“O Papa pode estar certo” – Edward C. Green

[Original: Washington Post
Tradução: SOVA
]

O PAPA PODE ESTAR CERTO

por Edward C. Green
publicado no The Washington Post
em 29 de março de 2009, pg A15

Quando o Papa Bento XVI disse, recentemente, que a distribuição de camisinhas não está resolvendo, e pode até estar piorando, o alastramento do HIV/AIDS na África, ele detonou uma explosão de protestos. A maioria dos comentários não-católicos foi altamente crítica em relação ao Papa. Uma charge do Philadelphia Inquirer, reimpressa no The Post, mostrou o Papa como um vampiro pregando a uma multidão de doentes e moribundos africanos dizendo: “Bem-aventurados os doentes, pois eles não usaram camisinhas”.

No entanto, a verdade é que as evidências empíricas atualmente disponíveis concordam com as palavras do Papa.

Nós, liberais que trabalhamos nos campos da HIV/AIDS e do planejamento familiar em âmbito global, correríamos um terrível risco em termos profissionais se nos puséssemos ao lado do Papa num assunto tão polêmico quanto este. A camisinha se transformou num símbolo da liberdade e – junto com a contracepção –  da emancipação feminina, de tal forma que aqueles que questionam a “ortodoxia do preservativo” são acusados de serem contra aquelas causas. Meus comentários são somente sobre a questão dos preservativos funcionarem como meio de alastramento da epidemia generalizada de AIDS na África – nada mais que isso.

Em 2003, Normam Hearst e Sanny Chen, da Universidade da Califórnia, conduziram um estudo sobre a efetividade da camisinha para o Programa das Nações Unidas para a AIDS e não encontraram nenhuma evidência de que as camisinhas estivessem funcionando como medida de prevenção da AIDS na África. A UNAIDS discretamente renegou o estudo. (Os autores depois negociaram para publicar seus achados na edição trimestral da Studies in Family Planning). Desde então, os principais artigos publicados em outras publicações com peer revisions, tais como Lancet, Science e BMJ, confirmaram  que a camisinha não funcionou como uma intervenção primária [primary intervention] nas populações que sofrem com grandes epidemias dessa doença na África. Em um artigo de 2008 intitulado “Reassessing HIV prevention”, dez peritos em prevenção à AIDS concluiram que “mesmo após muitos anos de promoção generalizada e frequentemente agressiva, o uso consistente de camisinha não alcançou uma diminuição mensurável de novas infecções da epidemia na África subsaariana”.

Permita-me rapidamente acrescentar que a promoção do uso de camisinha funcionou em países como a Tailândia e Cambodja, onde a principal causa de transmissão do HIV é o sexo comercial e onde foi possível forçar uma política de uso em 100% dos prostíbulos (mas não fora deles). Em teoria, a promoção do uso da camisinha deveria funcionar em qualquer lugar. E, intuitivamente, algum uso da camisinha deveria ser melhor do que o não uso. Mas não é o que mostram as pesquisas na África.

E por que não?

Uma razão é a chamada “compensação de riscos”. Isto é, quando as pessoas pensam que estão mais seguras porque usam camisinhas ao menos uma parte das vezes, então elas acabam por praticar um sexo mais “arriscado” [engage in riskier sex].

Outro fator é que as pessoas raramente usam camisinhas em relacionamentos estáveis porque fazer isso implicaria numa falta de confiança. (E se a taxa de uso da camisinha sobe é possível que estejamos assistindo a um aumento do sexo casual ou comercial). Contudo, são essas relações sexuais que levam à piora da epidemia na África. Lá, a maior parte das infecções se dá na população em geral e não nos “grupos de alto risco”, como os “trabalhadores do sexo”, homens gays ou usuários de drogas injetáveis. E em significante proporção da população africana, as pessoas têm dois ou mais parceiros sexuais regulares ao mesmo tempo [who overlap in time]. Em Botswana, que tem um dos maiores índices de incidência de HIV, 43% dos homens e 17% das mulheres pesquisados tinham dois ou mais parceiros sexuais regulares no ano anterior.

Essa múltipla concomitância de parceiros sexuais se assemelha a uma gigantesca rede invisível de relacionamentos através da qual o HIV/AIDS se espalha. Um estudo em Malawi conclui que mesmo se o número médio de parceiros for levemente superior a dois, praticamente dois terços dessa população foi interconectada através dessa rede de relacionamentos sexuais.

Então, o que funcionou na África? Estratégias que quebraram essa rede de relacionamentos sexuais múltiplos concomitantes – ou, numa linguagem coloquial, mútua fidelidade monogâmica ou, ao menos, redução no número de parceiros, especialmente concomitantes. Celibato [closed] ou fidelidade poligâmica também podem funcionar.

No programa de prevenção lançado em Uganda, que começou em 1986, o foco foi Sticking to One Partner [“aderindo a um parceiro”] ou Zero Grazing (que significa  permanecer fiel dentro de um casamento poligâmico) e Loving Faithfully [“amar com fidelidade”]. Estas simples mensagens funcionaram. Mais recentemente, dois países com os maiores índices de infecção, Suazilândia e Botswana, lançaram campanhas que desencorajam as pessoas terem múltiplos e concomitantes parceiros sexuais.

Não me entendam mal: eu não sou anti-camisinha. Todas as pessoas deveriam ter pleno acesso à camisinha e ela deve sempre ser uma estratégia substituta para aqueles que não querem ou não conseguem permanecer em uma relação de mútua fidelidade. Este foi o ponto-chave no “Consenso de 2004” publicado e endossado por mais de 150 peritos em AIDS, incluindo representantes das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde e Banco Mundial. Estes peritos também afirmaram que para os adultos sexualmente ativos, a primeira prioridade deveria ser promover a mútua fidelidade. Além disso, liberais e conservadores concordaram que a camisinha não podem vencer os desafios que permanecem críticos na África, tais como o sexo entre gerações, a desigualdade de gênero e o fim da violência doméstica, estupro e coerção sexual.

Certamente é hora de se começar a prover uma prevenção da AIDS na África baseada mais em evidências.

O autor é pesquisador senior na Harvard School of Public Health.