O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada

O site do Vaticano ostenta hoje, logo na sua página inicial, a viagem apostólica do Papa Francisco à Suécia — seguida pelo constrangedor subtítulo de «por ocasião da comemoração comum luterano-católica da reforma». Como o assunto dá margem para muitíssima confusão — com pessoas exultando por um lado porque a Igreja está “aceitando” o protestantismo e, pelo outro, rasgando as vestes porque o Papa é a Besta do Apocalipse –, convém pontuar alguns detalhes aos quais não se costuma dar a devida atenção.

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Duas semanas atrás eu escrevi aqui sobre a peregrinação a Roma que o heresiarca Lutero, em efígie, foi constrangido pelos seus descendentes a fazer. Era Lutero se revirando no túmulo e os protestantes carregando a sua estátua para a apresentar ao Vigário de Cristo. Já então houve quem perguntasse, se fosse assim, como se deveria ler a anunciada viagem do Papa à Suécia que hoje se inicia. Ora, outra leitura não é possível fazer: é o Bom Pastor que, destemidamente, vai mesmo aos mais putrefatos charcos em busca da ovelha desgarrada, a fim de lhe colocar sobre ombros para a trazer de volta ao aprisco de Cristo — no interior do qual somente ela é capaz de encontrar segurança!

É claro que é incômodo ver falar-se de “comemoração” em se tratando de uma revolta luciferina que estraçalhou a Cristandade e precipitou milhões de almas no Inferno pelos últimos quinhentos anos. Dê-se, no entanto, um desconto ao bom-mocismo e à política de boa-vizinhança: é um tributo que mesmo os melhores pagam aos tempos que correm. Etimologicamente comemoração significa “lembrar junto” e pronto; não há que se falar n’alguma conotação laudatória intrínseca ao termo, como se o Papa estivesse louvando a heresia ou enaltecendo o heresiarca. Fui olhar a página da viagem apostólica em seus diversos idiomas; em inglês diz «commemoration», em espanhol, «conmemoración», em italiano «commemorazione». Ora, fala-se sem maiores celeumas em «commemorazioni del centenario» da Primeira Guerra Mundial (do início, em 2014, e não do fim) e em «commemoration of the Holocaust», e ninguém é louco de dizer que, por conta disso, o Holocausto ou a Primeira Guerra sejam coisas positivas. Por mais malsonante que o termo “comemoração” nos seja, portanto, o que interessa é o conteúdo do encontro e não o nome que se lhe dá. O mesmo, aliás, foi dito recentemente por um ex-protestante convertido à Igreja em 2014: a visita do Papa «comemora a reforma, não a celebra».

Os protestantes provavelmente consideram uma coisa boa a origem de sua religião; os católicos certamente não consideramos uma coisa positiva a ruptura eclesiástica. Católicos e protestantes, assim, podem até lembrar juntos o mesmo evento do 31 de outubro, mas o fazem sob óticas distintas: estes o lembram como um feito heroico a ser celebrado, enquanto os primeiros o veem como uma lembrança triste que se deve lutar por não repetir jamais. Toda declaração ecumênica tem um quê de fórmula de compromisso, passível de leituras diferentes por cada um dos lados — é óbvio. Não fosse assim, tratar-se-ia já de plena comunhão e não de caminho ecumênico.

O diálogo ecumênico travado a nível das grandes lideranças religiosas apresenta, assim, essa característica particular: por vezes dá mais ênfase ao consenso político que ao rigor doutrinário. Pode-se até discordar dessa abordagem, mas é equivocado conferir a esses documentos a mesma leitura que se dá aos cânones dos concílios dogmáticos: são dois discursos completamente diferentes a exigir hermenêuticas completamente distintas. Concretamente: diante — por exemplo — da declaração conjunta hoje proferida em Lund pode-se até dizer que silenciar os pontos de discordância entre a Fé e a heresia mais atrapalha que ajuda a causa da plena comunhão, mas não se pode ler na referência aos «dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma», por absurda que seja a frase, uma revogação tardia da Exsurge Domine.

E não se diga que tal é coisa exclusiva do atual pontificado! Bento XVI não foi para Erfurt dizer que o «pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica»? A única diferença entre as duas atitudes é o estilo do velho pontífice alemão. De resto é a mesma coisa: são os usos contemporâneos, as regras de etiqueta socialmente aceitas nos tempos de hoje. É um equívoco imaginar que elas sejam mais do que fórmulas de tratamento e regras de educação — função fática que só serve para manter aberto o canal de comunicação adequado à sensibilidade contemporânea.

É grande a miséria espiritual dos pobres filhos da Reforma! Não é para os manter na indigência que o Papa Francisco lhes vai ao encontro. O que move o Vigário de Cristo não é a indiferença pela sorte eterna dos que morrem longe da Igreja de Cristo, mas a «esperança da reconciliação» entre os discípulos de Cristo e os sequazes de Lutero. Também pelos hereges morreu Nosso Senhor, também a eles se estende a mensagem salvífica do Evangelho. Não é possível bater o pó das sandálias de uma vez para sempre; a cada homem Cristo dirige o Seu chamado. Para que se converta, evidentemente, que não se trata (talvez não seja nunca demais repetir) de manter os hereges longe da Fé. Mas não se pode simplesmente presumir que todos os transviados do mundo tenham a exata dimensão do quanto estão perdidos.

Se o Papa se apresenta sujo de lama e coberto de espinhos, portanto, talvez não precisemos lançar-lhe em face o desleixo ou censurar-lhe pelas costas a displicência com a qual ele se entrega à causa do Evangelho. Talvez ele esteja fazendo o melhor que pode. Talvez esteja fazendo melhor do que qualquer um de nós faríamos. Talvez ele faça exatamente o que precisa ser feito. Não se passa uma vida inteira pregando em meio aos bárbaros sem lhes adquirir alguns hábitos que pareçam repulsivos a uma sensibilidade mais refinada. Ora, o mundo moderno é completamente insano; deveríamos nos surpreender tanto assim que, à força de ser obrigada a lhe falar dia e noite sobre Cristo, a Igreja historicamente encarnada adquira dele alguns cacoetes?

Talvez a voz cansada do Bispo de Roma não esteja à altura dos coros angélicos que desejaríamos ver anunciando o Evangelho. É possível. Mas Cristo nos mandou seguir o velho pescador e não as falanges angélicas. A submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, e a observância dessa regra básica não está condicionada a nenhuma qualidade particular daquele que esteja sentado no Trono de Pedro. Nem muitíssimo menos aos juízes particulares que somos tentados a fazer a respeito das qualidades daquele que porta na fronte a tríplice coroa do poder supremo.

Enfim, o Papa Francisco vai à Suécia. O Bom Pastor vai ao encontro das ovelhas desgarradas em meio aos pântanos pestilentos, do filho pródigo refestelando-se na lavagem dos porcos, dos bastardos de Lutero chafurdando na heresia. Os seus pés podem estar rasgados, suas vestes, enlameadas, sua voz rouca; mas são só os pés dele que conhecem o caminho da Salvação, é nas suas vestes apenas que estão estampadas as insígnias do Rei, é através da voz dele somente que Cristo nos fala e nós O temos que ouvir. 

Sobre comos e porquês

Hoje, voltando para casa, eu ouvia na CBN os apresentadores comentarem sobre uma mulher que roubou um trem na Suécia que, conduzido em alta velocidade, terminou descarrilhando e se chocando contra uma casa. E, para mim, o mais surpreendente foi o comentário do repórter: segundo ele, não se sabia ainda como a mulher – de vinte anos – conseguira as chaves do trem.

Ora, parece-me um sinal de que alguma coisa está profundamente errada quando a curiosidade humana, diante de um fato insólito, direciona-se para aquilo que é mais banal e corriqueiro, e não para o que é curioso e extraordinário. O grande mistério por detrás de uma jovem sueca que rouba um trem não está nos artifícios por ela empregados para obter a chave da locomotiva: a primeira óbvia pergunta instigante a se fazer aqui é por que raios alguém quereria roubar um trem! Diante da profunda inquietude desta indagação, chega a ser obsceno silenciá-la com uma trivialidade sobre roubos de chaves. Afinal de contas, chaves são roubadas todos os dias: as estranhas razões que levam alguém a roubar um trem é que constituem, aqui, o fato fora do comum que é digno de nossa atenção. Como alguém o fez é somente um detalhe, profundamente insignificante diante da terrível questão sobre o porquê disso ter sido feito. E se as pessoas não têm interesse em questionar o porquê das coisas nem mesmo diante de um fato extraordinário como este, acaso poderão perguntá-lo a respeito dos triviais?

Não creio ser exagerado alertar para os riscos de uma certa atrofia mental provocada por atitudes assim. E temo que isso não tenha sido um simples deslize do repórter, mas muito pelo contrário: infelizmente, penso que seja um tipo de condicionamento intelectual, ao qual as pessoas são (até involuntariamente) levadas por conta da filosofia moderna que, como ar poluído, respiram sem disso se aperceberem.

Durante séculos, os filósofos se perguntaram sobre o porquê das coisas. Com a advento da ciência moderna, estas questões foram degredadas para os obscuros reinos da Metafísica, tanto mais irrelevantes quanto mais deslumbrados os intelectuais ficavam com as respostas que obtinham sobre como as coisas funcionavam. Até que o desinteresse degenerou em ignorância e, hoje, o pensamento filosófico dominante (e, por extensão, o raciocínio ordinário das pessoas comuns) muitas vezes não é sequer capaz de formular uma questão sobre por que algo é de tal ou qual maneira.

Com este texto não se quer, absolutamente, desmerecer o conhecimento sobre os modos como as coisas se operam. É claro que entender as causas materiais que produzem os efeitos que observamos no mundo é da mais alta importância: é isso que nos permite prever, evitar ou provocar uma enorme variedade de coisas, e esses conhecimentos são absolutamente fundamentais para a nossa existência no universo. Isso não está em discussão. O ponto é que direcionar unilateralmente a inteligência humana para a investigação sobre como as coisas funcionam é contrair uma terrível estreiteza intelectual, cuja conseqüência menos dramática é se deparar com uma jovem dirigindo desgovernadamente um trem roubado e não ser capaz de fazer nenhuma pergunta mais interessante do que “e como ela fez isso?”.

Li há muito tempo um certo texto do Gustavo Corção dirigido contra um filósofo de nome engraçado que afirmara ter Dante errado ao dizer, no final do “Paraíso”, que é o «amor que move o sol e as outras estrelas». Lembro-me de que à época julguei isso uma polêmica profundamente vazia; mas hoje eu vejo a importância do encarniçado debate então conduzido com tanto denodo pelo famoso articulista católico. Porque confundir os “porquês” com os “comos”, as razões profundas com as causas materiais, é uma infame agressão à razão humana, é uma terrível confusão intelectual que – quando menos, por amor à verdade – cumpre ser desfeita.

Afinal, sem certos conhecimentos corre-se o risco de ter muitas informações e, simultaneamente, não entender nada de realmente importante. É como se a uma criança que perguntasse por que aquele móvel grande da sala faz “tic-tac” o pai começasse a falar sobre movimentos pendulares e mecânica de engrenagens, quando na verdade o que ela precisava saber era “porque ele marca o tempo, e papai precisa saber as horas”. Depois é possível falar em engrenagens e pêndulos, que é como os relógios funcionam; mas é profundamente estúpido dedicar-se com afinco às minúcias da relojoaria antes de sedimentar o conhecimento de que os relógios existem porque as pessoas querem saber que horas são. E, pela mesma razão, achar que o mecanismo do relógio é mais relevante do que o fato de que ele serve para ver as horas denota uma grave deficiência intelectual, que é dever de justiça apontar e tentar corrigir.

Apanhado ligeiro

Pais não revelam sexo de sua criança de dois anos e meio. Na opinião da mãe, “[q]ueremos que Pop cresça com maior liberdade e que não seja forçado a um gênero que o/a moldará”. A criança “usa vestidos e também calças masculinas e seu cabelo muda do estilo feminino para o masculino a cada manhã”. Sinceramente, isso já está ultrapassando todos os limites do ridículo. Sempre me pareceu a coisa mais estúpida do mundo recusar-se a dar educação religiosa para a criança, sob a justificativa de que ela poderia “escolher por si própria” quando crescesse. Parece que eu estava enganado, porque conseguiram fazer uma coisa ainda mais idiota na Suécia. Pobre criança! Será que a mãe dela também vai se recusar a mandá-la à escola para que ela decida sozinha, quando crescer, se quer estudar ou não?

Jovens que matam cão em vídeo confessam crime no RS. Fiquei curioso por saber qual era o crime em que incorria quem matasse um cachorro. Acredito que seja a Lei de Crimes Ambientais (9.605/98). Segundo esta, é crime “[p]raticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados”, e “[a] pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal” (art. 32). A pena? “[D]etenção,  de três meses a um ano, e multa”. Temos, portanto, que os garotos que mataram um cachorro no RS podem ficar presos por até 16 meses, além de pagarem multa (a conjunção é aditiva, e não alternativa). Obviamente, o ato praticado pelos fulanos foi bárbaro e sádico (eles mataram o pobre animal a pauladas, enquanto filmavam), mas gastar tempo e dinheiro com abertura de inquéritos e procedimentos judiciais, que podem culminar em quase um ano e meio de prisão, não é um pouco exagerado para um cachorro morto?

– Mais sobre Honduras: Bispos católicos das Honduras apoiam golpistas (!), na suprema imparcialidade deste jornal eletrônico de Portugal; o avião do presidente deposto, que iria pousar ontem em Tegucigalpa, foi impedido de aterrissar. Uma pessoa morreu nas manifestações. O presidente Lula se diz preocupado com o aumento da violência no país, mas não esconde a sua simpatia – ou, melhor dizendo, o seu apoio entusiasta – ao presidente exilado: “[o]s golpistas têm que entender isso: não é possível aceitarmos mais golpes na América Latina”, “[o governo interino de Honduras] não pode ser reconhecido em hipótese alguma”, e “precisamos procurar uma interlocução, não com os golpistas mas com personalidades [da sociedade]”…

Enfim, um ateísmo com profundidade, artigo da Carta Capital. Onde está esta “profundidade”, é um mistério que me escapa à compreensão; talvez no livro citado pelo articulista, “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville. Não conheço a obra, mas é importante não confundir o autor com Augusto Comte. Parece ser interessante, porque fala em “espiritualidade atéia” e em “Pentecostes dos ateus, ou o verdadeiro espírito do ateísmo”. Achei engraçado como este “verdadeiro espírito” ateu parece uma caricatura do cristão. Se tiver tempo, ponho uma resenha do livro aqui depois.

Suécia, Recife, Brasília

Suécia legaliza o “casamento gay”. Segundo a notícia, a “união civil” entre pessoas do mesmo sexo era já permitida e, agora, o que foi aprovado foi o “casamento” formal. Não sei as distinções jurídicas específicas entre as duas coisas, mas gostaria de dizer que 1. o resultado da votação [261 votos a 22] é vergonhoso e preocupante, 2. ao menos a lei (ainda! Ainda!) “não obriga os clérigos que discordam dela a celebrarem os casamentos”, 3. a Igreja Luterana Sueca “disse que está aberta a celebrar e a registrar uniões do mesmo sexo”, dando mais uma vez eloqüente testemunho da degradação moral até onde se chega longe de Roma, e 4. não entendo o motivo de “Gays faze[re]m ato pelo uso da camisinha”, como é mostrado na foto…

– O Diário de Pernambuco daqui da terrinha publicou uma matéria em defesa do aborto legal: as pessoas começam a tomar posições mais claras, e as defesas antes veladas agora são impressas e publicadas à luz do dia. Vale lembrar que não existe aborto legal no país, ao contrário do que diz a reportagem. É uma lástima que os hospitais recebam dinheiro do SUS para assassinar crianças; mas é reconfortante saber que “profissionais de saúde de hospitais públicos que oferecem o serviço de aborto legal recusam-se a realizar o procedimento”. A sanha assassina do governo não é compartilhada pelos cidadãos; estes recusam-se a entorpecer a sua consciência com argumentos falaciosos mil, e sabem que o “não matarás” que carregam inscrito no coração é indelével.

– É uma coisa impressionante encontrar uma notícia dessas na grande mídia e, portanto, gostaria somente de registrar aqui: Dilma e sua trupe planejavam seqüestrar o (então) Ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, segundo afirma o Josias de Souza no seu blog. A ex-terrorista nega peremptoriamente. E, aliás, acho bem provável que quase ninguém dê bola para isso…