Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. No entanto, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males da natureza – que aparecem como ligados aos limites próprios das criaturas –, e sobretudo à questão do mal moral. Donde vem o mal? «Quaerebam unde malum et non erat exitus – Procurava a origem do mal e não encontrava solução», diz Santo Agostinho. A sua própria busca dolorosa só encontrará saída na conversão ao Deus vivo. Porque «o mistério da iniquidade» (2 Ts 2, 7) só se esclarece à luz do «mistério da piedade» (1 Tm 3, 16). A revelação do amor divino em Cristo manifestou, ao mesmo tempo, a extensão do mal e a superabundância da graça. Devemos, portanto, abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor.
[Catecismo da Igreja Católica, §385]
O problema do mal é – reconheçamo-lo francamente – um dos mais espinhosos, se não o mais espinhoso, de toda a existência humana. Porque o sofrimento faz parte do mundo no qual vivemos, e nós só a muito custo – e só às vezes! – conseguimos enxergar algum sentido nele.
Há imagens diversas que podem ser usadas para explicá-lo. A frase de Santo Agostinho (não sei a referência) é das mais clássicas: Deus não permitiria o mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior. E esta frase tem o seu ainda mais clássico exemplo na Crucificação, nos sofrimentos do Calvário, no lenho da Cruz do qual pendeu a salvação do mundo: do sofrimento do Seu Filho, Deus fez Redenção. De um grande mal, Deus fez um bem inimaginável. A partir de então, todo sofrimento pode ser redentor: “todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo” (Salvifici Doloris, 19).
No entanto, mesmo de posse desta verdade, continuamos muitas vezes – arriscar-me-ia a dizer as mais das vezes – sem ver exatamente como o nosso sofrimento concreto (ou o sofrimento das pessoas que nos são caras) entra(m) na economia da salvação. Há outra imagem da qual gosto (que não faz parte da Tradição da Igreja, até onde me conste): a do menino e o bordado. A mãe sentada na poltrona, o garoto no chão aos seus pés, a mãe bordando. “Mãe, o que são estes fios?” – pergunta o garoto. “Espera, que já te mostro” – responde a mãe. “Mas, mãe, está tudo bagunçado, os fiapos estão soltos, as cores misturadas; o que a senhora está fazendo?” – insiste o garoto. E a mãe insiste para que ele espere. Quando termina, a mãe suspende o menino nos braços e, pondo-o no colo, mostra o bordado visto de cima, onde as figuras desenhadas aparecem com nitidez e beleza, dando sentido ao emaranhado de fios que o garoto via do chão. E assim a nossa vida: o bordado de nossas dores só pode ser visto com clareza de outra perspectiva, “de cima”, do Céu, a partir dos braços do Altíssimo.
Mas não é fácil. Claro que não é fácil, porque não há limpidez no problema do mal, só há claro-escuro. Impacientamo-nos com facilidade, murmuramos com excessiva freqüência, às vezes desesperamo-nos. “O mal não é lógico” – disse certa vez o Papa Bento XVI. “Só Deus e o bem são lógicos, são luz. O mal permanece misterioso. Apresentámo-lo com grandes imagens, como faz o capítulo 3 do Génesis, com aquela visão das duas árvores, da serpente, do homem pecador. Uma grande imagem que nos faz adivinhar, mas não pode explicar quanto é em si mesmo ilógico. Podemos adivinhar, não explicar; nem sequer o podemos contar como um facto ao lado do outro, porque é uma realidade mais profunda. Permanece um mistério de escuridão, de trevas”.
“Mas” – prossegue o Papa – “acrescenta-se imediatamente um mistério de luz. O mal vem de uma fonte subordinada. Deus com a sua luz é mais forte. E por isso o mal pode ser superado”. É uma paráfrase do parágrafo do Catecismo em epígrafe: devemos “abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor”. A única resposta ao problema do mal é sobrenatural, só nos é dada pela Fé. Sem ela, o homem fica perdido na ilogicidade do mal. E mais: se, mesmo com a Fé, é-nos fácil ceder à revolta e ao desespero, quanto mais sem ela!
Por fim, conclui o Papa dizendo que “o homem não é só curável, [como] de facto está curado. Deus introduziu a cura. Entrou pessoalmente na história. Opôs à fonte permanente do mal uma fonte de bem puro. Cristo crucificado e ressuscitado, novo Adão, opõe ao rio impuro do mal um rio de luz. E este rio está presente na história: vejamos os santos, os grandes santos mas também os santos humildes, os simples fiéis. Vemos que o rio de luz que provém de Cristo está presente, é forte”. É a nossa esperança, à qual devemos nos aferrar com firmeza, confiando nas promessas d’Aquele que é a Verdade, ainda que não vejamos com clareza, e tenhamos que seguir tateando. Se temos que sofrer, que seja junto à Cruz de Cristo; se temos que conviver com a dor, que seja em união ao Homem das Dores. Não é possível que sejam inúteis os sofrimentos do mundo – isso repugna à razão. Não quero que sejam inúteis. Quero um grande e divino bordado – ainda que eu só o veja quando meu corpo for lançado à terra -, onde sejam louvadas as grandezas do Altíssimo. Domine, exaudi nos!