A respeito do Relatio post disceptationem do Sínodo dos Bispos nesta segunda-feira divulgado – e que, desde então, vem provocando o estardalhaço da mídia católica e laica -, é preciso dizer o quanto segue:
1. Existe a respeito dos homossexuais uma norma há muito vigente na Igreja Católica, e que parece infelizmente gozar de bem pouca eficácia nos dias atuais. Ela se encontra no Catecismo da Igreja e diz que os homossexuais «[d]evem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza»; e ainda que, para com eles, «[e]vitar-se-á (…) qualquer sinal de discriminação injusta» (CCE 2358). Tudo isso tem se tornado nos últimos anos verdadeira letra morta, obscurecido por um lado pelo mais abjeto relativismo moral e, por outro, pela tendência a se enxergar, em todo homossexual, um raivoso militante do movimento LGBT.
[A bem da verdade, aliás, o problema não se restringe aos que se sentem atraídos pela prática de atos sexuais contrários à natureza: nas nossas paróquias, a imensíssima maior parte das situações de pecado encontra ou a conivência cúmplice (disfarçada sob um dar de ombros condescendente que diz que, hoje, “o mundo é assim mesmo”) ou – até em reação a esta – o enxovalhamento puro e simples. Este é um mea culpa que nós precisamos fazer. Está cada vez mais difícil ser católico: parece haver um amplo e vasto espaço para os que estão já bastante satisfeitos consigo próprios, mas pouquíssimo lugar para os que conhecem (ou ao menos entrevêem) os próprios defeitos e desejam (ou gostariam de desejar) mudar para melhor por amor a Cristo.]
2. Para não fugir muito ao tema do post (para além do qual, apenas à guisa de citação, eu poderia falar dos divorciados recasados, dos consumidores contumazes de pornografia, dos namorados que vivem juntos, dos políticos corruptos et cetera), concentremo-nos nos homossexuais. Sério, qual a chance que um homossexual dos dias de hoje tem de levar uma vida santa em decorrência do ambiente paroquial brasileiro médio? Qual o auxílio que alguém com essas tendências recebe, de ordinário, de nossas paróquias? Quantos grupos sérios para ajudar os homossexuais a viverem a castidade à qual os chama o Catecismo existem? Eu conheço o Courage, somente. Em quantas paróquias brasileiras o Courage está presente? Eu não conheço nenhuma. E importa, sim, reconhecer que há algo de muito errado com isso. A Igreja de Cristo existe para levar a salvação às almas, e não é porque meia dúzia de gatos pingados, soi-disant representantes da “categoria” dos homossexuais, militam contra a Igreja de Cristo que Ela deve erguer as Suas muralhas de modo a deixar perecer do lado de fora aquelas pessoas que, possuindo tendências homossexuais, entendem que o que está errado e precisa ser mudado encontra-se nelas próprias, e não na Doutrina Católica.
3. O famigerado Relatio do Sínodo dos Bispos possui três parágrafos (50-52) dedicados ao acolhimento de pessoas homossexuais (Welcoming homosexual persons). Quero acreditar que o que lhes inspirou foram considerações afins às que fiz nos dois pontos acima; no entanto, o resultado foi um verdadeiro desastre. Traduzo livremente:
50. Homossexuais possuem dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã; somos capazes de acolher essas pessoas, oferecendo-lhes um espaço fraterno em nossas comunidades? Frequentemente elas desejam encontrar uma Igreja que lhes ofereça um lar acolhedor. Estão nossas comunidades capazes de o oferecer, aceitando e valorizando sua orientação sexual [sic – accepting and valuing their sexual orientation], sem comprometer a Doutrina Católica a respeito da família e do matrimônio?
51. A questão da homossexualidade leva a uma séria reflexão sobre como elaborar caminhos realistas de crescimento afetivo e maturidade humana e evangélica, os quais integrem a dimensão sexual: isso surge, assim, como um importante desafio educacional. Outrossim, a Igreja sustenta que uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser consideradas em pé de igualdade com o matrimônio entre o homem e a mulher. Além disso, não é aceitável que os pastores sejam pressionados ou que organismos internacionais tornem o recebimento de ajuda financeira dependente da introdução de regulações inspiradas na ideologia de gênero.
52. Sem negar os problemas morais ínsitos às uniões homossexuais, é preciso notar que há casos nos quais o auxílio mútuo – ao ponto do sacrifício – constitui um precioso apoio na vida dos parceiros (sic). Além disso, a Igreja presta especial atenção às crianças que vivem com casais do mesmo sexo [couples of the same sex], enfatizando que os direitos e necessidades destes pequeninos devem ser sempre priorizados.
[Os pontos acima destacados foram cotejados com a versão italiana, e quase não foram encontradas diferenças significativas: o texto na língua de Dante traz “accettando e valutando il loro orientamento sessuale”, “il mutuo sostegno fino al sacrificio costituisce un appoggio prezioso per la vita dei partners” e “coppie dello stesso sesso”. Digo “quase” porque, embora eu seja amador no italiano, ao que parece o verbo valutare não tem a conotação positiva que possui o “valorizar” português, que em italiano mais bem se diria valorizzare.]
É bem evidente que o texto pode ser catolicamente compreendido, às vezes com muita tranquilidade (é óbvio que as pessoas homossexuais possuem dons e qualidades), às vezes com menos (a única ótica sob a qual se pode “valorizar” – em aceitando essa tradução – uma orientação sexual objetivamente desordenada é a mesma segundo a qual se pode dizer “positiva” a concupiscência: é um dado da individualidade humana a partir de cuja mortificação os cristãos se santificam…). No entanto, preocupa, e muito, que os riscos da instrumentalização ideológica de um tal texto não tenham sido percebidos – ou tenham sido placidamente aceitos… – pelos seus responsáveis. Era evidente para além de qualquer evidência que o resultado da divulgação deste Relatio seria uma proliferação de manchetes do tipo «Documento do Vaticano defende mudança da Igreja em relação aos gays» mundo afora.
E assim fica difícil, tanto para os católicos que desejamos ser fiéis à Doutrina da Igreja quanto também (e talvez até principalmente) para os homossexuais que se esforçam todos os dias para vencer as suas más inclinações e levar uma vida como a a qual lhe chama o Evangelho de Jesus Cristo. Ora, para quê fugir do pecado? Para, depois, os pastores capitularem diante do lobby homossexual e dizerem (ou deixarem que os órgãos de mídia digam) que, bem, na verdade não era bem pecado e, portanto, se se quiser viver de tal ou qual maneira, bem, tudo bem? Sinceramente, isso é vergonhoso. É uma ofensa aos homossexuais sérios, aos quais este blogueiro desde já pede perdão e garante as suas pobres orações.
4. Como é bem óbvio, o documento não tem o menor peso doutrinal. Na verdade, não se trata nem de um documento stricto sensu, i.e., de um texto emanado de uma autoridade católica que tenha por destinatário uma porção do [ou todo o] povo de Deus; é, como o próprio nome diz, um relatório, uma ata de reunião, uma coletânea de assuntos tratados durante as assembléias sinodais. A própria Santa Sé julgou por bem precisá-lo, depois que uma enxurrada de protestos – dentre os quais o não menos relevante é o do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé vociferando “indigno! Vergonhoso! Completamente errado!” – expôs o descontentamento generalizado. Mesmo entre os leigos, aqui e alhures, não faltou quem celebrasse o documento por um lado e, pelo outro, deplorasse-o enfaticamente. Só dois comentários.
Um, havia sinceramente alguma dúvida de que as coisas iriam se passar dessa maneira? Não era patente que, por um lado, a mídia – ávida por humilhar a Igreja – anunciaria vitoriosa uma mudança (ou sinal de mudança) na doutrina católica e, pelo outro, os católicos protestariam enfaticamente contra esta visão dos fatos? Não era óbvio que se iria instaurar esse conflito entre os católicos e os órgãos de imprensa? A troco de quê indispôr a Igreja com a opinião pública? Por qual motivo se desejou (ou se permitiu) esse deplorável espetáculo?
Dois, como muito bem disseram uns amigos, é incrível como os liberais dentro da Igreja parecem não perceber que o objetivo do mundo é coagir a Igreja à aceitação das imoralidades contemporâneas para, depois, relegarem-Na à irrelevância – como fizeram com a igreja anglicana. E é incrível também a desonestidade dos revolucionários que, no afã de fazer avançar a sua agenda impossível, pretendem que um documento “ata-de-condomínio” se sobreponha a uma miríade de outros documentos indiscutivelmente doutrinais que apontam a Doutrina da Igreja mil-vezes repetida sobre o homossexualismo…
5. Resumo da ópera. Segue o Sinodo Straordinario Sulla Famiglia, até o próximo domingo (19); e as boas conseqüências que dele poderiam advir – e as questões sérias do mundo moderno que lá poderiam ser tratadas – ficam completamente soterradas por essa estirpe de polêmica estéril e daninha, tão sobejamente anunciada e, no entanto, em relação a qual as autoridades da Igreja parecem agir com a mais angustiante leniência. É desalentador. No meio das trevas e da tempestade, contudo, no meio da fumaça de Satanás que irrita os olhos e conduz os homens a despencarem no abismo do erro e da mentira, importa aferrar-se com segurança e determinação à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, que permanece firme e inabalável – diz o lema cartuxo – enquanto o mundo dá voltas. Não passarão as palavras d’Aquele por Quem céus e terras foram criados. Deus vê…! Do Alto há-de vir o nosso socorro. Do Céu há-de orvalhar a Justiça de Deus; e, sobre os justos, Ele há-de fazê-la chover em profusão.