[ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS!]
Acho que eu nunca recomendei enfaticamente um filme cá no Deus lo Vult!. Faço-o agora, com o novo desenho da Pixar: Up – Altas aventuras é um filme primoroso.
Quem pretende assistir o filme, eu sugiro que não leia este post ainda, porque as revelações sobre o enredo podem tirar um pouco da graça de descobri-lo pouco a pouco, conforme a trama se desenrola na película. Ao mesmo tempo, não posso deixar de tecer alguns comentários sobre o desenho que assisti ontem à noite. Muita coisa poderia ser comentada.
Antes do mais, é inusitada a figura do herói: o protagonista da trama é um velho, viúvo, de bengala. É uma pessoa frágil e cheia de limitações, daquelas que nós nunca esperamos encontrar em situações perigosas ou enfrentando aventuras; no entanto, é precisamente este o personagem que a Pixar apresenta no desenho. Não é um alguém com super-poderes, nem um gênio de inteligência ilimitada, nem mesmo alguém de porte atlético que tenha força e velocidade: muito pelo contrário, é um senhor de idade que nem mesmo pode descer uma escada. Não é um executivo bem sucedido, nem famoso, nem aventureiro, nem nada: é um velho vendedor de balões viúvo. Personagem mais sem graça, impossível. E é aqui que o filme começa a surpreender.
Há várias formas de encontrar mensagens positivas no filme: nunca é tarde para recomeçar, as aparências enganam, os bens materiais não são a coisa mais importante da vida. São todas válidas, e todas essas coisas são mostradas nas cenas do filme. Mas a melhor de todas, para mim a que merece aplausos e faz com que o filme mereça ser assistido e divulgado, é referente ao amor e ao casamento.
Peço licença para contar a – na minha opinião – melhor parte da trama, refazendo o convite acima de que parem a leitura os que não assistiram ainda o filme e pretendem fazê-lo em breve. O filme começa quando o protagonista é ainda criança e assistia filmes de exploradores de selvas da América do Sul. É neste contexto que ele encontra a garota que, mais tarde, vai ser a sua esposa.
O sonho da menina é visitar as florestas da América do Sul quando crescer e viver as grandes aventuras com as quais sonhava. Ela tem um caderno que mostra ao garoto – “Meu livro de aventuras” -, cujas primeiras páginas estavam ocupadas com fotos de cataratas na Venezuela, penas de animais, folhas de árvores, etc. É um livro grande, mas que só está com as primeiras páginas preenchidas; todo o resto é de folhas em branco, iniciadas por uma página com o título “Coisas que vou fazer”, e a menina diz que, lá, ela vai escrever as aventuras que vai viver quando crescer.
O tempo passa, os dois crescem, apaixonam-se, casam-se, envelhecem juntos. O livro de aventuras da menina fica esquecido. Certa vez, o velho o encontra e, lembrando-se de que a esposa sonhava em viver aventuras na América do Sul quando criança, decide surpreendê-la com uma viagem ao lugar que ela sempre sonhou em visitar, mas não tem tempo: a mulher morre antes que ele possa viajar com ela.
“É uma animação ou um filme para chorar?”, ouvi alguém comentar na cadeira de trás. O fato é que o velho fica viúvo, sozinho, ranzinza, sem ter dado à esposa a oportunidade de viver as aventuras que ela sonhara desde criança. Quando ameaçam levá-lo para um asilo, ele decide empreender – finalmente – a viagem à América do Sul para preencher o “Meu livro de aventuras” da sua esposa, fazendo tudo o que ela sonhou fazer e eles não tiveram a oportunidade de fazer juntos. E o faz de uma forma inusitada: amarrando balões à sua casa e levando-a, flutuando, até as selvas sul-americanas. Quer colocar a casa no exato mesmo lugar – no alto, junto a uma catarata – onde a esposa a desenhou um dia, quando era criança.
Tem muito trabalho para fazê-lo e passa por muitas dificuldades até chegar lá. Encontra um garoto, um pequeno escoteiro, que o seguiu, tem que tomar conta dele, encontra um cachorro e um pássaro selvagem exótico (aos quais se afeiçoa o garoto), encontra um explorador que está caçando o tal pássaro, precisa escolher entre ajudar o garoto e o pássaro ou salvar a sua casa (que ainda não havia levado para o lugar onde queria)… ao final, enfim, consegue pôr a casa no alto da montanha, ao lado da cachoeira, exatamente onde a falecida esposa a desenhou quando criança.
Imagino o que ele sente: teve trabalho para chegar até ali, demorou bastante, a esposa não está mais com ele, mas ele está finalmente está vivendo as aventuras que a esposa, um dia, muitos anos atrás, confidenciou-lhe que desejava viver. Pega o velho “Meu livro de aventuras”, folheia-o mais uma vez, pára à página “Coisas que vou fazer”, e tem-se a impressão de que ele vai começar – enfim! – a escrever as aventuras da vida dele.
Confesso que o filme me enganou e me surpreendeu; achei realmente que o sonho de aventuras das crianças havia sido frustrado, que o caderno havia sido esquecido, que a vida de aventuras desejada na infância havia sido sufocada pelo quotidiano da vida “normal”, ou que a velha era digna de compaixão porque havia tido uma vida longa e, em um certo aspecto, frustrada, por não ter conseguido fazer o que sonhara quando criança. Ledo engano meu. Sentado à cadeira, parado à folha (logo no início do caderno, lembremo-nos!) das “Coisas que vou fazer”, o velho percebe que existe algo na folha seguinte. Vira a folha.
Uma foto do casamento. Outra foto dele carregando a noiva. Fotos deles passeando. Fotos deles deitados no parque. Páginas e mais páginas repletas de fotos da vida deles, sentados em casa, lendo livros, em pequenas e banais situações do quotidiano, ao longo dos anos. O caderno está todo preenchido, até à velhice, até à última folha, na qual está escrito alguma coisa como (não lembro exatamente porque, a esta hora, as lágrimas embaraçavam-me a visão): “obrigado pelas grandes aventuras que me proporcionou”.
Após isso, o velho se transforma. Larga o ar ranzinza, sorri, lança fora um monte de quinquilharias que havia na casa (fazendo com que ela flutue novamente), vai ajudar o pássaro que havia sido capturado e o garoto que havia ido salvá-lo. Consegue, afinal; mas a cena do “Meu livro de aventuras” é apoteótica, e nunca imaginei encontrá-la em um desenho animado moderno. É sensacional. Se eu aplaudo, elogio e recomendo este filme, é principalmente por causa disso: porque ele teve a coragem de apresentar uma vida conjugal longa, de companheirismo e de fidelidade, como sendo a grande aventura de uma vida.