cantrell]”, segundo a notícia. Qual a “lógica” do juiz? “Se não tem como curar, a gente mata”. Como um veterinário faria com um cachorro. “Para evitar o sofrimento dos parentes”, como a mulher da notícia anterior. Vinte segundos no Google me mostraram um relato de caso em adulto logo como primeiro resultado. Mas a sanha assassina de alguns não tem limites, não tem paciência: reservar vinte segundos para consultar o Google seria estender por tempo demasiado o sofrimento da mãe…

Deus e o vôo 447

“A esperança se foi”, disse dom Antônio de Orleans e Bragança em entrevista à ÉPOCA. Dom Antônio é o pai do Príncipe Pedro Luiz de Orleans e Bragança, que estava no fatídico vôo 447 da Air France.

Sua Alteza deixa transparecer serenidade em meio à dor; a entrevista, embora curta, possui muito conteúdo exatamente por causa disso. Perguntado sobre como está a família com esta perda, Sua Alteza responde: “Conformados. Somos católicos de muita fé e respeitamos a vontade de Deus”.

O Mallmal perguntou no seu blog onde estavam agora os católicos, para atribuírem à vontade de Deus o acidente aéreo da mesma forma como atribuem à Sua mão os acidentes que são evitados. Pois bem: eis aqui um membro da Família Imperial, católico, em meio à dor da perda de um filho, afirmando respeitar a vontade de Deus no acidente!

E isso conforta. São ainda palavras de Sua Alteza, imediatamente após curvar-se ante a vontade divina: “Muitas pessoas, em horas de sofrimento como esta, questionam erradamente a bondade de Deus. Penso que meu filho era bom demais, e talvez por isso Deus tenha o chamado para perto mais cedo”. Tristeza, sem dúvidas; luto, inegavelmente. Mas um luto sereno, e não desesperado. Isso faz toda a diferença.

Porque a dor é inevitável para quem vive. Nós, católicos, sabemo-lo muito bem; dizemos à Virgem Santíssima todos os dias que a Ela recorremos e suspiramos, “gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas”. A dor, repito, não deveria surpreender ninguém cuja religião brotou de uma Cruz no alto do Gólgota. Ao contrário do que parecem acreditar os detratores da Religião, Ela não promete (e nem nunca prometeu) um mundo isento de dores, e sim conforto e fortaleza em meio à dor, um sentido para a dor.

Outrossim, não somos marionetes nas mãos do Altíssimo, como também parecem acreditar os irreligiosos. O Mallmal disse que “quando o Airbus da US Airways caiu no Rio Hudson em Janeiro de 2009, multidões de religiosos (…) [d]esmereceram a incrível habilidade e experiência do piloto, que realizou um pouso dificílimo e arriscado” ao dizerem que foi “a mão de Deus [que] guiou o piloto”. Negativo. A Providência não “age sozinha”, e Deus de ordinário não evita acidentes por meio de milagres no sentido estrito (de uma derrogação das leis da natureza). À Providência de Deus, no caso do avião que pousou no Rio Hudson, coube fazer com que, no avião acidentado, estivesse exatamente um piloto com incrível habilidade e experiência, que conseguisse fazer o pouso arriscado, e não outro piloto inexperiente que não o conseguiria. Não tem ninguém “desmerecendo” a habilidade do piloto quando agradece a Deus, muitíssimo ao contrário. Agradecemos a Deus a habilidade do piloto e a sua presença no momento em que ela foi necessária.

Do mesmo modo, Deus não “derrubou” o avião da Air France no sentido de  que  uma Mão Gigante tivesse caído dos céus e batido no avião como a gente bate num mosquito. Não é isso que significa a vontade de Deus. O fato é que o avião caiu e ponto; e, se caiu, é porque aprouve ao Onipotente que caísse, porque nem mesmo um passarinho cai por terra sem o consentimento do Deus que está nos Céus (cf. Mt 10, 29). Ao religioso, cumpre reconhecer esta verdade e buscar as forças para vencer a dor em Nosso Senhor Jesus Cristo, cujo Sagrado Coração é fons totius consolationis. Repetimos: a Igreja não prometeu jamais uma terra sem males, e ninguém pode dizer-se enganado quanto a isso.

O que se pode esperar do Onipotente é consolo e fortaleza, e disso a Família Imperial está dando um belíssimo testemunho. Fé, em meio à dor. A pseudo-religiosidade atacada pelos anti-clericais, de um deus que fosse muleta para os fracos e os fizesse acreditar que não sofreriam, não existe na Igreja Católica, porque uma tal religiosidade desmanchar-se-ia qual castelo de areia quando confrontada com a dura realidade que é sempre dolorosa. Mas a Fé Católica resplandece, mesmo durante as tragédias, e as vence e supera porque é maior do que elas. Nossos pêsames a todos os vitimados por esta tragédia; que a Virgem Santíssima possa conceder a Misericórdia do Altíssimo aos que partiram e a Fortaleza do Espírito Santo aos que ficaram.

Dominica Quarta in Quadragesima

Lætáre, Jerúsalem: et convéntum fácite, omnes qui dilígitis eam: gaudéte cum lætítia, qui in tristítia fuístis: ut exsultétis, et satiémini ab ubéribus consolatiónis vestræ. Ps. 121, 1. Lætátus sum in his, quæ dicta sunt mihi: in domum Dómini íbimus. V/. Glória Patri. Lætáre.
[Introito da missa de hoje]

Assim começa a Santa Missa de hoje, quarto domingo da Quaresma, no qual o Roxo penitencial que permeia todo este tempo litúrgico é substituído pelo Rosa; é um grito de júbilo, antecipando a Páscoa que está às portas. Laetare, quer dizer, alegra-te. Alegra-te, Jerusalém – alegra-te, ó Igreja, porque o Senhor é Deus. Uma alegria contida, é verdade: usamos rosa, e não o branco dos dias de festa. Penso num misto de alegria com penitência, como se o rosa fosse resultado da mistura do branco festivo ao roxo quaresmal: ainda é Quaresma, mas a Igreja nos chama à alegria.

Qual o motivo da alegria? Podemos meditar em pelo menos três motivos pelos quais a Igreja nos convida ao júbilo no meio da Quaresma: pelo que somos, pelo que está por vir e – last, but not least – pela própria penitência. Devemos nos alegrar pelo que somos, como a própria Liturgia nos mostra na primeira leitura, da Epístola de São Paulo aos Gálatas, capítulo 4, versículos do 22 ao 31: nós somos filhos da promessa, e não filhos da escrava! Somos amados por Deus. “Abraão teve dois filhos”; e o filho de Sara, da esposa legítima, é figura dos filhos de Deus, dos filhos da Igreja, de nós. Alegremo-nos, diz a Igreja, “porque o filho da escrava não será herdeiro com o filho da livre” (v. 30).

Alegremo-nos também pelo que está por vir: em sentido imediato pela Páscoa, que celebraremos em breve, mas também pela Páscoa definitiva, que celebraremos na Glória dos Céus e que podemos esperar exatamente porque somos filhos da mulher livre, somos filhos da promessa, somos filhos da Igreja! A Páscoa que celebramos ao fim da Quaresma é também figura da Páscoa que – esperamos! – iremos celebrar ao fim da quaresma da nossa vida, ao fim da nossa peregrinação neste Vale de Lágrimas. Alegremo-nos, porque o Sábado Santo sucede à Quaresma; alegremo-nos, porque a Vida Eterna sucede à vida passageira, e a Glória dos Céus sucede aos sofrimentos terrenos. Esta é a nossa esperança, expressa de maneira magnífica no Rito do Batismo quando, indagados sobre o que nos concede a Fé, respondemos prontamente: a Vida Eterna. “[Q]uem não conhece Deus – diz o Papa Bento XVI -, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida” (Spe Salvi, 27). Nós conhecemos a Deus, e nós portanto podemos ter esperança verdadeira. Por isso, devemos nos alegrar.

E, por fim, devemos nos alegrar pela própria penitência, a quaresmal em primeiro lugar e a nossa penitência quotidiana – não é, afinal, a Quaresma figura da nossa vida? – que fazemos durante todos os nossos dias. O sofrimento não é vazio de significado; nós não fazemos penitência pelo simples fato de gostarmos de sofrer, mas sim porque sabemos que somos pecadores e sabemos que necessitamos da Misericórdia de Deus. O “alegrai-vos” em meio à penitência tem também o sentido de ecoar aquela máxima evangélica: Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós (Mt 5, 11-12). À luz da Fé Cristã, os nossos sofrimentos não são vazios, nem são frutos de um masoquismo humano ou sadismo divino – não! Os sofrimentos oferecidos a Deus em união aos de Nosso Senhor na Cruz do Calvário serão recompensados. Alegrai-vos, diz-nos a Igreja em meio à penitência quaresmal – aos sofrimentos quotidianos -, porque grande será a vossa recompensa nos Céus.

Em particular nestes dias em que a Igreja sofre tão violenta investida de Seus inimigos e nós, católicos, sofremos tanto ataques por causa de nossa Fé, são consoladoras as palavras de São Paulo na leitura de hoje: “Como naquele tempo o filho da natureza perseguia o filho da promessa, o mesmo se dá hoje” (v. 29). E, por isso, o Laetare deste quarto domingo vem para nos dar forças e consolação. Apesar de tudo, devemos nos alegrar. Apesar dos sofrimentos, e até por causa desses mesmos sofrimentos, pois eles são o fogo no qual o ouro é provado. Não nos esqueçamos de que somos amados por Deus; recordemos a nossa Esperança de celebrarmos um dia a Páscoa Definitiva; e lembremo-nos sempre de que são bem-aventurados aqueles que padecem sofrimentos por causa de Nosso Senhor. Ouçamos o Laetare, Jerusalem que a Igreja nos dirige hoje e, à luz da Fé, respondamos com confiança: Laetatus sum, sim, nós nos alegramos verdadeiramente! Que a Virgem Santíssima nos conceda a todos uma Santa Quaresma.

Carta aos Amigos da Cruz – S. Luís de Montfort

Na realidade, toda a perfeição cristã consiste nisto:

1) na firme vontade de tornar-se santo: “se alguém quer vir após Mim…”

2) na conversão: “renuncie a si mesmo…”

3) na mortificação: “tome a sua cruz…”

4) na ação: “e siga-Me”.

A – “Se alguém quer vir após Mim”

Se alguém quer… Repare-se no desafio, que aparece no singular. Não está escrito “se alguns… mas se alguém”: isto para indicar que será sempre um número reduzido de cristãos que aceitarão tornar-se conformes a Jesus Cristo Crucificado e carregar a própria cruz. Será sempre um número de tal maneira reduzido que, se o conhecêssemos, morreríamos de desgosto; é um número tão minúsculo que não haverá mais do que um em cada dez mil – fazendo fé em revelações a diversos santos, tais como a S. Simeão Estilita, segundo narra o santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, S. Basílio e outros -; enfim, é tão pequeno que se Deus quisesse reagrupá-los, lhes gritaria como fez outrora pela boca de um profeta: “E vós sereis recolhidos um a um” [Is 27, 12], um desta província, outro daquele reino.

Se alguém quer…, ou seja, se alguém tiver vontade de verdade, uma vontade total, que provém não já da natureza, da tradição, do amor próprio, do interesse ou do respeito humano, mas sim de uma graça eficaz do Espírito Santo, que não é concedida a todos: “Nem a todos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus” [Mt 13, 11; Mc 4, 11].

O conhecimento do mistério da Cruz, na sua real experiência, é dado a pouquíssimas pessoas. Quem quiser subir ao Calvário e deixar-se pregar na Cruz com Cristo, sob o olhar de sua própria gente, deve ser um corajoso e um herói, um homem decidido e uma pessoa de fé; deverá desprezar o mundo e o inferno; não deverá preocupar-se com o próprio corpo e vontade própria; pelo contrário, deverá estar disponível a deixar tudo e a tudo empreender e tudo sofrer por Jesus Cristo.

Ficai sabendo, queridos Amigos da Cruz, que aqueles entre vós que não tiverem esta vontade firme, caminham com um só pé, voam com uma só asa, e não são dignos de estar no meio de vós, porque não satisfazem condignamente o nome dos Amigos da Cruz, daquela Cruz que, à semelhança de Jesus, é preciso amar “com um coração grande e ânimo resoluto” [2 Mac 1, 3]. Uma vontade a meias – o mesmo que uma só ovelha sarnosa – será o suficiente para contaminar todo o rebanho. Se, porventura, houvesse já no vosso rebanho uma assim, que eventualmente se tivesse infiltrado pela falsa porta que utilizam os mundanos, eu vos esconjuro – em nome de Jesus Cristo crucificado – que a expulseis de imediato, tal como se expulsa uma loba do meio das ovelhas.

[…]

[S. Luís de Montfort, “Carta aos Amigos da Cruz”, Edições Monfortinas, 1ª Ed., Maio/2005]

A repulsa à Cruz de Cristo

Recebi hoje uma notícia segundo a qual uma igreja britânica decidiu retirar uma imagem de Cristo Crucificado da frente do templo, porque era desagradável aos fiéis – e “assustava as crianças”. Pelo que pude entender da reportagem, é uma igreja protestante; provavelmente anglicana.

A escultura (tem uma foto na reportagem linkada acima) é feia, mas não por ser uma “descrição horrenda da dor e do sofrimento”, e sim por ter sido feita numa arte moderna pela qual eu tenho uma natural repulsa. Não é tanto de causar tristeza a remoção da “obra de arte”, mas sim os motivos alegados para que ela fosse removida: o hedonismo do mundo moderno está contaminando até mesmo os cristãos, que não suportam mais pôr os olhos no Homem das Dores.

Ah, se eles soubessem que é precisamente a dor de Nosso Senhor que nos deve ser causa de santa alegria… se eles soubessem que “fomos curados graças às Suas chagas” (Is 53, 5)! Querer afastar a dor da vida é criar uma ilusão, porque nós vivemos – como rezamos na Salve Rainha – em um “Vale de Lágrimas”, e as tribulações não “desaparecem” quando nós fechamos os olhos e nos recusamos a vê-las. Devemos enfrentar os nossos sofrimentos e carregar as nossas cruzes; não fingir que elas não existem, porque existem, quer as aceitemos, quer não.

Ouvi certa vez alguém dizer que, no Calvário, havia três cruzes, para nos ensinar que todos sofrem: sofrem os inocentes, como Cristo, sofrem os pecadores penitentes, como São Dimas, e sofrem os que não aceitam o sofrimento, como “o Mau Ladrão” (Gesmas ou Gestas). É pouquíssimo provável que nós consigamos sofrer como inocentes, mas precisamos, no mínimo, aproveitar o nosso sofrimento para mais perfeitamente nos unirmos a Cristo Nosso Senhor, como São Dimas. O que não podemos, de nenhuma maneira, é sofrer como Gestas!

Dizer que o Crucificado assusta crianças é uma tremenda bobagem, somente concebível numa sociedade que tenciona, talvez, criar as suas crianças dentro de uma bolha cor-de-rosa onde o sofrimento não tem lugar. Quando, um dia, essas crianças forem confrontadas com “o mundo de verdade”, será então um grande choque; o mundo pode prometer uma vida sem sofrimentos, mas ele nada pode contra a palavra do Criador, que nos diz que, no mundo, havemos de ter aflições (cf. Jo 16, 33). Uma promessa de uma terra sem males é utópica e enganosa – a única esperança que podemos ter está precisamente na Cruz de Nosso Senhor, pois foi aí que Ele demonstrou o Seu amor por nós. Não com uma mentira reconfortante, mas com a verdade nua e crua, dolorosa, do Seu Divino Sangue se esvaindo, de Seus pés e mãos transpassados, da agonia do corpo exausto e ferido, dependurado à vista de todos, morrendo para que tivéssemos vida… Nós não queremos a falsa segurança de uma vida a salvo da morte, mas – ao contrário – a esperança de uma Vida apesar da morte. É disso que precisamos: da Verdade. A Cruz de Nosso Senhor nos traz à memória, de súbito, todo o cerne da mensagem de Salvação das Escrituras Sagradas: somos pecadores, Deus nos ama, temos esperança.

O mundo odeia a Cruz de Cristo… até onde pode ir um mundo que odeie o sofrimento? Como não perceber que uma concepção da vida que exclua a dor não vai poder produzir senão traumas e decepções, quando as pessoas se depararem – e fatalmente se depararão – com o mundo real? Busquemos o Crucificado, esforcemo-nos para estarmos sempre juntos de Nosso Senhor. E, junto com São Paulo, anunciemos com destemor “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; mas, para os eleitos – quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 23-24).

Manchete capciosa

Uma bela mensagem sob um título malicioso: Papa admite mais flexibilidade em relação à admissão dos fiéis aos sacramentos. A malícia está no fato de que o único “rigor” existente em relação à administração dos sacramentos é a exigência de uma vida moral reta, o que exclui, p.ex., casais em segunda união do Banquete Eucarístico. Falar em “flexibilidade” daria, então, a entender que o Papa estaria “relaxando” a prática da Igreja e “liberando geral”, como há tantos que o desejam hoje em dia.

Não fui eu o único a pensar assim. A mesma notícia reproduzida em G1 (aliás, o título ficou muito estranho; “Papa explica como enfrentar sofrimento e sacramentos” passa a impressão de que os sacramentos estão sendo “enfrentados”, e não “explicados” como é o correto) apressou-se em declarar:

O porta-voz esclareceu que, sobre este tema, Bento XVI não fez referência à questão da comunhão para os divorciados, que, segundo as normas da Igreja, não podem recebê-la, pois são considerados pecadores.

À exceção da terminologia inadequada (não é porque “são considerados pecadores” simpliciter, e sim “porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia” – Sacramentum Caritatis 29), ao menos agiu com honestidade a agência de notícias e não procurou distorcer as palavras do Santo Padre.

Muito bonita e digna de destaque a resposta do Papa, quando foi questionado sobre o sofrimento:

Na segunda parte do pontificado, João Paulo II foi o testemunho verdadeiro de como carregar a cruz; neste mundo do activismo, do jovem e do belo, a mensagem do sofrimento e da paixão tem um valor particular. (…) A presença de Cristo no sofrimento é um ensinamento fundamental do cristianismo. Aceitar o sofrimento é uma dimensão da humanidade.
[Bento XVI]

Sim, o sofrimento é uma dimensão humana que foi glorificada na Cruz do Calvário! Por meio do sofrimento, é-nos possível assemelhar-nos ao Homem das Dores. Ah, consolo tão sublime e tão ignorado em nosso mundo hedonista!

Sugestão de leitura: Salvifici Doloris, de João Paulo II.