As tatuagens e a liturgia tridentina

A respeito da polêmica envolvendo a Sara Winter, as tatuagens e uma Missa do IBP em Brasília, conforme relatada pelo sr. Thácio Siqueira em três posts consecutivos (aqui, aqui e aqui), parece oportuno fazer algumas considerações.

1. A despeito de quaisquer boas intenções que possa ter havido de ambos os lados, o resultado é uma tragédia completa. Por um lado, uma recém-convertida saindo aos prantos de um templo católico por ter sido quase escorraçada de lá no meio de uma Missa; por outro lado, um «professor de Teologia e Filosofia, formado em Roma» publicando absurdos na internet e indispondo a opinião pública contra uma espiritualidade católica, santa e legítima. É difícil imaginar como as coisas poderiam sair pior.

deus_large

2. Sobre as tatuagens, no mérito, eu confesso que não sei de onde foi tirada a informação de que fazê-las seria pecado mortal contra o Quinto Mandamento. O Catecismo não diz isso, nem o novo, nem o Tridentino. O Compêndio do Del Greco não tem um verbete “tatuagem” no índice remissivo. A Teología Moral para seglares do pe. Royo Marín não diz nada sobre o tema, nem o Compendio Moral Salmaticense. Desconheço, do mesmo modo, qualquer pronunciamento da Santa Sé, do Papa ou dos Dicastérios Romanos, a respeito do assunto. Não se compreende, assim, que “pecado mortal” seria esse que, desconhecido dos moralistas e dos documentos eclesiásticos, pode licitamente ser bramido em uma Missa contra uma recém-convertida que traz ainda em seu corpo as cicatrizes de sua vida pregressa — e aqui chegamos ao ponto seguinte.

3. Sobre as tatuagens, na forma, a coisa não podia ser mais desajeitada. Sinceramente! Conceda-se, ad argumentandum, que as tatuagens sejam pecado mortal; por conta disso se vai expôr uma fiel no meio da missa, uma visitante, diante de toda a comunidade reunida? Não se cogitou, se se julgasse realmente preciso, repreender em privado? Era mesmo necessário o julgamento em público, a crítica feita do alto do púlpito, a censura áspera e claramente endereçada diante de todos?

Mais até: o pecado é um ato que se pratica, e não uma condição que se adquire. A tatuagem não é um ato humano e sim uma marca, uma coisa; se houvesse pecado aqui, ele obviamente seria o de fazer a tatuagem, e não o simples fato de possuí-la. Concedendo portanto que um pastor de almas pudesse censurar e repreender um fiel que estivesse em vias de fazer uma tatuagem, não se pode transpôr essa mesma lógica para um fiel que possua uma tatuagem já feita. Como saber se a tinta na pele não é meramente o resquício de um pecado já há muito arrependido? Como inferir, dos desenhos no corpo feitos no passado (sabe-se lá o quão distante!), a presença de um vilipêndio em ato ao templo do Espírito Santo em que, pelo Batismo, se torna o corpo humano?

Finalmente, a exigência de se reverter as consequências dos pecados anteriormente cometidos não é absoluta. Quem rouba um relógio precisa devolver o relógio roubado ou o equivalente, sem dúvidas; mas quem amputa o próprio braço não está forçado a implantar um braço biônico, a quem comete um aborto não é exigido que adote uma criança, quem faz vasectomia não é constrangido a se submeter a uma segunda cirurgia para reverter a esterilidade provocada. Por que cargas d’água quem fez uma tatuagem — tudo isso considerando que fazer tatuagem fosse pecado! — estaria moralmente obrigado a removê-la?

Tudo isso parece um excesso de zelo totalmente desordenado. E tal falta de sensibilidade dos envolvidos nessa quixotesca cruzada contra as tatuagens — é o ponto seguinte — terminou por dar azo a que o sr. Thácio Siqueira denegrisse a imagem dos fiéis que aderem à espiritualidade católica tradicional, prestando um enorme desserviço à causa da Liturgia.

4. No afã de protestar contra o absurdo de que foi vítima a Sara Winter, o sr. Thácio terminou por voltar os seus canhões contra a própria espiritualidade católica tradicional, criticando a coisa certa pelas razões erradas e protagonizando um espetáculo tão contraditório quanto deplorável.

O primeiro relato é este aqui. O desdém do professor pelas formas clássicas da liturgia perpassa todo o texto, a começar pelo título onde chama a Missa Tridentina de “algo muito estranho”. Critica as normas de vestimenta, o uso do véu, até o latim do sacerdote. Chama o rito tridentino de “pouquíssimo acolhedor”. Chega ao ponto de chamar o Santo Sacrifício celebrado segundo as rubricas de 62 de “missa”, assim entre aspas (!):

Começou a “missa”. Tudo em latim. Legal! Mas, não dava pra entender nada por falha de dicção do sacerdote.

segundo relato é inteiramente dedicado a denegrir, em público e com uma dose bastante ácida de ironia, o pároco da referida paróquia, o próprio Instituto Bom Pastor e, indiretamente, todos os fiéis que cultivam a espiritualidade tradicional. Percebam, o sujeito confessadamente não conhece nada do rito, a sua única experiência foi no último domingo e, mesmo assim, ele se julga no direito de desabonar todos os católicos do mundo que de algum modo participam da liturgia gregoriana:

O Bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas, o Bom Pastor deixa as noventa e nove ovelhas e vai em busca da que ficou para trás, o Bom Pastor carrega a ovelha no colo, o Bom Pastor não humilha alguém em público.

Confesso que não conhecia esse Instituto Bom Pastor até o acontecido no último domingo, mas a maioria das pessoas que comentaram no meu site defendendo tal Instituto demonstraram uma animosidade que me assustou.

Serão assim todos os seguidores de tal rito?

Por fim, o terceiro relato é um mero mosaico desconexo de copiar-e-colar textos sobre a Forma Extraordinária do Rito Romano. É o mais equilibrado dos três, provavelmente por ser o que contém menos texto próprio do sr. Thácio.

5. A atitude do sr. Thácio, conquanto motivada por uma causa justa, é toda de se censurar. Primeiro que ele não tem direito algum de tratar de maneira assim tão desdenhosa — debochada até — um rito católico legítimo, aprovado e autorizado pela Igreja. Segundo: não tem lógica nenhuma, nem é justo de nenhuma maneira, utilizar uma única experiência particular — realizada uma única vez na vida e em uma única igreja específica — para lançar em público a pecha da suspeição sobre todos os sacerdotes e leigos que integram o IBP (um instituto canônico regularmente erigido pela própria Santa Sé), nem muitíssimo menos sobre todos os católicos que, não pertencendo ao IBP, todavia sentem-se de algum modo ligados à Forma Extraordinária do Rito Romano (os «seguidores de tal rito», como ele se refere acusadoramente a nós). Terceiro, é assustadoramente contraditório protestar contra a exposição pública dos supostos pecados de uma fiel católica na igreja… expondo publicamente, na internet, os alegados defeitos de um sacerdote católico! Quer dizer, o padre fazer isso na igreja é inadmissível, mas o leigo fazer o mesmo na internet está tudo bem? Que loucura é essa?

c08006_8ddbc455b22e42a1ba83a8b68cf8ce77

6. Por fim, registre-se aqui o nosso duplo desagravo. Primeiro, aos católicos tradicionais, cuja imagem foi manchada pelo “tradicionalismo” de um lado e pelo “anti-tradicionalismo” do outro. Não aceitamos a pecha da arrogância, do sectarismo, da falta de acolhimento: se alguns católicos possuem algum ranço jansenista isso é lá com eles, não sendo justo extrapolar os defeitos de particulares para um grupo não-uniforme de católicos e nem muitíssimo menos para um rito legítimo da Igreja enquanto tal. E segundo, e principalmente, a Sara Winter, pessoa que por sua história de vida é digna de toda a nossa compreensão e que pela boa vontade que vem demonstrando merece as portas de todas as igrejas abertas de par em par para si. Sara, o autor dessas linhas não tem nada a ver com a igrejinha de Brasília de onde você saiu em lágrimas no domingo passado; mas, na qualidade de católico, venho aqui oferecer as minhas desculpas, a minha solidariedade e as minhas orações.