Não tive lá muito tempo disponível nos últimos dias para acompanhar os debates cá do Deus lo Vult! sobre o Concílio Vaticano II (aliás, há um debate pendente com o senhor Sandro que está na minha lista de coisas a fazer; Sandro, não se preocupe, que eu não me esqueci do senhor), o que é uma grande pena; mas há um comentário do sr. Antonio que foi feito sobre o qual eu gostaria realmente de tecer alguns comentários.
Ele começa com considerações sobre a Missa Nova, citando um texto que explica como há, no Novus Ordo Missae, “certas características de rito e de culto objetivamente coincidentes com a doutrina protestante da “Ceia do Senhor” e com a Nova Teologia — teologia não apenas reforçada pela Missa Nova, mas também gênese-inspiração de sua própria fabricação”. Gostaria de deixar este assunto de lado por enquanto, porque o problema aqui é essencialmente diferente daquele do Concílio, por diversos motivos. Basta por enquanto afirmar que a Santa Missa no rito em que é celebrada na virtual totalidade da Igreja Atual é, sem sombra de dúvidas, verdadeiro e próprio Sacrifício, é válida e lícita, nem herética e nem “heretizante”. Em outra oportunidade, volto a estes pontos, para explorá-los com mais detalhes; por enquanto, quero me debruçar sobre a questão do Concílio.
Comentei – e, aliás, mantenho – que qualquer documento magisterial, não importa o quão claro seja, infalível ou não, é passível de distorções, e citei como exemplo a Unam Sanctam (Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice), da qual se pode inferir a inexistência do Batismo de Desejo (tese condenada do pe. Jesuíta Leonard Feeney); contra isto, o sr. Antonio fez cinco ponderações, que cito abaixo:
1) O Vaticano II dá muito mais oportunidade para isso do que a Unam Sanctam; 2) Dessa bula o feeneyismo só falsamente se alimenta desvirtuando-se aquele pequeno excerto, enquanto que no Vaticano II o erro é por vezes apresentado nas autocontradições ao longo de suas páginas ou mesmo nas orações adversativas; 3) O feeneyismo, que de uma má interpretação daquela bula pode surgir, não prejudica os adeptos ignorantes desse erro tal como o faz o erro oposto do irenismo relativista, não condenado e até insinuado pelo texto e pelo espírito ecumenista do Vaticano II; 4) Ao contrário do espírito geral de compromisso e ambigüidade para fazer aprovar por vasta maioria de votos os documentos do Vaticano II, e para depois interpretar à maneira querida por muitos de seus redatores, a bula Unam Sanctam não foi escrita para, nem pensando em, o erro que depois a instrumentalizou; 5) O Vaticano II possibilita uma matiz tão mais vasta de interpretações, desde aquela dita “conservadora” (modernismo light) até aquela mais progressista, que condenar uma concede até força para as demais e também erradas interpretações, mesmo que mais brandas ou parcialmente erradas.
Ora, do exposto, segue-se que o problema do Vaticano II seria meramente de grau, e não de essência. Mantenho: quaisquer documentos católicos, infalíveis ou não, conciliares ou dos Santos Padres, das Escrituras Sagradas, do Concílio de Nicéia ao Vaticano II, são passíveis de más interpretações, e é exatamente por isso que a interpretação legítima de quaisquer textos católicos compete ao Magistério da Igreja, e não a particulares.
Com algumas das ponderações feitas dá para concordar; com outras, não. Se eu certamente concordo que o Feeneyismo “só falsamente se alimenta desvirtuando-se aquele pequeno excerto”, no entanto afirmo igualmente que o modernismo só falsamente se alimenta do Vaticano II, desvirtuando-lhe o sentido verdadeiro. A diferença de grau (que reconheço existir) pode ser muito razoavelmente creditada à extensão dos textos que o Vaticano II deixou, ou à má-intenção dos inimigos da Igreja que se apropriaram indevidamente dos documentos conciliares; não é necessário alegar uma “maldade intrínseca” do Concílio para tanto.
A quinta ponderação diz que o Concílio permite interpretações que vão “desde aquela dita “conservadora” (modernismo light) até aquela mais progressista”. Ou seja: a “faixa interpretativa” do Vaticano II seria limitada de um lado pela “heresia light” e, do outro, pela “heresia heavy”, o que é a mesma coisa que dizer que o Concílio é vere et proprie herético, pois incapaz de se prestar a uma interpretação ortodoxa! Com isso, é impossível concordar. Já afirmei aqui (e mantenho) que o Concílio é, sim, passível de descalabros interpretativos heréticos, mas também é (e, aliás, esta é a única forma na qual é lícito entender o Concílio) passível de interpretações ortodoxas. Não imagino estar sozinho nesta minha posição; também o Papa Bento XVI, no já célebre discurso de natal à Cúria Romana, afirmou claramente:
Assim podemos hoje, com gratidão, dirigir o nosso olhar ao Concílio Vaticano II: se o lemos e recebemos guiados por uma justa hermenêutica, ele pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a sempre necessária renovação da Igreja.
O Vaticano II, portanto, pode ser justamente interpretado [e adianto que a “renovação da Igreja” não tem nada a ver com a “criação de uma Nova Igreja”, posto que esta última é precisamente a interpretação condenada pelo Santo Padre poucas linhas atrás] e deve ser justamente interpretado. Outra forma de encará-lo é inútil e só pode conduzir ao erro.
Gostaria de fazer somente mais dois comentários. Primeiro, há mais um clássico exemplo de texto magisterial historicamente mal-interpretado (e que, aliás, alguns interpretam erroneamente até hoje): trata-se da liberdade religiosa. Eu trouxe aqui, no debate com o Sandro sobre este assunto, uma citação do Beato Pio IX citada por Dom Estêvão na Pergunte & Responderemos, que reproduzo mais uma vez:
O autêntico significado do pensamento de Pio IX foi formulado pelo Bispo de Orleães, Mons. Dupanloup, num escrito que, aos 26/01/1865, comentava a Encíclica Quanta Cura e o Syllabus:
“O Papa condena o indiferentismo religioso, esse absurdo que de todos os lados e em todas as tonalidades nos é incutido hoje em dia, a saber: o Evangelho ou o Alcorão, Buda ou Jesus Cristo, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, tudo é igual… Condenar a indiferença em matéria de religião não é condenar a liberdade política dos cultos”.
Ora, Pio IX, aos 04/02/1865, respondeu elogiosamente a Mons. Dupanloup, dizendo:
“Reprovastes tais erros no sentido em que Nós mesmos os reprovamos… Estais em condições de transmitir aos vossos fiéis o nosso autêntico pensamento pelo fato mesmo de terdes refutado energicamente as interpretações errôneas do mesmo” (o texto de Pio IX encontra-se na sua íntegra latina no estudo de R. Aubert: Mgr Dupanloup et le Syllabus, em Revue d’Histoire Ecclésiastique, Louvain 51, 1956, p. 913).
[Pergunte & Responderemos, n. 516, junho de 2005, pp. 257-258]
E grifo: Condenar a indiferença em matéria de religião não é condenar a liberdade política dos cultos. Não é de hoje que o ensino da Igreja é mal-entendido; no tocante à liberdade religiosa, pelo menos desde Pio IX que ele é mal entendido! Portanto, tal prerrogativa não é exclusiva do Concílio Vaticano II. É importante mostrar o ensino católico; e não ficar no lenga-lenga de joeirar o Magistério e “pescar”, nos documentos emanados de Roma, o que é ortodoxo e o que não é.
O segundo comentário é sobre a entrevista de Dom Tissier; disse o bispo da Fraternidade, grosso modo, que, do fato de Lefebvre ter assinado os documentos conciliares, não segue que ele os tenha aceitado (!), porque num concílio todas as pessoas são obrigadas a assinar todos os documentos (in a collegial decision, even if you do not agree with the decision, you have to sign it). Como não tenho conhecimento sobre este assunto, embora ache muitíssimo estranho, vou me abster de criticar, pois isto é um ponto de somenos importância. O pior aqui é o que Dom Tissier diz depois, que vou até colocar o original em inglês ao lado da minha tradução traditora para que me corrijam se eu houver falsificado as palavras do bispo:
Mais do que à luz da Tradição, nós realmente devemos ler e interpretar o Vaticano II à luz da nova filosofia. Nós temos que ler e entender o Concílio em seu real significado, quero dizer, de acordo com a nova filosofia. Porque todos os teólogos que produziram os textos do Vaticano II estavam imbuídos da nova filosofia. Nós temos que lê-lo desta maneira, não para aceitá-lo, mas para entendê-lo como os teólogos modernos – que redigiram os documentos – o entendem. Ler o Vaticano II à luz da Tradição é não o ler corretamente.
[Rather than read Vatican II in light of Tradition, we really should read and interpret Vatican II in light of the new philosophy. We must read and understand the Council in its real meaning, that is to say, according to the new philosophy. Because all these theologians who produced the texts of Vatican II were imbued with the new philosophy. We must read it this way, not to accept it, but to understand it as the modern theologians who drafted the documents understand it. To read Vatican II in light of Tradition is not to read it correctly.]
E isso, evidentemente, não é um argumento. O Vaticano II é herético e deve ser condenado simplesmente porque é um erro interpretá-lo de maneira ortodoxa! Não importa quantas vezes o Papa diga que o Concílio não deve ser interpretado como uma ruptura. Oras, dizer que o Concílio está errado porque é a priori errado interpretá-lo do jeito certo é uma clara petitio principii. Com estes pressupostos absurdos, não existe debate teológico possível, e sim apenas uma “dissecação” dos alegados “erros conciliares”, contra os quais não cabe resposta alguma pelo simples e axiomático fato de que é errado não achar erros no Concílio.