[ATENÇÃO! SE NÃO QUISER SABER O FINAL DO FILME, NÃO LEIA!]
Fui assistir “O Nevoeiro” hoje à noite – minha falta de carteira de estudante acaba por me empurrar para as sessões promocionais das segundas-feiras. O filme é tosco e cansativo – afinal, os monstros sem pé nem cabeça e a explicação ridícula da origem deles são maçantes -, mas tem alguns aspectos (dois, pelo menos) que podem render alguns comentários interessantes.
Primeiro: a crente. Óbvio que não gostei da personagem, em primeiro lugar por ser um claro exemplo de violação do Segundo Mandamento e de zombaria feita com as Escrituras Sagradas, e em segundo lugar por uma questão de justiça – nem o protestante mais tapado conseguiria ser como aquela mulher. A caricatura é grotesca e inverossímil; mas não pude deixar de olhar para o fundamentalismo daquela senhora sem me lembrar dos cátaros medievais. Não por similaridade de comportamento, porque imagino que nem os albigenses conseguiam ser tão insuportáveis quanto aquela mulher; mas (guardadas as devidas proporções) por causa do comportamento deletério para a sociedade.
O que faz a maluca? Enquanto os monstros estão matando todo mundo (as pessoas ficaram presas pelo nevoeiro dentro de um supermercado), ela “funda” uma seita da qual é pastora suprema e, convencendo as pessoas aterrorizadas de que tem um contato direto com Deus e de que as tragédias estão acontecendo como punição por causa dos pecados das pessoas, torna a convivência dentro do supermercado absolutamente impossível. Após ela pintar a miséria – chegando até a acusar um soldado de ser o responsável pela abertura das portas do inferno e incitar o povo a lançá-lo aos monstros, o que foi prontamente feito -, a cena apoteótica é quando as últimas pessoas sensatas [entre elas, uma criança] estão pensando em sair do supermercado para pegar o carro e fugir do nevoeiro e a doente aparece com uma faca dizendo que ninguém vai sair e exigindo a criança em sacrifício (!) para aplacar a ira divina.
Um dos “mocinhos” tinha uma arma, e com dois tiros na delinqüente o problema é resolvido. Mas fica o espécimen a ser estudado, como um exemplo (claríssimo) de quando a utilização da força é necessária para coibir uma (doentia) manifestação religiosa que provocaria uma tragédia se fosse deixada impune. E bem que poderiam ter dado dois tiros na senhora antes de tudo, para evitar a desgraça toda… não poderiam? Não, não poderiam, porque no início ela era insuportável, mas inofensiva. Agora, certamente poderiam tê-la amarrado e lançado no porão, empregando assim a força necessária – sem exageros – para manter a ordem no supermercado e possibilitar a colaboração efetiva de todos tendo em vista o bem comum (no caso, sobreviver aos monstros).
O segundo, é o fim do filme. Após conseguirem evitar os monstros e embarcarem num carro, os últimos cinco sobreviventes tentam fugir do nevoeiro andando, andando, andando… até que acaba a gasolina. Ficam, então, os cinco sem nenhuma perspectiva de sobrevivência, dentro de um carro com o tanque de combustível vazio, no meio do nevoeiro repleto de monstros assassinos… e com um revólver e quatro balas. A tentação é grande demais – afinal, o que eles podem fazer dentro do nevoeiro? O problema é que são cinco para quatro balas… todos, por fim, firmam tacitamente o acordo de que o suicídio é o melhor consolo, a última opção digna, o único caminho que restou.
Quatro tiros dentro do carro – e o protagonista, que abdicou do consolo da bala nos miolos em favor dos seus companheiros, sai do carro gritando, esgotado, para alcançar dolorosamente nas garras dos monstros o mesmo fim que os seus amigos conseguiram rapidamente com os tiros de revólver. Após gritar, chorar, chamar os monstros, eis que, por trás do nevoeiro, surge vindo em sua direção um gigante… tanque de guerra. Os soldados chegaram, trazendo caminhões de sobreviventes, tocando fogo nos monstros, e o nevoeiro começa a se dissipar, mostrando o sol a brilhar e o interminável comboio do exército salvador.
Após tudo o que eles passaram, no limiar da vitória, os cinco sobreviventes não morreram na praia – mataram-se na praia! A falta de coragem no último momento, a opção pelo caminho menos doloroso, a desistência no final, quando bastavam mais cinco minutos. A situação pode parecer sem saída; mas nunca é lícito entregar-se. Ainda que o exército salvador não viesse, não é moralmente aceitável o suicídio. Pode-se meter uma bala na cabeça da criminosa que dissemina o caos no supermercado, visando restabelecer a ordem, sim; mas não se pode meter uma bala na própria cabeça para fugir do desespero de uma (provável) morte terrível. O filme conseguiu um insólito final no qual a sobrevivência é pior do que a morte. Ensinando-nos, quiçá, as dolorosas conseqüências de uma escolha errada. Afinal de contas, nunca se sabe o que pode sair de dentro do nevoeiro; e é melhor morrer lutando do que perder as esperanças quando a aurora já rasga o horizonte.