Depois do Natal

A cidade está vazia e deserta porque é Natal. Passados mais de dois mil anos, a celebração do Nascimento de Cristo ainda impõe marcas profundas mesmo às feições de nossas sociedades dessacralizadas. O burburinho dos dias anteriores — os dias mais angustiantes do ano — arrefece, põe-se de lado e é substituído pelo barulho do interior dos lares, que contrasta com o deserto do exterior. O Natal é festa íntima, familiar, que se comemora com os consanguíneos (e, também, com os amigos mais próximos) em torno a uma mesa comum. A tradição se repete. Mas por quê?

Não é por acaso que o Natal é colocado no início do ano litúrgico; trata-se de acontecimento inaugural e não escatológico. É a ária que abre o espetáculo e não a apoteose. E, inserido no ritmo cíclico do temporal da Liturgia, repetindo-se ano após ano, assume os ares de um perpétuo recomeço, possibilitando a periódica experiência daquela excitação que precede as grandes aventuras.

Por que, afinal de contas, o que é o Natal? É o nascimento de Cristo. E a história nos dá conta de que, quando Cristo nasceu, tudo mudou e, ao mesmo tempo, não mudou nada.

Os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador; e, nos nossos presépios, nós até hoje representamos aqueles homens do campo que deixaram os seus rebanhos e saíram, em uma noite escura, em busca de um Recém-Nascido envolto em faixas. Encontraram o Menino e O adoraram; mas, embora a Bíblia não nos fale, é certo que, na noite seguinte, e ao longo de todas as noites seguintes, os mesmos pastores precisaram voltar aos mesmos campos para guardar os mesmos rebanhos. E os anjos não tornaram a aparecer.

Foi uma Noite única; mas o fulgor daquela noite, é certo, foi capaz de iluminar a vida inteira dos que A vivenciaram. É provável que, naqueles campos, anos depois, os velhos pastores conversassem ainda sobre aquela Noite, passado já tanto tempo!, em que os Céus se iluminaram para o nascimento de um Menino. É provável que então o gloria in excelsis não ressoasse mais por aquelas paragens; mas aquela pax prometida aos homens de boa vontade, esta é certo que ainda perdurava naquela terra, e os pastores a podiam ainda experimentar mesmo a tantos anos de distância.

Hoje a distância é ainda maior: mas a força do Natal atravessa os séculos e é sempre nova — como o Evangelho que ele inaugura. Ontem nós mais uma vez fomos à Missa; mais uma vez ouvimos o canto secular das Kalendas, mais uma vez escutamos o anúncio da grande alegria do nascimento do Salvador, que é Cristo Senhor. Mais uma vez nós paramos em frente ao Presépio, enfim completo, com o Deus-Menino envolto em faixas e repousando, sereno, sobre a manjedoura. Olhamos-Lhe como se O encontrássemos pela primeira vez na vida! E pedimos-Lhe paz para nós mesmos, para nossas famílias, para o mundo, para a Igreja: aquela paz anunciada pelos anjos no Natal primevo. E, ao mesmo tempo, pedimos a graça de trabalhar a nossa vontade, a fim de torná-la boa, para que possamos ser — um dia — contados entre os homens aos quais aquela paz foi prometida. E voltamos para casa.

O que importa perceber aqui é o seguinte: o Natal não tem o arroubo de um fim de mundo, de uma mudança radical de vida, da chegada a uma terra prometida onde tudo passa a ser diferente. Na verdade, o Natal mantém as coisas exatamente como estavam antes e é esta a sua força avassaladora. Na noite anterior, como na noite seguinte, os pastores estavam nos campos guardando os rebanhos. Os sábios do Oriente, que antes do Natal estavam viajando rumo a Belém, após o Natal estavam mais uma vez viajando, de volta para casa. Mesmo a Sagrada Família, que na véspera estava, de porta em porta, procurando abrigo para a noite, longe de casa, após o nascimento de Cristo estava também longe de casa, em terra estrangeira, no Egito, fugindo à sanha assassina de Herodes. O Natal não encerra ciclos. Ele irrompe em meio aos ciclos da vida, deixando-os intactos após si.

Intactos, mas não intocados. A vida segue após a ceia do Natal: as mesmas lutas, os mesmos problemas, os mesmos defeitos, tudo, tudo. Os mesmos rebanhos a pastorear por campos escuros. Mas fica algo de diferente justamente porque passou o Natal: mais uma vez nós nos encontramos com pessoas que nos são caras, mais uma vez nós nos permitimos esquecer os trabalhos e as dificuldades da vida — por uma noite que seja! — para simplesmente celebrar, mais uma vez nós trocamos votos de felicidades e expressamos os nossos sinceros desejos de que o futuro — o Ano-Novo que está às portas — seja melhor. E, por conta disso, os próximos dias serão iguais aos últimos, mas serão diferentes. Graças ao Natal. Graças ao Menino que hoje nos foi dado.

São Pedro vive em seus vigários

Ontem, 29 de junho, foi a festa de S. Pedro e S. Paulo – por óbvia extensão, a festa do Papa, vigário de Cristo e sucessor de S. Pedro. No Brasil, nós antecipamos a solenidade: domingo último, as nossas igrejas se revestiram de vermelho para celebrar a memória do Príncipe dos Apóstolos. Vermelho – talvez o detalhe se nos passe despercebido – que é a cor do martírio. Celebramos o Papa; e o martírio do Papa.

Aquele quo vadis, Domine? não é apenas uma expressão latina relativamente bem conhecida: tem, em si mesma, toda uma história. Em resumo: explode a perseguição romana contra os cristãos e S. Pedro, bispo de Roma, com medo de ser martirizado, foge da cidade. No caminho tem uma visão: é Cristo que cruza com ele, caminhando no sentido oposto, de volta a Roma, carregando a cruz. “Onde vais, Senhor?” – quo vadis, Domine? -, pergunta o Príncipe dos Apóstolos. “Vou a Roma, ser crucificado no teu lugar”, responde o Salvador. Pedro cai em si. Tomado de coragem, volta à cidade. É martirizado, como temera e desejava. Recebe a palma do martírio. E lega à Igreja a festa de ontem.

A vida se renova e, em certo sentido, a história se repete: a vida dos sucessores de S. Pedro é a vida do próprio S. Pedro. É a fraqueza humana unidade à força do Alto, é a escolha terrível e quotidiana entre as coisas da terra e as coisas do Céu – entre os pensamentos dos homens e os de Deus -, é, em última instância, o martírio. Pedro sofre!, e não se pense que ele não é crucificado.

Cumpre ao Papa Francisco – cumpre a todos os Papas – seguir os passos do Príncipe dos Apóstolos: S. Pedro vive em seus vigários. E a história da Igreja nascente não pode ser resumida ao glorioso ecce Petrus Pontifex Maximus; quem visse Pedro apenas em seu esplendor não teria uma visão completa daquele sobre o qual Cristo prometeu edificar a Sua Igreja. Ser Papa – é o que quero dizer – não significa apenas ser o Vigário de Cristo gloriosamente reinante. Ser Papa, sempre, significa antes de mais nada ser «o martirizado».

Ontem nós celebramos o martírio de S. Pedro – e simultaneamente rezamos pelo Papa. Há uma inegável sabedoria eclesial nesta solenidade litúrgica, que muitas vezes pode nos escapar. Orgulhamo-nos de cantar, ufanos, o «salve, Santo Padre!, vivas tanto ou mais que Pedro!»; mas por vezes nos esquecemos – e, disso, o Papa Francisco tem insistido em nos lembrar praticamente todos os dias – de rezar por aquele que enverga a batina branca do Sumo Pontificado.

Porque – é o que a meditação serena da História Sagrada nos mostra – Satanás quer joeirar Pedro como trigo; e Pedro precisa, sempre, de quem rogue por ele, a fim de que a sua Fé não desfaleça. Nas páginas dos Evangelhos e da Sagrada Tradição foi Cristo quem tomou para Si este papel – no Cenáculo como na Via Appia. Christianus alter Christus; o cristão – todo cristão – é um outro Cristo e, por isso, é aos cristãos que hoje cabe – é a cada um de nós portanto – rezar por S. Pedro, rezar pelo Papa.

Afinal de contas, ele é martirizado…! S. Pedro sofre em seus sucessores, e importa que ele sofra de modo a completar em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo em favor da Igreja – como ensina o Apóstolo, também ontem celebrado. Porque, no fundo, a escolha não é entre o sofrimento e a tranquilidade: S. Pedro sofria ao fugir de Roma e sofreu no madeiro da Cruz. A escolha cristã – do Papa e de cada um de nós – é entre o sofrimento inútil e o sofrimento agradável a Deus. E isto não é fácil. Importa, portanto, que rezemos com afinco uns pelos outros. Principalmente pelos que mais precisam e aos quais estamos mais obrigados.

É a solenidade de S. Pedro, o Príncipe dos Apóstolos: que ele olhe pelos seus sucessores! E nós, oremus pro pontifice nostro Francisco, sempre. Ele precisa. Ele o pede. Nós devemos.

A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem

Pediram-me um comentário a respeito da notícia de que o Papa Francisco estaria “sinalizando” a nomeação de mulheres para cargos importantes na cúria. Vejam, o que realmente importa nesta pergunta – assim interpreto eu os sentimentos dos que se sentem angustiados com este tipo de notícias – não é o que ela denota objetivamente. A rigor e analisada em si mesma, essa notícia (1) não possui substância alguma e, (2) ainda que possuísse, seria algo de extremamente banal e corriqueiro.

Por que digo que a notícia não possui substância? Porque ela faz todo um escarcéu em cima de uma frase solta numa entrevista à qual provavelmente nem o próprio Papa Francisco deu a importância que os microscópios da mídia artificialmente lhe conferem. Existe uma mulher concreta cujo nome está sendo cogitado pelo Papa? Não. Existe um cargo concreto que o Papa pretende conceder a uma mulher? Não. Existe um prazo definido dentro do qual passará a haver mulheres – ou pelo menos uma mulher – nomeadas para os dicastérios romanos? Não. Existe ao menos a certeza de que o Papa vai realmente fazer isso? Também não. Não há absolutamente nada, portanto, exceto o Papa dizendo em uma conversa privada com outro padre que “deve” nomear uma mulher «porque [elas] são mais inteligentes que os homens». Isso, sim, é literal: por que não apareceu ninguém, então, para criticar a novidade doutrinária de que as mulheres possuem uma inteligência metafisicamente superior à dos homens?

“Porque isso é besteira”, alguém haverá de dizer, “mas o empoderamento das mulheres em uma instituição tradicionalmente conduzida por homens tem um importante valor simbólico para a luta dos movimentos feministas”. E este é o ponto relevante aqui.

Os que se preocupam com essa notícia (e outras análogas) estão, na verdade, preocupados não com ela, mas sim com o “valor simbólico” do (possível) gesto noticiado. Mais ainda: estão, na verdade, preocupados com a instrumentalização, por parte de grupos revolucionários tradicionalmente avessos à Igreja, do (possível) gesto, conferindo-lhe um valor simbólico que ele absolutamente não possui e utilizando-o para justificar um sem-número de barbaridades (no caso em pauta, ordenação feminina e abolição das diferenças entre os sexos, p.ex.) que ele absolutamente não justifica. O problema, portanto, não está com o Papa, o problema não está nas mulheres trabalhando ou deixando de trabalhar nos órgãos da Santa Sé: o problema está naquelas pessoas que não estão nem um pouco preocupadas com a Doutrina Católica, mas são ávidas em pinçar palavras, atitudes e gestos do Romano Pontífice para dar (aparência de) força à sua concepção de mundo particular. O problema, em suma, não é o Papa nomear mulheres para cargos importantes na cúria. O problema é as pessoas usarem indevidamente uma coisa banal e corriqueira dessas em benefício de sua própria agenda ideológica.

E por que digo que é uma coisa banal e corriqueira? Por diversas razões. Primeiro, porque o trabalho administrativo nos órgãos da cúria não tem nada a ver, nem remotamente, com nada da doutrina (ou mesmo da disciplina) da Igreja Católica. Segundo, porque as mulheres ocupam desde sempre um lugar de especialíssima proeminência dentro do universo doutrinário católico – basta pensar na Santíssima Virgem Maria, referência de todo fiel, do menor dos leigos aos Papas. Terceiro, porque historicamente já foram concedidas a mulheres posições de poder totalmente inimagináveis mesmo pelo mundo laico contemporâneo. Quarto, porque já existem mulheres trabalhando nos dicastérios romanos, é óbvio, sempre devem ter existido: se elas não ocupam os cargos mais altos – de prefeitos, secretários etc. – é por razões de ordem sacramental e não sexista: a reserva é aos sacerdotes em preferência aos leigos, e não aos homens em preferência às mulheres. Quinto, porque isso é uma mera convenção em si indiferente que poderia ser de um sem-número de outras maneiras.

O problema, em suma, é a tentativa de enquadrar a Igreja – ou, melhor dizendo, aspectos desconexos da Igreja – em uma clave que A deforma e termina por A retratar de uma maneira totalmente infiel à realidade. Há uma quantidade potencialmente infinita desse expediente pouco criterioso: se um Papa não permite a ordenação de mulheres então é um misógino, se cogita dar algumas responsabilidades a uma mulher então é porque é um feminista revolucionário, se é contra a camisinha favorece a AIDS, se diz que o uso de preservativos por parte de um prostituto é o menor dos problemas morais nesta situação envolvidos então é um libertino querendo entronizar a revolução sexual na Igreja, se celebra versus populum é um modernista, se celebra versus Deum é um tridentino retrógrado, se condena o comunismo é um porco capitalista, se protesta contra as injustiças sociais é porque é um agente da KGB infiltrado.

Isso acontece, isso é feito o tempo inteiro pelos inimigos da Igreja e pior: isso tem dado certo. Há hoje muitas e muitas pessoas que odeiam a Igreja por Ela ser misógina, por ser esquerdista, por ser antiquada em excesso, por ser modernosa demais, por ser muito rígida, por ser muito lassa, por oprimir os ricos, por desprezar os pobres, por tudo: e só uma minoria ínfima odeia a Igreja por Ela ser o que Ela de fato é. Fulton Sheen dixit. E ele estava certíssimo. As pessoas via de regra não são contra a Igreja Católica. São contra a imagem desfigurada que elas têm da Igreja Católica.

O texto já vai longo, e arremato: a solução desse problema não passa por se abster de fazer as coisas em atenção às leituras distorcidas que pessoas ignorantes ou mal-intencionadas farão dessas coisas feitas. Isso é um erro monumental e absolutamente injustificável. Ninguém pode deixar de venerar a Santíssima Virgem para não ser acusado de idolatria, ninguém pode deixar de celebrar a Santa Missa com decoro e diligência para evitar ser olhado como a um fariseu. E, pela mesmíssima razão, para não ser confundido com um TL não é legítimo a ninguém esquecer que negar ao trabalhador o salário justo é um pecado que clama aos Céus vingança. Pela mesmíssima razão, ninguém pode determinar o que vai fazer ou deixar de fazer em função das reações do movimento feminista a esta ação ou omissão.

Se a Igreja tem que preservar a Sua independência, Ela a precisa preservar também (e talvez até principalmente) contra esses reducionismos maniqueístas tão em moda hoje em dia. A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem, isso é bastante evidente. Mas não é tão evidente assim que há formas mais sutis de pautar o comportamento de outrem, e também contra estas é preciso se precaver. A Igreja não pode ser coagida pelos “católicos” de esquerda a sancionar as teses já condenadas da teologia da libertação, é óbvio. Mas Ela também não pode negar que a pobreza evangélica seja um valor – ou que existam deveres de caridade para com os pobres que são mandatórios para todo cristão, por exemplo. É preciso combater o lobby modernista que é feito diuturnamente contra Igreja. Mas é igualmente preciso perceber que evitar fazer coisas em si legítimas para não ser visto como modernista é também uma forma de se ser influenciado. E a liberdade de anunciar o Evangelho não pode conhecer esses limites. Os inimigos da Igreja não podem ditar o que Ela pode fazer, é claro. Mas também não podem determinar – nem mesmo indiretamente – o que Ela não deve fazer.

Papa Francisco: “Confessar a Fé! Toda, não uma parte!”

A fé é confessar Deus, mas o Deus que se nos revelou, desde o tempo dos nossos pais até hoje; o Deus da história. E isto é aquilo que nós todos os dias recitamos no Credo. E uma coisa é recitar o Credo com o coração, outra é fazê-lo como os papagaios, não é? Creio, creio em Deus, creio em Jesus Cristo, creio… Eu creio naquilo que digo? Esta profissão de fé é verdadeira ou digo-a de memória, porque se tem que dizer? Ou creio pela metade? Confessar a fé! Toda, não uma parte! Toda! E esta fé, guarda-la toda, como chegou até nós, pelo caminho da tradição: toda a fé!

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
10 de janeiro de 2014

Há motivos para esperança

Publico o gráfico e o comentário abaixo conforme os encontrei no “Lavras Resiste!”. Concordo com o autor do texto: há motivos para esperança. Há três anos eu publiquei aqui este texto, com dados americanos que vão harmoniosamente ao encontro destes, britânicos, que com alegria trago hoje. Os números parecem-me claros: é da Tradição que surgem as vocações. Há esperança.

* * *

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Há motivos para esperança. À direita no gráfico, vê-se o número crescente de ordenações desde 2008. Suponho que esse seja o efeito da Tradição, revalorizada por S.S. Bento XVI. Para mim, o gráfico é claro. Fora da Tradição não há salvação.

São Jorge, rogai por nós!

No meu onomástico, não posso deixar de prestar uma ligeira homenagem a São Jorge; assim, remeto os meus leitores a este texto d’O Catequista hoje publicado, que contém uma pequena biografia do santo (incluindo a parte lendária do dragão).

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Se a memória não me trai, os detalhes da vida do santo da Capadócia só se encontram na Legenda Aurea mesmo, havendo apenas algumas linhas na “História Eclesiástica” de Eusébio que se referem ao militar que foi martirizado sob o Imperador Diocleciano. A escassez de fontes históricas primárias é contudo amplamente suplantada pela multissecular devoção a São Jorge, pela qual as graças alcançadas ao longo da história da Igreja evidentemente exigem um santo [originalmente] de carne e osso a interceder junto a Deus por aqueles que se lhe recomendam.

Que o Glorioso São Jorge possa rogar por nós e nos proteger nos combates desta vida!

Tradição, tradições e conservadorismo – por Carlos Ramalhete

[Excelente intervenção do Carlos Ramalhete em um papo privado sobre Tradição Católica, tradições cristãs e conservadorismo. Publico na íntegra a resposta dele, que delineia bem o papel que nos compete – a todos nós! – diante do mundo moderno, na situação em que nós o encontramos.]

O fato de haver uma diferença entre a Tradição – que é fundamentalmente doutrinal – e tradições – aplicações provadas pelo tempo desta Tradição ao mundo, dela dependentes e a ela apontando – não faz com que nem se justifique um minimalismo doutrinal que as tornaria irrelevantes nem, muito menos, com que se possa acusar todo conservadorismo de confusão entre aquela e estas.

Num momento como este em que vivemos, em que os poderosos tentam criar uma sociedade nova a golpes de leis e novelas, o conservadorismo nada mais é que o reconhecimento de que “qualquer evolução dos costumes e qualquer gênero de vida devem ser sempre mantidos dentro dos limites impostos pelos princípios imutáveis fundados nos elementos constitutivos e nas relações essenciais de cada pessoa humana, elementos e relações que transcendem as contingências históricas” (Dz-H 4580; é Paulo VI, nada de rad-tradismo…). A palavra chave é “mantidos”, que poderia ser traduzida também como “conservados”. Conservadorismo é isso. Como há, sim, uma enorme riqueza cultural de que somos, ou deveríamos ser, herdeiros, espelhando e expressando de várias formas o possível e o impossível nesta conservação de limites, preservá-la é sim dever nosso.

Como filhos fiéis da Igreja, o nosso dever é procurar *conservar*, sim, o que resta da civilização cristã, até para que no futuro mais ou menos próximo possa se erigir uma *outra* civilização cristã. Não se trata, como é evidente e eu não me canso de repetir (quer dizer, canso, sim: confesso que torra a paciência ter que dizer sempre a mesma coisa…), de voltar a qualquer passado tido como utópico, mas de procurar manter a sociedade “dentro dos limites impostos pelos princípios imutáveis”.

Isso quer dizer, na prática, que, como já ocorreu 1600 anos atrás, é função da Igreja (e nós somos Igreja, assim como o clero e os seminaristas de cuja formação se está falando) *conservar* o imenso tesouro de sabedoria humana, já depurado pelo confronto com a Revelação, que compõe o currículo de humanidades clássicas que eu mencionei ser importante. Quer dizer *conservar* o valor da vida humana, o valor da mulher (cada vez mais reduzida a ou um pseudo-homem ou a uma máquina de prazer sexual), o valor da hierarquia, o valor do respeito à sabedoria dos idosos, etc. E conservar Cícero, Dante, Ortega. E, por que não, mesmo que como exemplo negativo, Rawls, Marx ou Rand?

Isso não quer dizer que seja um herege quem não aprecia o valor de Dante ou de Cícero. Quer dizer apenas que é um idiota. E já há idiotas o bastante nas telas de tevê, para que se os queira também nos presbitérios.

No meu apostolado, eu não chego ao ponto de assistir TV, embora até leia sobre o que está passando nela; falta-me paciência. No meu trato com catecúmenos e com o público em geral, procuro apresentar como novidade, em geral apoiando-me unicamente na razão, as obviedades que só o são por terem já chegado a esta situação pela sua repetição ao longo dos séculos; é sabedoria humana, sim, mas é sabedoria, e sabedoria burilada pela Igreja ao longo dos séculos. E ela tem que ser, sim, conservada, ou estaremos como o muçulmano que manda queimar a biblioteca de Alexandria por que ou repete o Corão é assim desnecessária, ou o nega e é assim blasfema.

Cada geração de jovens pode aprender de novo, e precisa aprender de novo, descobrir de novo aquilo que é sua herança. Cada uma. Ano passado um aluninho de filosofia de seus 15 anos de idade veio, sério como só um rapaz desta idade pode ser, me dizer que resolvera tornar-se um estóico. Ótimo. Melhor estóico que fã do BBB ou fanqueiro. Isso quer dizer que o contato com o estoicismo é necessário para sua salvação? Não, mas pode perfeitamente bem ser instrumental. A chance de o ser é muito maior que a do contato com Tati Quebra-Barraco. Ou, pior ainda, de achar que “descobriu” alguma coisa ao abandonar-se aos mais baixos instintos, como sói ocorrer com quem não percebe que não é o primeiro ser humano a sentir atração sexual. O estoicismo, tal como nos chegou após depurado pela Igreja ao longo dos séculos – nas palavras de Padre Antônio Vieira, “um estóico é como um cristão de antes de Cristo” – é uma semente do Verbo, algo que abre para a graça.

Já temos problemas demais com idiotas que, por falta desta mesma cultura clássica que estou defendendo, confundem pudor com a moda de 1950. Não precisamos de uma reação igualmente inane, que se arrepia ao ouvir falar de conservadorismo por achar que há perigo de confusão entre Tradição e tradições, como se tanto estas quanto aquela não fossem, hoje, animais em risco de extinção.

Alegria e Esperança [2006]

[Publicação original: 28 de março de 2006]

Alegria e Esperança

Não é novidade para ninguém que me conheça, um mínimo que seja, o meu interesse pela Liturgia da Igreja e a minha predileção pelas “coisas antigas”, pelo Rito do qual participaram os santos através de séculos de catolicismo, pelo Santo Sacrifício de Nosso Senhor celebrado segundo as fórmulas anteriores à Reforma Litúrgica do século XX.

Não pretendo, aqui, fundamentar a minha opinião sobre a Reforma, nem explicar detalhadamente ambos os ritos e a diferença entre ambos, nem nada disso. Hoje, quero apenas aproveitar o Gaudete et Laetare do domingo último para expressar a minha felicidade e as minhas mais vivas esperanças em relação às mudanças que se anunciam no Horizonte da História, e que, lá longe, em Roma, já podem ser visualizadas.

Os órgãos de imprensa estão anunciando, abundantemente, esses dias, que o Papa está interessado no problema dos lefebvristas e do Missal de S. Pio V. Para quem não está por dentro da situação, uma rápida pincelada no quadro geral:

Lefebvristas são os membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por D. Marcel Lefèbvre. São padres que não aceitaram o Concílio Vaticano II e o Missal promulgado por Paulo VI, tendo permanecido na celebração da Missa Antigo, no rito de S. Pio V. Hoje, encontram-se oficialmente em cisma [p.s.: porque Dom Lefèbvre sagrou bispos sem mandato pontifício, incorrendo – junto com os bispos sagrados – em excomunhão latae sententiae], e em negociações com a Santa Sé para que possam voltar à comunhão da Igreja. Cabem muitas considerações aqui, mas não as vou fazer por hoje.

O Missal de S. Pio V é o missal que contém o rito da missa celebrado até cerca de quarenta anos atrás, antes da Reforma Litúrgica. Hoje em dia, só pode ser celebrado sob licença especial do Bispo local. Também aqui cabem muitas considerações, mas, como disse no início, não as vou fazer.

Pois muito bem: pelas notícias que me chegam, parece-me que Sua Santidade Bento XVI estaria pensando em um acordo de reconciliação com os padres da Fraternidade, e em uma liberação universal do Missal de S. Pio V. Se isso vier realmente a acontecer, teremos dois efeitos maravilhosos:

1- Todos os seminários da Fraternidade estarão a serviço de Roma. E (apesar de algumas questões sobre as quais não vale a pena entrar em detalhes agora) todos dizem que seus seminários são excelentes.

2- A Missa de São Pio V poderá ser celebrada livremente, sem a necessidade da licença do Bispo Local que, hoje em dia, é o maior entrave à popularização desse rito.

Esses efeitos, a meu ver, são maravilhosos porque:

1) A presença de bons seminários seria uma valorosa ajuda para elevar o péssimo nível dos sacerdotes que (com honrosas exceções) (des)orientam os católicos, nesses nossos dias difíceis.

2) A presença regular de missas celebradas segundo o rito antigo seria uma valorosa ajuda para resgatar o senso de sagrado que (novamente, com honrosas exceções) não existe nos católicos atuais.

As notícias são animadoras. O Pastoralis[1] noticia:

O Cardeal Francis Arinze, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, abordou, à tarde o tema da reforma litúrgica pós-conciliar e a utilização do Missal de São Pio V. Sobre este assunto se destacou o interesse do Pontífice em escutar o parecer dos cardeais sobre se o Missal, vigente até 1962, deveria receber um indulto universal; quer dizer, se poderá ser utilizado livremente na Igreja, sem necessidade de uma aprovação explícita do Bispo local, como atualmente requerem as normas.

O ZENIT[2] nos diz que, numa reunião na Quinta Feira última para discutir os grandes desafios que a Igreja enfrenta atualmente, foram colocados três temas de particular importância: a Igreja e o Islã, a questão dos bispos eméritos, e as negociações com a Fraternidade São Pio X.

De minha parte, fico feliz que as coisas estejam tomando este rumo. Ano passado, chateado com a nulidade dos meus esforços para que a Liturgia da Igreja fosse adequadamente celebrada na paróquia que frequento, escrevi (5 de agosto de 2005[3]), em tom de desabafo:

Estou cansado de missinhas animadazinhas, estou cansado de padres que parecem muito mais organizadores de encontros sociais que Sacerdotes do Deus Altíssimo, estou cansado de ‘fiéis’ que vão à missa para ‘viver o amor de Cristo’ e não para participar do Sacrifício do Filho de Deus! Será que sou só eu? Será que somente eu sinto vontade de poder assistir duas missas iguais, independente de quem seja o celebrante? Será que sou só eu que tenho dificuldade em enxergar, na Igreja, o Cristo Vítima e Sacerdote por detrás dos cantos protestantes no momento da consagração?

E terminei, em súplica, com o salmista:

“Voltai, ó Deus dos exércitos; olhai do alto céu, vede e vinde visitar a vinha.

Protegei este cepo por vós plantado, este rebento que vossa mão cuidou.

Aqueles que a queimaram e cortaram pereçam em vossa presença ameaçadora.

Estendei a mão sobre o homem que escolhestes, sobre o homem que haveis fortificado.E não mais de vós nos apartaremos; conservai-nos a vida e então vos louvaremos.

Restaurai-nos, Senhor, ó Deus dos exércitos; mostrai-nos serena a vossa face e seremos salvos.”

(Sl 79, 15-20)

Agora, vários meses depois, alegro-me sobremaneira em ver a minha prece – na época tão distante, e tão improvável! – ganhar traços de realização. Louvado seja Deus! E que rezemos, incessantemente, confiantemente, para que o Espírito Santo produza a autêntica renovação da Sua Igreja, para a maior glória de Deus e salvação das almas.

Referências:

Inimigos imaginários

O Fratres in Unum publicou os extensos comentários de Dom Fernando Rifan sobre o levantamento das excomunhões dos bispos da FSSPX. São dezoito páginas, que falam sobre assuntos os mais diversos, desde as críticas da Fraternidade quando da criação da Administração Apostólica, passando pela excomunhão de Dom Mayer, até – mais importante – as “QUESTÕES DOGMÁTICAS E ECLESIOLÓGICAS QUE O CARDEAL RICARD DISSE QUE PRECISAM SER RESOLVIDAS PARA TERMINAR O CISMA”.

Ninguém nega a existência de questões teológicas seriíssimas a serem discutidas – e com a máxima urgência – dentro da Igreja; ninguém nega que a Fé Católica é, infelizmente, muitíssimo pouco conhecida neste mundo que tem tanta necessidade do Salvador; ninguém nega que, dolorosamente, contribuem para estas estatísticas não poucos “católicos” de péssima formação. Estou particularmente convencido, no entanto, de que todas essas coisas precisam ser resolvidas do jeito certo, sem “desperdiçar munição” com questões de somenos importância e sem inventar inimigos para engrossar as já enormes fileiras dos inimigos reais contra os quais é mister combater.

Vejo muito isso quando me deparo com alguns comentários mais exaltados de certos católicos que – não tenho dúvidas! – sofrem com a situação atual da Igreja e desejam sinceramente que Ela seja exaltada. De ontem para hoje recebi um email dizendo que Dom Rifan “debandou para o lado modernista de vez”, e pensei cá com os meus botões o que raios poderia significar isso. Talvez fosse uma referência aos comentários que o Fratres publicou… mas, de qualquer modo, incomoda-me tremendamente esta visão grosseira sobre os fatos, segundo a qual são “ilicitilizadas” quaisquer posições que destoem, um mínimo que seja, da cartilha de um certo “tradicionalismo” – as aspas são aqui colocadas pelos motivos já por mim explicados – que pretende ser ele próprio a Coluna e Sustentáculo da Verdade, prescindindo da Igreja fundada por Cristo.

Não vejo necessidade alguma de que Campos e os padres da FSSPX comecem a travar uma guerra agora. Há coisas mais importantes a serem feitas. No entanto, para que tal embate improfícuo seja evitado, é necessário que alguns católicos parem de considerar posições completamente lícitas como se fossem “traições da Fé”. Em particular, remeto à carta do então cardeal Ratzinger a Mons. Lefebvre, de 23 de dezembro de 1982, reproduzida por Dom Fernando Rifan, que pede a assinatura do bispo francês para duas proposições muito simples:

1. Eu, Marcel Lefebvre, declaro minha adesão com religiosa submissão de espírito à integridade da doutrina do Concílio Vaticano II, ou seja, doutrina « enquanto se entende a luz da santa Tradição e enquanto se refere ao perene magistério da propria Igreja (cf. Joao Paulo II, Alocução ao Sacro Colégio, 5 nov. 1979, AAS LXXI (1979/15) p. 1452). Esta religiosa submissão leva em conta a qualificação teológica de cada documento, como foi estatuída pelo próprio Concílio (Notificação dada na 123a Congr. Geral, 16 nov. 1964).

2. Eu, Marcel Lefebvre, reconheço que o Missal Romano, estabelecido pelo Sumo Pontífice Paulo VI para a Igreja universal, foi promulgado pela legítima suma autoridade da Santa Sé, a quem compete na Igreja o direito da legislação litúrgica, e por isso mesmo e em si mesmo legítimo e católico. Por isso, não neguei nem negarei que as missas fielmente celebradas segundo o novo rito sejam válidas e também de nenhum modo desejaria insinuar que elas sejam heréticas ou blasfemas nem pretendo afirmar que devam ser evitadas pelos católicos.

Sinceramente, não consigo ver como tais proposições possam ser “intrinsecamente más”, para que não pudessem de modo algum ser aceitas por católicos sob pena de constituírem uma apostasia ou uma capitulação ao modernismo (muitíssimo ao contrário, não consigo ver nenhum motivo razoável para que elas não fossem, em substância, aceitas). Eu próprio subscreveria (e subscrevo) a declaração acima; e, para que se possa trabalhar eficazmente na solução da crise da Igreja, é de fundamental importância que os católicos não considerem um “modernista” ou um “apóstata” ou um “traidor da Fé” quem fizesse semelhante declaração.

Erro de valoração

Eu tenho apreço pelos católicos que “defendem a Tradição”, mesmo quando estou sinceramente convencido de que eles estão fazendo grandes besteiras. Não dá para “deixar passar” todas as coisas que eles fazem, apontando os seus canhões contra as coisas santas que eles tomam pelas causadoras dos problemas que a Igreja hoje atravessa; sempre me bate uma profunda angústia quando eu imagino todo o bem que estas pessoas poderiam fazer se militassem ao lado da Igreja mas, desgraçadamente, hoje se lançam em combate contra Ela, numa luta inglória fadada certamente ao fracasso, porque a Igreja não pode ser destruída, e será infalível e miseravelmente reduzida a pó qualquer obra humana que tencione colocar-se contra Ela. Nestes “defensores da Tradição”, o que me incomoda tremendamente é aquilo que eles poderiam ser, mas não o são…

Foi neste sentido que fiquei verdadeiramente feliz ao ser tornado público o decreto que levantava as excomunhões dos quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. O momento era de alegria, posto que pessoas zelosas pela Sã Doutrina, sedentas pela maior glória de Deus e pela salvação das almas, de uma envergadura intelectual espantosa, poderiam, enfim, militar ao lado da Igreja contra os Seus inimigos que, hoje em dia, são tão numerosos. É forçoso reconhecer que há menos divergências entre um “rad-trad” e um católico do que entre um católico verdadeiro e um “católico self-service” dos que parecem ter virado o padrão de catolicismo nos dias atuais. Nada melhor do que se esforçar sinceramente para sanar estas divergências e congregar, em torno do Papa, aquelas pessoas que estão sinceramente dispostas a dar a vida pelo Sucessor de Pedro.

No entanto, como eu comentei sábado último e como era evidente, as feridas abertas durante os anos de separação não podem ser simplesmente cicatrizadas por meio de documentos vindos de Roma. O caminho, infelizmente, parece ainda ser longo e cheio de espinhos; para trilhá-lo como convém, é fundamental que nos concentremos naquilo que é realmente importante, sem perder tempo com questões secundárias e sem alfinetadas inúteis que não contribuem para a exaltação da Santa Madre Igreja e para a solução da crise que, hoje, atormenta a Esposa de Nosso Senhor.

Refiro-me, em particular, à questão da excomunhão de Dom Lefebvre e Dom Mayer. É sinceramente frustrante ver as pessoas ligadas à FSSPX darem tamanha importância a isto, como se fosse conditio sine quae non para que qualquer outra coisa venha a ser feita! Não têm a mesma ordem de importância a Lex Orandi, a Lex Credendi e os atos jurídicos do Santo Padre; a questão da santidade da Missa Gregoriana e da imutabilidade da Fé Católica não estão no mesmo patamar da questão da existência ou não de uma excomunhão com a qual foram fulminados dois bispos há duas décadas. E isto, a julgar por algumas colocações que são feitas, não parece, absolutamente, estar bem claro na cabeça dos “defensores da Tradição”.

É absolutamente necessário separar o que é essencial do que é secundário. É essencial afirmar com muita clareza que a Fé Católica e Apostólica não pode ter mudado ao longo dos últimos quarenta anos; é essencial afirmar que o rito com o qual a Santa Igreja ofereceu à Trindade Santa, ao longo dos séculos, o Sacrifício do Corpo e Sangue do Senhor, não pode ser senão santo, e reclamar o seu lugar na Igreja dos nossos dias. No entanto, não é essencial fazer uma “justiça” (bem discutível) à memória de dois homens simplesmente porque, no passado – entre outras coisas bem discutíveis -, ambos lutaram por aquilo que reconhecemos ser essencial.

A Fé é essencial na Igreja, a Liturgia é essencial na Igreja. Mas pessoas particulares não são. A Igreja precisa sem dúvidas manter a Sua identidade, mas a Igreja não depende de Dom Lefebvre, é Dom Lefebvre quem depende da Igreja. Esta verdade óbvia parecer ser, no entanto e infelizmente, sistematicamente ignorada por algumas pessoas que parecem condicionar o seu serviço à Igreja à declaração de nulidade das excomunhões de 1988. Quem faz isso comete um erro crasso no valor que atribui às coisas das quais a Igreja precisa. E os resultados são péssimos.

Dir-me-ão que é questão de Justiça limpar a memória de pessoas que consumiram a sua vida a serviço da Igreja de Cristo, e com isso eu concordo completamente. Acontece que, como eu já disse, esta justiça é bastante discutível; Dom Lefebvre não foi excomungado por defender a Fé da Igreja, e sim por fazer ouvidos surdos às súplicas desesperadas do Santo Padre (que é quem possui autoridade e graça de estado para discernir o que é melhor para a Igreja) e, expressamente à revelia dele, cometer o ato objetivamente ilícito de sagrar quatro bispos sem ter mandato pontifício para tanto. É preciso deixar muito bem claro que a defesa da Missa e da Fé da Igreja não está intrinsecamente relacionada à justiça ou injustiça de uma pena imposta por causa de uma sagração episcopal objetivamente ilícita. Podem dizer que foi somente devido às “atitudes heróicas” do bispo francês que, hoje, nós podemos ter o que temos, mas esta futurologia do passado é também discutível, porque eu posso dizer (e acho sinceramente) que, não fossem as atitudes extremadas de alguns membros da hierarquia católica, as discussões sobre a Fé da Igreja e a manutenção da Missa Gregoriana teriam sido bem menos traumáticas. Mas esta discussão – e é exatamente o que estou tentando dizer aqui – não é a mais relevante no momento, pois o que realmente interessa é como as coisas são, e não como elas poderiam ter sido.

É também perfeitamente possível e lícito argumentar que havia um estado de necessidade (subjetivo, óbvio), e pode-se concordar com esta discussão, mas o que não se pode fazer é considerar que tal debate tem a mesma importância da defesa intransigente da Fé, porque não tem. É muito mais importante e necessário defender a Fé. As duas coisas não são necessariamente excludentes, mas no caso concreto são sim, porque todos estão de acordo com a importância de se defender a Igreja mas nem todos estão de acordo sobre as atitudes de Dom Lefebvre. E a primeira coisa é fundamental, enquanto a segunda é secundária. Provoca-me profunda angústia ver que, no meio do incêndio, há pessoas que condicionam o trabalho de apagá-lo à discussão prévia sobre uma decisão já tomada, perdendo tempo com isso, enquanto o fogo consome tudo, as almas são perdidas, o Inferno faz festa e Satanás zomba de Nosso Senhor.

Que o Espírito Santo nos faça dar a cada questão a importância que ela tem; que nós não percamos o senso das proporções. Que aproveitemos o momento propício para defender a Igreja de Cristo, sem arroubos passionais e sem colocar pré-condições que não sejam absolutamente necessárias para aquilo que precisa ser feito. Há muito trabalho a fazer para que nós possamos nos dar ao luxo de perder tempo com discussões que não sejam absolutamente essenciais.