A direção da PUC-SP negou pela segunda vez a decisão do Conselho Universitário de rejeitar a nomeação da profa. Anna Cintra para a reitoria da Universidade [1]. A nota foi clara: «Sendo a PUC-SP uma universidade comunitária-privada, somente o grão-chanceler [no caso, o arcebispo Dom Odilo Scherer], como instância de deliberação máxima, tem poderes para revogar a nomeação da Reitora, nos termos de seus estatutos». Os professores suspenderam a greve [2].
Anteontem, uma liminar da Justiça havia suspendido a nomeação da reitora [3] até que o Conselho Universitário julgasse um pedido de anulação feito pelos alunos. O julgamento foi feito ontem, quando «representantes de professores, alunos e funcionários, que formam o conselho, aprovaram um recurso dos estudantes de direito da PUC, que pedia a suspensão da lista tríplice dos candidatos à reitoria» [1]. Mesmo assim, «a direção da PUC julgou “incoerente” a decisão do conselho suspendendo a lista tríplice, pois há quase 90 dias o mesmo órgão havia aprovado os três nomes» [1]. Tendo havido o julgamento, a liminar perde a validade [3]; a direção da PUC rejeitando a decisão do Conselho Universitário, a profa. Anna Cintra permanece na reitoria [1]; sendo suspensa a greve [2], espera-se que os ânimos se pacifiquem e os grevistas (ao menos por enquanto) aceitem a nomeação da nova reitora. Mas eu não me arrisco a prever o desenrolar deste imbroglio todo.
Mais do que as questões de fato (que inclusive já haviam sido comentadas no Deus lo Vult!), interessam-nos aqui os princípios por trás desta disputa toda. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, o Cardeal Odilo Scherer, grão-chanceler da PUC-SP, fez uma aberta defesa da missão da Universidade Confessional e Católica dentro de uma sociedade democrática e plural:
Para um pesquisador cristão, a coerência com a sua fé não o faz sobrepor ao seu trabalho critérios alheios à ciência; sua própria fé leva-o ao amor à verdade e ao respeito pela dignidade da pessoa humana.
Num contexto relativista, como o atual, uma universidade católica contribui para mostrar que há valores inegociáveis, como a busca da verdade, o valor da vida humana em todas as suas etapas e a dignidade da mulher.
[…]
Por isso, mesmo, num mundo que parece esquecer-se de Deus, uma universidade católica tem uma importante função social, também como contribuição para o pluralismo e a liberdade de pensamento. E isso não parece irrelevante para o convívio democrático!
A posição de Dom Odilo está perfeita e responde com maestria à pergunta que intitula este texto. Esta firmeza do Cardeal de São Paulo, contudo, provocou a ira de outros colunistas da Folha de São Paulo. Na última terça-feira, o Vladimir Safatle reservou o seu espaço hebdomadário no jornal para criticar não apenas a posição de D. Odilo, como também o próprio lugar de uma Universidade Confessional dentro de um Estado Democrático. As idéias do colunista são francamente absurdas; para ficar em só dois exemplos:
1. «Desde o seu início, ela [a Universidade] foi uma ideia vinculada à constituição de um espaço crítico de livre pensar. Ela era a expressão social do desejo de que o conhecimento se desenvolvesse em um ambiente livre de dogmas, sem a tutela de autoridades externas, sejam elas vindas do Estado, da igreja ou do mercado».
Conversa fiada pura e simples. As Universidades foram inventadas pela Igreja Católica na Idade Média. Elas nunca pretenderam ser um espaço livre das influências da Igreja, primeiro porque o homem medieval não conseguia conceber nada de útil que pudesse existir à margem das influências benéficas da Igreja de Cristo, e segundo porque foi a própria Igreja a responsável pela criação do Sistema Universitário. O que o Safatle está falando é simplesmente uma inverdade histórica grosseira.
2. «A universidade, mesmo particular, é uma autorização do poder público que exige, para tanto, a garantia de que valores fundamentais para a formação livre serão respeitados».
Isto é uma meia verdade que, no contexto do artigo, se transforma em uma mentira completa. Televisão é concessão pública, Universidade não.
É verdade que a Constituição Federal exige da iniciativa privada «I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; [e] II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público» (Art. 209). No mesmo sentido, o Decreto 5.733 de 2006 diz que «o funcionamento de instituição de educação superior e a oferta de curso superior dependem de ato autorizativo do Poder Público» (Art. 10), mas – atenção! – isto é «nos termos deste Decreto» (id. ibid.), e não na concepção do articulista da Folha. E os termos dispostos na lei não justificam, nem de longe, a ameaça velada que o Safatle faz: não há absolutamente nada aqui (nem na 10.861/2004, nem em lugar nenhum) que impeça um Instituto de Ensino Superior de ser Confessional. O Decreto fala da regulação pelo MEC, dever legal com o qual a PUC-SP – até onde conste – está em dia.
Os «valores fundamentais para a formação livre» exigidos pelo Poder Público brasileiro para o funcionamento das Universidades não exigem sua “aconfessionalidade”. Muito pelo contrário aliás, a Lei de Diretrizes e Bases reconhece explicitamente a existência das Universidades Confessionais (Art. 20, inciso III), contrariando frontalmente o articulista da Folha que diz não haver, «no interior da República, (…) espaço para universidades católicas, protestantes, judaicas ou islâmicas». E o sujeito me vem falar em “formação livre”! Que formação livre, se ele deseja impôr a todas as Universidades brasileiras – tanto públicas como privadas – uma orientação político-ideológica particular que nem a própria legislação brasileira impõe?
Por fim, a bravata do final do artigo é somente isto: uma bravata pueril e cínica. O MST mantém mais de 1500 escolas em todo o país. No dia em que o Vladimir Safatle vier a público exigir que nestas escolas se ensine a propriedade privada, o agronegócio e o latifúndio, aí a gente pode começar a pensar em levá-lo a sério. Enquanto isso, o seu discurso sobre o dever das instituições católicas de promoverem valores contrários aos da Igreja não passa de hipocrisia mal-disfarçada.